quinta-feira, 30 de maio de 2019

A levíssima embriaguez de andarem juntos

Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que por admiração se estava de boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles.
Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles.
Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque - a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de escuras - e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca de admiração.
Como eles admiravam estarem juntos!
Até que tudo se transformou em não. Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. Então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, ela não via que ele não vira, ela que, estava ali, no entanto. No entanto ele que estava ali. Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome; porque quiseram ser, eles que eram. Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios. Tudo, tudo por não estarem mais distraídos.

Clarice Lispector

Namoro

https://www.youtube.com/watch?v=o58yrP-x9k0

Mandei-lhe uma carta em papel perfumado
e com letra bonita dizia ela tinha
um sorriso luminoso tão triste e gaiato
como o sol de Novembro brincando de artista
nas acácias floridas na fímbria do mar
e dando calor ao sumo das mangas
Sua pele macia era suma-uma
sua pele macia da cor do jambo
cheirando a rosas sua pele macia
guardava as doçuras do corpo rijo
tão rijo e tão doce como um maboque
seus seios laranjas, laranjas do Loge
seus dentes marfim
mandei-lhe essa carta e ela disse que não
Mandei-lhe um cartão
que o amigo Maninho tipografou
"por ti sofre o meu coração"
num canto "sim" noutro canto "não"
e ela o canto do "não" dobrou

Mandei-lhe um recado pela Zefa do sete
pedindo e rogando de joelhos no chão
pela Sra do Cabo, pela Sta Efigénia
me desse a ventura do seu namoro
e ela disse que não
Levei à Vó Xica, quimbanda de fama
areia da marca que o seu pé deixou
para que fizesse um feitiço
forte e seguro
que nela nascesse um amor como o meu
e o feitiço falhou
Esperei-a de tarde à porta da fábrica
orfetei-lhe um colar, um anel e um broche
Paguei-lhe doces na calçada da Missão
Ficamos num banco do Largo da Estátua
Afaguei-lhe as mãos falamos de amor
e ela disse que não.
Andei barbudo, sujo e descalço
como um monangamba procuraram por mim
não viu ai não viu, não viu Benjamim
e perdido me deram no morro da Samba
Para me distrair levaram-me ao baile
do Só Januário, mas ela lá estava
num canto a rir, contando o meu caso
às moças mais lindas do bairro operário
Tocaram uma rumba e dancei com ela
e num passo maluco voamos na sala
qual uma estrela riscando o céu
e a malta gritou "Aí Benjamim"
Olhei-a nos olhos sorriu para mim
pedi-lhe um beijo
lá lá lá lá lá
lá lá lá lá lá
E ela disse que sim

Sérgio Godinho



terça-feira, 21 de maio de 2019

Vida sempre


Entre a vida e a morte há apenas
o simples fenómeno
de uma subtil transformação. A morte
não é morte da vida.
A morte não é inação, inutilidade.
A morte é apenas a face obscura,
mínima, em gestação
de uma viagem que não cessa de ser. Aventura
prolongada
desde o porão do tempo. Projectando-se
nas naves inconcebíveis do futuro.

A morte não é morte da vida: apenas
novas formas de vida. Nova
utilidade. Outro papel a desempenhar
no palco velocíssimo do mundo. Novo ser-se (comércio
do pó) e não se pertencer.
Nova claridade, respiração, naufrágio
na maquina incomparável do universo.

Casimiro de Brito

As mãos

https://www.youtube.com/watch?v=D64LInIPfW8

Com mãos se faz a paz se faz a guerra.
Com mãos tudo se faz e se desfaz.
Com mãos se faz o poema - e são de terra.
Com mãos se faz a guerra - e são a paz.

Com mãos se rasga o mar. Com mãos se lavra.
Não são de pedras estas casas, mas
de mãos. E estão no fruto e na palavra
as mãos que são o canto e são as armas.

E cravam-se no tempo como farpas
as mãos que vês nas coisas transformadas.
Folhas que vão no vento: verdes harpas.

De mãos é cada flor, cada cidade.
Ninguém pode vencer estas espadas:
nas tuas mãos começa a liberdade.

Manuel Alegre

sábado, 18 de maio de 2019

Discordo sempre

Discordo sempre quando ouço alguém dizer que as crianças não aproveitam as viagens. Ainda não têm idade para aproveitar, diz essa pessoa que pode ter muitos rostos diferentes. Não consigo entender esse ponto de vista. Parece-me que as crianças aproveitam as viagens de forma diferente, desfrutam de aspetos que nós, muitas vezes, já esquecemos de prestar atenção.
As crianças não fingem interessar-se por aquelas histórias que os guias repetem, com mais ou menos rotina na voz, e que toda a gente esquece após algum tempo, se é que chegam a ouvi-las. Em vez disso, as crianças deixam-se invadir por cheiros novos, cores novas, sons novos, estímulos que alargam a paleta daquilo com que contam a partir daí: na sua consciência, no modo como desenham o mundo e o avaliam.
As crianças não são testemunhas, são descobridores. Quando chegam a um lugar que desconhecem, não deixam que o peso do que sabem molde o que as espera. Levam os sentidos abertos, prontos a serem marcados para sempre. Se perderem essa disponibilidade, nunca aprenderão a viajar e, em consequência, nunca serão capazes de desfrutar dessa vantagem. Quando falo de viajar, não me refiro apenas oportunidade de ir muito longe, a outros países ou continentes, refiro-me à curiosidade pelo mundo, à capacidade de se surpreender com o que é diferente, de não temer essa diferença, de desejá-la.
Ainda no carrinho de bebé, procurei fazer várias viagens com os meus filhos, todas as que foram possíveis. Em tempos, os meus pais fizeram o mesmo comigo. Com os meus filhos, as pessoas que viajavam ao nosso lado no avião tiveram de ter paciência com o bebé a chorar às vezes. Com os meus pais, nunca hei de esquecer o cheiro do carro de madrugada. Num e noutro caso, havia o fascínio pelo caminho e a expetativa por tudo o que imaginávamos acerca do lugar para onde nos dirigíamos.
Aquilo que quero deixar aos meus filhos são viagens. Como outros acumulam imobiliário e bens, quero que sejamos capazes de acumular momentos e lugares onde estivemos vivos e juntos. Essa será a fortuna que partilharemos. Quando falo de viajar, refiro-me a esse prazer de olhar em volta e saber que estamos ali, sentirmo-nos. Mais do que uma promessa, viajar é a certeza de estar vivo. Por isso, aquilo que desejo aos meus filhos é cidades e pessoas, montanhas e horizonte, desejo-lhes Nova Iorque e a Amazónia, desejo-lhes São Petersburgo e o entardecer lento da savana africana, desejo-lhes sorrisos da Tailândia e sake de Quioto.
Ao mesmo tempo, desejo que nunca percam a capacidade de ir ali ao fundo e, da mesma maneira, surpreenderem-se com o que lá está, com a luz e a temperatura ligeiramente diferentes. Desejo que se apaixonem sempre, por tudo. E que sejam capazes de passar essa eletricidade aos seus filhos, meus netos por nascer, porque é ela que dá ânimo e sentido: combustível e estrutura da vida. Aquilo que desejo aos meus filhos é que a variedade de opções que o mundo lhes oferece nunca deixe de deslumbrá-los.

José Luís Peixoto


sexta-feira, 17 de maio de 2019

Meu bem, meu mal


https://www.youtube.com/watch?v=Vwn3jp7J7lA

Você é meu caminho Meu vinho, meu vício Desde o início estava você Meu bálsamo benigno Meu signo, meu guru Porto seguro onde eu vou ter Meu mar e minha mãe Meu medo e meu champanhe Visão do espaço sideral Onde o que eu sou se afoga Meu fumo e minha ioga Você é minha droga Paixão e Carnaval Meu zen, meu bem, meu mal


Caetano Veloso

quinta-feira, 16 de maio de 2019

O amor

Estou a amar-te como o frio
corta os lábios.

A arrancar a raiz
ao mais diminuto dos rios.

A inundar-te de facas,
de saliva esperma lume.

Estou a rodear de agulhas
a boca mais vulnerável

A marcar sobre os teus flancos
o itinerário da espuma

Assim é o amor: mortal e navegável.

Eugénio de Andrade

O peso que tudo simplifica

O peso que tudo simplifica
E reduz à forma de uma mão
Fechada não permite
 
A leitura limpa do céu
Nem do veio da árvore
Abatida antes de tempo.

Os dedos rememoram
A semelhança que aproxima
A pele seca da presença
Áspera da vertigem

Ou de algo próximo
Da loucura. Já não
É possível regressar
Ao início desta noite.

Rui Almeida

domingo, 12 de maio de 2019

Amor de fixação

  <<A experiência é madre das coisas
                                         e por  ela  soubemos  radicalmente
                                         a verdade>>.

                                        Duarte Pacheco Pereira, "Esmeraldo"


Há um caminho marítimo no meu gostar de ti.
Há um porto por achar no verbo amar
há um demandar um longe que é aqui.
E o meu gostar de ti é este mar.

Há um Duarte Pacheco em eu gostar
de ti. Há um saber pela experiência
o que em muitos é só um efabular.
Que de naugrágios é feita esta ciência

que é eu gostar de ti como um buscar
as índias que afinal eram aqui.
Ai terras de Aquém-Mar (a-quem-amar)

naus a voltar no meu gostar de ti:
levai-me ao velho pinho do meu lar
eu o vi longe e nele me perdi.


Manuel Alegre

quinta-feira, 9 de maio de 2019




Bored


All those times I was bored
out of my mind. Holding the log
while he sawed it. Holding
the string while he measured, boards,
distances between things, or pounded
stakes into the ground for rows and rows
of lettuces and beets, which I then (bored)
weeded. Or sat in the back
of the car, or sat still in boats,
sat, sat, while at the prow, stern, wheel
he drove, steered, paddled. It
wasn't even boredom, it was looking,
looking hard and up close at the small
details. Myopia. The worn gunwales,
the intricate twill of the seat
cover. The acid crumbs of loam, the granular
pink rock, its igneous veins, the sea-fans
of dry moss, the blackish and then the graying
bristles on the back of his neck.
Sometimes he would whistle, sometimes
I would. The boring rhythm of doing
things over and over, carrying
the wood, drying
the dishes. Such minutiae. It's what
the animals spend most of their time at,
ferrying the sand, grain by grain, from their tunnels,
shuffling the leaves in their burrows. He pointed
such things out, and I would look
at the whorled texture of his square finger, earth under
the nail. Why do I remember it as sunnier
all the time then, although it more often
rained, and more birdsong?
I could hardly wait to get
the hell out of there to
anywhere else. Perhaps though
boredom is happier. It is for dogs or
groundhogs. Now I wouldn't be bored.
Now I would know too much.
Now I would know.

Margaret Atwood

As raparigas amam muito

As raparigas amam muito. Riem
atrás das mãos uma manhã inteira
para esconder o vermelho dos
beijos que alguém lhes roubou e
um nome que vão deixar escapar
entre as primeiras palavras que
disserem. Vestem do avesso os

aventais de chita e fazem o leite
sobrar do fervedor e o caldo ser
mais salgado do que o mar. Mas

é bonito vê-las caminhar descalças
ao longo do corredor, como se
pedissem um par para dançar. As

raparigas amam tanto. Sentam-se
em rodas de segredos uma tarde
inteira e esquecem no tanque os
colarinhos sujos das camisas, e os
cueiros, e uma barra de sabão a
derreter-se como o seu coração.

Mas é bonito vê-las beijar a boca
ao espelho no quarto das traseiras
e também a outra boca no retrato
que a seguir escondem amordaçado
na algibeira, não lhes cobice alguém
o que não tem. As raparigas amam

de mais. Deixam-se ficar sem dizer
nada uma noite inteira, bordando
no linho dos enxovais letras secretas
ao calor do fogão. E picam os dedos

distraídos nas agulhas que usaram
para descobrir o sexo de cada filho
que terão num jogo que jogaram
entre elas à tardinha. Mas é bonito

vê-las ao serão, quando o vento as
chama atrevido da cozinha e dão
um pulo seco na cadeira, e largam o

bordado e a lareira, e correm até à
porta a colher beijos que lhes deixam
risos nos lábios tão vermelhos como
as mais doces cerejas deste verão.

Maria do Rosário Pedreira


domingo, 5 de maio de 2019

Resultado de imagem para poetry cartoon

La poesia es un arma cargada de futuro

https://www.youtube.com/watch?v=q_b0myUpwpE


Cuando ya nada se espera
personalmente exaltante
mas se palpita y se sigue
más acá de la consciencia.
fieramente existiendo
ciegamente afirmando,
como un pulso que golpea
las tinieblas,
que golpea las tinieblas.
Cuando se miran de frente
los vertiginosos ojos
claros de la muerte,
se dicen las verdades, las bárbaras,
terribles, amorosas crueldades,
amorosas crueldades.
Poesía para el pobre,
poesía necesaria
como el pan de cada día,
como el aire que exigimos
trece veces por minuto,
para ser y en tanto somos
dar un sí que glorifica.
Porque vivimos a golpes
porque apenas sí nos dejan
decir que somos quien somos.
Nuestros cantares no pueden ser
sin pecado un adorno;
estamos tocando el fondo,
estamos tocando el fondo.
Maldigo la poesía
concebida como un lujo
cultural por los neutrales,
que lavándose las manos
se desentienden y evaden,
maldigo la poesía
de quien no toma partido,
partido hasta mancharse.
Hago mias las faltas
siento en mí a cuantos sufren
y canto respirando.
Canto y canto, y cantando
mas allá de mis penas
de mis penas personales
me ensancho, me ensancho.
Quiero dar os vida
provocar nuevos actos
y calculo por eso,
con técnica que puedo
me siento un ingeniero del verso
y un obrero que trabaja
con otros a España,
a España en sus aceros.
No es una poesía
gota a gota pensada,
no es un bello producto
no es un fruto perfecto,
es lo más necesario
lo que no tiene nombre;
son gritos en el cielo
y en la tierra son actos.
Porque vivimos a golpes
porque apenas sí nos dejan
decir que somos quien somos.
Nuestros cantares no pueden ser
sin pecado un adorno;
estamos tocando el fondo,
estamos tocando el fondo.
Gabriel Celaya

Tenta-me de novo


E por que haverias de querer minha alma
Na tua cama?
Disse palavras líquidas, deleitosas, ásperas
Obscenas, porque era assim que gostávamos.
Mas não menti gozo, prazer, lascívia
Nem omiti que a alma está além, buscando
Aquele Outro.
E te repito: por que haverias
De querer minha alma na tua cama?
Jubila-te da memória de coitos e de acertos.
Ou tenta-me de novo. Obriga-me.


Hilda Hilst

Remedia Amoris

Foi uma péssima ideia a de voltarmos a ver-nos. Não fizemos mais do que trocar insultos e culpar-nos de velhas e sórdidas histórias. Depois ...