Formigas
ou
A morte explicada às criancinhas 
 1 
 Vê-se primeiro uma só formiga,
só uma. 
 Parece perdida, enleada nas ervas,
movendo-se indecisa atrás e adiante,
sem saber muito bem que direcção tomar. 
 Lembra um turista que não sabe exactamente
em que país se encontra
nem entende a língua que ali se fala,
( nem os nativos a dele),
e procura orientar-se consultando
um guia hostil num lugar hostil.  
2 
 Mas na verdade a formiga não está só.
Reparando melhor,
vêem-se por perto mais duas ou três,
com a mesma aparência irresoluta
e igualmente em busca de um sentido
para a sua errância — 
 — porque há uma voz que as arregimenta,
lhes fala de um destino prometido
às formigas desde o início de tudo.  
3 
 Só mais tarde se percebe que essas poucas
formigas desgarradas fazem na verdade
parte de um plano inexorável
e anunciam o que está para chegar. 
 Elas são as batedoras
de um exército zeloso de milhões de soldados
que vão sem se deter aonde aquela voz
as leva: rato morto ou boião de compota. 
 Todo o comestível é um destino idóneo.  
4 
 Como nada há na natureza que não tenha
um sentido encoberto, ou que não seja
espelho de alguma coisa mais vasta
e mais severa — 
 — estas formigas rapaces e em tropel,
que cumprem ordens sem cuidar de quem as dá,
são na verdade uma recordatória
de que, por mais insecticidas que inventemos,
acabaremos os dias
debatendo-nos entre as tenebrosas peças
bucais da Grande Formiga. 
 A. M. Pires Cabral