domingo, 30 de dezembro de 2018


À sua passagem a noite é vermelha

À sua passagem a noite é vermelha
E a vida que temos parece
Exausta, inútil, alheia.

Ninguém sabe onde vai nem donde vem,
Mas o eco dos seus passos
Enche o ar de caminhos e de espaços
E acorda as ruas mortas.

Então o mistério das coisas estremece
E o desconhecido cresce
Como uma flor vermelha.

Sophia de Mello Breyner Andresen

sábado, 29 de dezembro de 2018


Canção de madrugar

https://www.youtube.com/watch?v=XEWIPaLf2I4

Não se casem, raparigas



Copla 1
Já viram um homem em pêlo
Sair de repente da casa de banho
Escorrendo por todos os pêlos
Com o bigode cheio de pena
Já viram um homem muito feio
A comer esparguete
Garfo em punho e ar de bruto
Com molho de tomate no colete
Quando são bonitos são idiotas
Quando são velhos são horríveis
Quando são pequenos são maus
Já viram um homem gordo à beça
Extrair as pernas do ó-ó
Massajar a barriga e coçar as guedelhas
Olhando pensativo para os pés

Refrão 1
Não se casem raparigas não se casem
Façam antes cinema
Fiquem virgens em casa do papá
Sejam serventes no carvoeiro
Criem macacos criem gatos
Levantem a pata na Ópera
Vendam caixas de chocolate
Professem ou não professem
Dancem em pêlo para os gagás
Sejam matadoras na avenida do Bois
Mas não se casem raparigas
Não se casem

Copla 2
Já viram um homem à rasca
Chegar tarde para o jantar
Com baton no colarinho
E tremeliques nas gâmbias
Já viram no cabaret
Um senhor não muito fresco
Roçar-se com insistência
Numa florzinha de inocência
Quando são burros aborrecem
Quando são fortes fazem sports
Quando são ricos guardam o milho
Quando são duros torturam
Já viram ao vosso braço pendurado
Um magrizela de olhos de rato
Frisar os três pêlos do bigode
E empertigar-se com um ar de bode

Refrão 2
Não se casem raparigas não se casem
Vistam os vossos vestidos de gala
Vão dançar ao Olímpia
Mudem de amante quatro vezes por mês
Peguem na massa e guardem-na
Escondam-na fresca debaixo do colchão
Aos cinquenta anos pode servir
Para sacar belos rapazes
Nada na cabeça tudo nos braços
Ah que bela vida será
Se não se casarem raparigas
Se não se casarem

Boris Vian

quinta-feira, 27 de dezembro de 2018


Pergunto-te onde se acha a minha vida

Pergunto-te onde se acha a minha vida.
Em que dia fui eu. Que hora existiu formada
de uma verdade minha bem possuída.

Vão-se as minhas perguntas aos depósitos do nada.

E a quem é que pergunto? Em quem penso, iludida
por esperanças hereditárias? E de cada
pergunta minha vai nascendo a sombra imensa
que envolve a posição dos olhos de quem pensa.

Já não sei mais a diferença
de ti, de mim, da coisa perguntada,
do silêncio da coisa irrespondida.

Cecília Meireles

Cansaço

O que há em mim é sobretudo cansaço —
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.

A subtileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto em alguém,
Essas coisas todas —
Essas e o que falta nelas eternamente —;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço.

Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada —
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...

E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço,
Íssimno, íssimo, íssimo,
Cansaço...

Álvaro de Campos


domingo, 23 de dezembro de 2018

domingo, 16 de dezembro de 2018


One Art


The art of losing isn’t hard to master;

so many things seem filled with the intent

to be lost that their loss is no disaster.


Lose something every day. Accept the fluster

of lost door keys, the hour badly spent.

The art of losing isn’t hard to master.

Then practice losing farther, losing faster:


places, and names, and where it was you meant

to travel. None of these will bring disaster.

I lost my mother’s watch. And look! my last, or

next-to-last, of three loved houses went.


The art of losing isn’t hard to master.

I lost two cities, lovely ones. And, vaster,

some realms I owned, two rivers, a continent.

I miss them, but it wasn’t a disaster.


—Even losing you (the joking voice, a gesture

I love) I shan’t have lied. It’s evident

the art of losing’s not too hard to master 

though it may look like (Write it!) like disaster.


Elizabeth Bishop


sábado, 15 de dezembro de 2018

Vincent, oh, Vincent...

https://www.youtube.com/watch?v=nkvLq0TYiwI

Starry, starry night
Paint your palette blue and gray
Look out on a summer's day
With eyes that know the darkness in my soul
Shadows on the hills
Sketch the trees and the daffodils
Catch the breeze and the winter chills
In colors on the snowy linen land
Now I understand what you tried to say to me
And how you suffered for your sanity
How you tried to set them free
They would not listen, they did not know how
Perhaps they'll listen now
Starry, starry night
Flaming flowers that brightly blaze
Swirling clouds in violet haze
Reflect in Vincent's eyes of china blue
Colors changing hue
Morning fields of amber grain
Weathered faces lined in pain
Are soothed beneath the artist's loving hand

Now I understand what you tried to say to me
And how you suffered for your sanity
And how you tried to set them free
They would not listen, they did not know how
Perhaps they'll listen now
For they could not love you
But still your love was true
And when no hope was left inside
On that starry, starry night
You took your life as lovers often do
But I could have told you, Vincent
This world was never meant
For one as beautiful as you
Starry, starry night
Portraits hung in empty halls
Frameless heads on nameless walls
With eyes that watch the world and can't forget
Like the strangers that you've met
The ragged men in ragged clothes
A silver thorn, a bloody rose
Lie crushed and broken on the virgin snow
Now I think I know what you tried to say to me
And how you suffered for your sanity
And how you tried to set them free
They would not listen, they're not listening still
Perhaps they never will

Don McLean

A forma justa

Sei que seria possível construir o mundo justo
As cidades poderiam ser claras e lavadas
Pelo canto dos espaços e das fontes
O céu o mar e a terra estão prontos
A saciar a nossa fome do terrestre
A terra onde estamos — se ninguém atraiçoasse — proporia
Cada dia a cada um a liberdade e o reino
— Na concha na flor no homem e no fruto
Se nada adoecer a própria forma é justa
E no todo se integra como palavra em verso
Sei que seria possível construir a forma justa
De uma cidade humana que fosse
Fiel à perfeição do universo

Por isso recomeço sem cessar a partir da página em branco
E este é meu ofício de poeta para a reconstrução do mundo

Sophia de Mello Breyner Andresen

quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

terça-feira, 11 de dezembro de 2018


Maldivas


Os vendilhões do templo

Deus disse: faz todo o bem
Neste mundo, e, se puderes,
Acode a toda a desgraça
E não faças a ninguém
Aquilo que tu não queres
Que, por mal, alguém te faça.

Fazer bem não é só dar
Pão aos que dele carecem
E à caridade o imploram,
É também aliviar
As mágoas dos que padecem,
Dos que sofrem, dos que choram.

E o mundo só pode ser
Menos mau, menos atroz,
Se conseguirmos fazer
Mais p'los outros que por nós.

Quem desmente, por exemplo,
Tudo o que Cristo ensinou.
São os vendilhões do templo
Que do templo ele expulsou.

E o povo nada conhece...
Obedece ao seu vigário,
Porque julga que obedece
A Cristo — o bom doutrinário.

António Aleixo


domingo, 9 de dezembro de 2018


Eu



Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada... a dolorida...

Sombra de névoa ténue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!...

Sou aquela que passa e ninguém vê...
Sou a que chamam triste sem o ser...
Sou a que chora sem saber porquê...

Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo para me ver
E que nunca na vida me encontrou! 


Florbela Espanca

quinta-feira, 6 de dezembro de 2018


Futuros amantes

https://www.youtube.com/watch?v=WCnArLi3uCk


"Eu estava mexendo no violão, comecei a fazer a melodia, e a primeira coisa que apareceu foi exatamente cidade submersa, isolada de tudo... Porque cantarolando parecia cidade submersa, parecia que a música queria dizer isso. E eu tinha que ir atrás depois, tinha que explicar essa cidade submersa, tinha que criar uma história. Apareceu essa cidade submersa exatamente antes de qualquer coisa. Aí eu coloquei esses escafandristas e esse amor adiado, esse amor que fica para sempre, né? Essa ideia do amor que existe como algo que pode ser aproveitado mais tarde, que não se desperdiça. Passa-se o tempo, passam-se milênios, e aquele amor vai ficar até debaixo d'água. E vai ser usado por outras pessoas. Amor que não foi utilizado. Porque não foi correspondido, então ele fica ímpar, pairando ali, esperando que alguém o apanhe e complete a sua função de amor."    Chico Buarque

Cantiga para não morrer

Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve.
 
Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.
 
Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.
 
E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.

Ferreira Gullar

quarta-feira, 5 de dezembro de 2018




Cinco espaços de sono

À noite há naturalmente as sete maravilhas do mundo e a grandeza e o trágico e o encanto.
Nela as florestas chocam-se confusamente com criaturas de lenda escondidas nos bosques.
E existes tu.

Na noite há o passo do caminhante e o do assassino e o do agente de polícia e a luz do revérbero e a da lanterna do trapeiro.
E existes tu.

Na noite passam os comboios e os barcos e a miragem dos países onde é dia.
Os derradeiros sopros do crepúsculo e os primeiros arrepios da aurora.
E existes tu.
Uma ária de piano, um brilho de voz.
Uma porta range. Um relógio.
E não somente os seres e as coisas e os ruídos materiais.
Mas ainda eu que me persigo ou sem cessar me ultrapasso.
Existes tu a imolada, tu que eu espero.

Por vezes estranhas figuras nascem no instante do sono e desaparecem.
Quando cerro os olhos, florações fosforescentes aparecem e murcham e renascem como carnosos fogos de artifício.
Países desconhecidos que percorro em companhia de criaturas.

E existes tu sem dúvida, ó bela e discreta espia.
E a alma palpável do espaço.
E os perfumes do céu e das estrelas e o canto do galo de há 2000 anos e o choro do pavão em parques em chama e beijos.
Mãos que se apertam sinistramente numa luz baça e eixos que rangem sobre estradas medusantes.

Existes tu sem dúvida, que não conheço, que conheço ao contrário.
Mas que, presente nos meus sonhos, te obstinas a neles se deixar adivinhar sem aparecer.
Tu que permaneces inapreensível na realidade e no sonho.
Tu que me pertences por minha vontade de te possuir em ilusão, mas que não aproximas o teu rosto do meu, como os meus olhos fechados tanto ao sonho como à realidade.
Tu que a despeito de uma retórica fácil em que a onda morre nas praias, em que a gralha voa em fábricas em ruínas, em que a madeira apodrece rachando-se sob um sol de chumbo.
Tu que estás na base dos meus sonhos e que excitas o meu espírito pleno de metamorfoses e que me deixas a tua luva quando beijo a tua mão.
À noite há as estrelas e o movimento tenebroso do mar, dos rios, das florestas, das idades, das relvas, dos pulmões de milhões e milhões de seres.
À noite há as maravilhas do mundo.
À noite não há anjos da guarda, mas há o sono.

À noite existes tu.
De dia também.

Robert Desnos
 

terça-feira, 4 de dezembro de 2018


Teresa


A primeira vez que vi Teresa
Achei que ela tinha pernas estúpidas
Achei também que a cara parecia uma perna
Quando vi Teresa de novo
Achei que os olhos eram muito mais velhos que o resto do corpo
(Os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que o resto do corpo nascesse)
Da terceira vez não vi mais nada
Os céus se misturaram com a terra
E o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas.
Manuel Bandeira

segunda-feira, 3 de dezembro de 2018



Há cidades de pérola onde as mulheres

Há cidades cor de pérola onde as mulheres
existem velozmente. Onde
às vezes param, e são morosas
por dentro. Há cidades absolutas,...
trabalhadas interiormente pelo pensamento
das mulheres.
Lugares límpidos e depois nocturnos,
vistos ao alto como um fogo antigo,
ou como um fogo juvenil.
Vistos fixamente abaixados nas águas
celestes.
Há lugares de um esplendor virgem,
com mulheres puras cujas mãos
estremecem. Mulheres que imaginam
num supremo silêncio, elevando-se
sobre as pancadas da minha arte interior.

Há cidades esquecidas pelas semanas fora.
Emoções onde vivo sem orelhas
nem dedos. Onde consumo
uma amizade bárbara. Um amor
levitante. Zona
que se refere aos meus dons desconhecidos.
Há fervorosas e leves cidades sob os arcos
pensadores. Para que algumas mulheres
sejam cândidas. Para que alguém
bata em mim no alto da noite e me diga
o terror de semanas desaparecidas.
Eu durmo no ar dessas cidades femininas
cujos espinhos e sangues me inspiram
o fundo da vida.
Nelas queimo o mês que me pertence.
A minha loucura, escada
sobre escada.
Mulheres que eu amo com um desespero
fulminante, a quem beijo os pés
supostos entre pensamento e movimento.
Cujo nome belo e sufocante digo com terror,
com alegria. Em que toco levemente
a boca brutal.
Há mulheres que colocam cidades doces
e formidáveis no espaço, dentro
de ténues pérolas.
Que racham a luz de alto a baixo
e criam uma insondável ilusão.

Dentro de minha idade, desde
a treva, de crime em crime - espero
a felicidade de loucas delicadas
mulheres.
Uma cidade voltada para dentro
do génio, aberta como uma boca
em cima do som.
Com estrelas secas.
Parada.
Subo as mulheres aos degraus.
Seus pedregulhos perante Deus.
É a vida futura tocando o sangue
de um amargo delírio.
Olho de cima a beleza genial
de sua cabeça
ardente: - E as altas cidades desenvolvem-se
no meu pensamento quente.

Herberto Helder


Remedia Amoris

Foi uma péssima ideia a de voltarmos a ver-nos. Não fizemos mais do que trocar insultos e culpar-nos de velhas e sórdidas histórias. Depois ...