domingo, 20 de janeiro de 2019

Carta a uma menina que queria ser poeta

A Matilde Rosa Araújo

Quando quiseres fazer um poema
não procures imitar ninguém
nenhum autor
cujas obras tenhas conhecido
ou mesmo
qualquer cantiga popular
cujo autor desconheças.

Não.
Não faças isso.

Quando quiseres fazer um poema
a única coisa de que precisas
é sentir essa vontade e depois
- só depois -
decidires-te.

Um poema pode ter muitas formas:
pode ser feito com palavras
muito bonitas
ou muito engraçadas
muito bem escritas e alinhadas
numa linda folha de papel
mas também pode ser rabiscado
ou com figuras.

Pode ser a preto e branco
ou a cores
pode ser a tinta
a lápis
a esferográfica
a ponta de feltro
sobre papel
plástico
lousa
pedras
sei lá
até pode ser de areia
de pano
de folhas
pode ser só feito com a voz
falado
cantado
murmurado
dito
só dentro da cabeça da gente
ou então representado no palco
com gestos
caretas várias
aos saltos
cambalhotas
ou imovelmente.

Um poema pode ser tudo isso
pode ter essas formas todas
porque a poesia está
onde a soubermos encontrar
ou colocar.

A poesia é uma coisa que está
ou tem de estar
dentro de nós
e que nós
por isso
podemos projectar em tudo.

A poesia não é só uma arte
é um princípio
quer dizer
uma lei da nossa sensibilidade.
O que a poesia exige de nós
é só uma coisa:
liberdade
porque a liberdade
é a lei mais importante da criação
a lei mais importante da felicidade.

A poesia é um acto livre
tem de ser um acto livre.
Mas também é um jogo
um conjunto de regras
que a nós próprios impomos
para com elas praticarmos
um acto que nos torna felizes.

Todas as formas de arte
nascem dessa liberdade
dessa iniciativa
que nos leva a criar
coisas
casas
livros
palavras.

A poesia é para sermos felizes
e comunicarmos
essa felicidade.
Quando a poesia
trata de assuntos tristes
está a queixar-se
da falta de alegria
dos momentos infelizes do mundo
que não deixam criar
realidades belas
novas
generosas.

No entanto
quando um poeta cria
um poema
um objecto
uma coisa qualquer
nesse momento exacto
não pensa em nada disso:
vive simplesmente um impulso
a que ele se entrega
e depois entrega ao mundo.

Por isso
se tudo o que te apetece
é simplesmente
deitares-te no chão
e olhar o céu
podes crer
também isso é poesia
e basta.

Ana Hatherly

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