terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

Engodo

A poesia não pode tratar de mim, nem eu da poesia.
Estou só, o poema está só,
o resto é dos vermes.
Estava à beira das ruas onde moram as palavras,
livros, cartas, notícias,
e esperava.
Sempre esperei.

As palavras, em formas claras ou escuras,
transformaram-se em alguém escuro ou mais claro.
Poemas passam por mim
e reconheciam-se como coisa.
Via-o e via-me.

Esta escravidão não tem fim.
Esquadrões de poemas procuram os seus poetas.
Vão errando sem comando pelo grande distrito das palavras
e esperam o engodo da sua forma
feita, perfeita, fechada,
concentrada e

intangível.

Cees Nooteboom


A ciência do amor

O amor é um acordo que nos escapa
premissas traficadas sem certeza noite fora
em casas devolutas, em temporais, em corpos que não o nosso
aluviões para tentar de forma contínua
num sofrimento corrosivo que ninguém consegue
não chamar também de alegria

Pensamos que quando chegasse as nossas vidas acelerariam
mas nem sempre é assim:
há emoções que nos aceleram
outras que nos abrandam

Um mês ou um século mais tarde
movem-se ainda,
tão subtilmente que não se notam

José Tolentino de Mendonça


Tomar partido

Maldigo la poesía concebida como un lujo
cultural por los neutrales
que, lavándose las manos, se desentienden y evaden.
Maldigo la poesía de quien no toma partido hasta mancharse.

(Gabriel Celaya)




Vuelvo


Con cenizas, con desgarros
con nuestra altiva paciencia,
con una honesta conciencia,
con enfado, con sospecha,
con activa certidumbre,
Pongo el pié en mi país.
Pongo el pié en mi país,
y en lugar de sollozar,
de moler mi pena al viento,
abro el ojo y su mirar,
y contengo el descontento.

Vuelvo hermoso, vuelvo tierno,
vuelvo con mi espera dura,
vuelvo con mis armaduras,
con mi espada, mi desvelo,
mi tajante desconsuelo,
mi presagio, mi dulzura.
Vuelvo con mi amor espeso,
vuelvo en alma y vuelvo en hueso,
a encontrar la patria pura,
al fin del último beso.

Vuelvo al fin sin humillarme,
sin pedir perdón ni olvido.
Nunca el hombre esta vencido,
su derrota es siempre breve,
un estímulo que mueve,
la vocación de su guerra,
pues la raza que destierra
y la raza que recibe,
le dirán al fin que el vive,
dolores de toda tierra.

Patricio Manns


quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

Viver sempre também cansa

Viver sempre também cansa.

O sol é sempre o mesmo e o céu azul
ora é azul, nitidamente azul,
ora é cinzento, negro, quase-verde...
Mas nunca tem a cor inesperada.

O mundo não se modifica.
As árvores dão flores,
folhas, frutos e pássaros
como máquinas verdes.

As paisagens também não se transformam.
Não cai neve vermelha,
não há flores que voem,
a lua não tem olhos
e ninguém vai pintar olhos à lua.

Tudo é igual, mecânico e exato.

Ainda por cima os homens são os homens.
Soluçam, bebem, riem e digerem
sem imaginação.

José Gomes Ferreira


quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

Dogfish

[...]

You don’t want to hear the story
of my life, and anyway
I don’t want to tell it, I want to listen

to the enormous waterfalls of the sun.

And anyway it’s the same old story 
a few people just trying,
one way or another,
to survive.

Mostly, I want to be kind.
And nobody, of course, is kind,
or mean,
for a simple reason.

And nobody gets out of it, having to
swim through the fires to stay in
this world.

[...]

Mary Oliver


Afirmas que brigámos

Afirmas que brigámos. Que foi grave.
Que o que dissemos já não tem perdão.
Que vais deixar aí a tua chave
E vais à cave içar o teu malão.

Mas como destrinçar os nossos bens?
Que livro? Que lembranças? Que papel?
Os meus olhos, bem vês, és tu que os tens.
Não te devolvo – é minha – a tua pele.

Achei ali um sonho muito velho,
Não sei se o queres levar, já está no fio.
E o teu casaco roto, aquele vermelho
Que eu costumo vestir quando está frio?

E a planta que eu comprei e tu regavas?
E o sol que dá no quarto de manhã?
É meu o teu cachorro que eu tratava?
É teu o meu canteiro de hortelã?

A qual de nós pertence este destino?
Este beijo era meu? Ou já não era?
E o que faço das praias que não vimos?
Das marés que estão lá à nossa espera?

Dividimos ao meio as madrugadas?
E a falésia das tardes de Novembro?
E as sonatas que ouvimos de mãos dadas?
De quem é esta briga? Não me lembro.

Rosa Lobato de Faria


Às vezes havia vento

Daquele rio a meus pés estava dito que não conheceria senão a margem onde nenhum barco se demora. Mas era ali que a flor quente do pampilho nos dava por cima do joelho e vinha até à água. Às vezes havia vento.

Eugénio de Andrade


É triste explicar um poema

É triste explicar um poema.
E inútil também.
Um poema não se explica.
É como um soco.
E. se for perfeito,
alimenta-te para toda a vida.

Hilda Hilst


[...]

As casas abandonam-se a si mesmas
fogem de si mesmas
um dia retornas
e a casa não está lá
está apenas o seu molde
casca ou carcaça
sais então à caça
da casa
em viagem
ou ficas lá
onde já não está

Ana Maria Marques


Remedia Amoris

Foi uma péssima ideia a de voltarmos a ver-nos. Não fizemos mais do que trocar insultos e culpar-nos de velhas e sórdidas histórias. Depois ...