terça-feira, 31 de julho de 2018

Porque

Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão
Porque os outros têm medo mas tu não

Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.

Sophia de Mello Breyner Andresen

quinta-feira, 26 de julho de 2018

Ivan Serpa


Nós, homens, não sabemos mentir.

Os gregos diziam que depois do amor todo o macho é triste menos o galo. Já viu como os machos se afastam logo. Até os homens se levantam logo com desculpas várias... E as mulheres querem ficar abraçadas. Uma relação monogâmica é uma coisa muito boa. Deixa de haver mentiras. Nós, homens, não sabemos mentir. Dizemos uma coisa e passados 15 dias dizemos outra completamente diferente, porque entretanto já nos esquecemos. Mas elas não se esqueceram. O meu avô foi apaixonado pela mulher toda a vida. Deve ser tão bom, tão bom. Um homem sozinho não pode ser feliz. (...) As mulheres são muito mais fortes do que os homens. Aguentam muito melhor a solidão. São mais corajosas diante da doença. Vi isso quando estava a fazer quimioterapia.

António Lobo Antunes
in 'Entrevista Jornal Expresso (19 de fevereiro de 2017)


quarta-feira, 25 de julho de 2018

Elegia




Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,
onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo.
Praticas laboriosamente os gestos universais,
sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.
Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas,
e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção.
À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze
ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas.
Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra
e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.
Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina
e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.
Caminhas entre mortos e com eles conversas
sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito.
A literatura estragou tuas melhores horas de amor.
Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.
Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota
e adiar para outro século a felicidade coletiva.
Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição
porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.

Carlos Drummond de Andrade (1938) 

terça-feira, 24 de julho de 2018

You'll never know

https://www.youtube.com/watch?v=pC1OI9a5fdg

Evelyne Dominault


O lado de fora

Eu não procuro nada em ti, 
nem a mim próprio, 
é algo em ti  que procura algo em ti
no labirinto dos meus pensamentos. 

Eu estou entre ti e ti, 
a minha vida, os meus sentidos
(principalmente os meus sentidos) 
toldam de sombras o teu rosto.
 
O meu rosto não reflecte a tua imagem 
o meu silêncio não te deixa falar, 
o meu corpo não deixa que se juntem
as partes dispersas de ti em mim. 

Eu sou talvez 
aquele que procuras,  
e as minhas dúvidas a tua voz
chamando do fundo do meu coração. 

Manuel António Pina


segunda-feira, 23 de julho de 2018

Caspar David Friedrich, Wanderer above the sea of fog


Da viagem

A dada altura ele diz-me: “A razão porque nós somos muitos amigos é porque somos dois homens que viajaram muito. As pessoas que viajem muito tornam-se amigas…” Qualquer coisa assim, já não me lembro ao certo. Disse que estávamos irmanados por termos viajado muito. E eu comecei a pensar que não tinha viajado assim tanto como isso. - Este homem com certeza viajou muito mais do que eu. E disse-lhe: “Pai (tratava-o por pai, porque ele perfilhou-me) eu não viajei assim tanto. Estive em Amesterdão, em Paris… O pai deve ter viajado muito mais do que eu.” E ele volta-se para mim e diz-me: “Eu!? Eu nunca saí desta aldeia.” 

António Barahona
(entrevista ao jornal i, 23/07/2018)


domingo, 22 de julho de 2018

Ítaca ou a Travessia XIV, Carolina Busquets


Ítaca

Quando partires de regresso a Ítaca,
deves orar por uma viagem longa,
plena de aventuras e de experiências.
Ciclopes, Lestregónios, e mais monstros,
um Poseidon irado – não os temas,
jamais encontrarás tais coisas no caminho,
se o teu pensar for puro, e se um sentir sublime
teu corpo toca e o espírito te habita.
Ciclopes, Lestregónios, e outros monstros,
Poseidon em fúria – nunca encontrarás,
se não é na tua alma que os transportes,
ou ela os não erguer perante ti.

Deves orar por uma viagem longa.
Que sejam muitas as manhãs de Verão,
quando, com que prazer, com que deleite,
entrares em portos jamais antes vistos!
Em colónias fenícias deverás deter-te
para comprar mercadorias raras:
coral e madrepérola, âmbar e marfim,
e perfumes subtis de toda a espécie:
compra desses perfumes quanto possas.
E vai ver as cidades do Egipto,
para aprenderes com os que sabem muito.

Terás sempre Ítaca no teu espírito,
que lá chegar é o teu destino último.
Mas não te apresses nunca na viagem.
É melhor que ela dure muitos anos,
que sejas velho já ao ancorar na ilha,
rico do que foi teu pelo caminho,
e sem esperar que Ítaca te dê riquezas.

Ítaca deu-te essa viagem esplêndida.
Sem Ítaca, não terias partido.
Mas Ítaca não tem mais nada para dar-te.
Por pobre que a descubras, Ítaca não te traiu.
Sábio como és agora, senhor de tanta experiência,
terás compreendido o sentido de Ítaca.

Konstantínos Kaváfis
(tradução de Jorge de Sena)


sábado, 21 de julho de 2018

A Ponte do Encontro, Carla Sá Fernandes


Em todas as ruas te encontro



Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco 

conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto    tão perto    tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco

Mário Cesariny, in "Pena Capital" 


sexta-feira, 20 de julho de 2018

O nascer do sol, Claude Monet


Aos amigos

Amo devagar os amigos que são tristes com cinco dedos de cada lado.
Os amigos que enlouquecem e estão sentados, fechando os olhos,
com os livros atrás a arder para toda a eternidade.
Não os chamo, e eles voltam-se profundamente
dentro do fogo.
̶  Temos um talento doloroso e obscuro.
construímos um lugar de silêncio.
De paixão.

Herberto Helder


Remedia Amoris

Foi uma péssima ideia a de voltarmos a ver-nos. Não fizemos mais do que trocar insultos e culpar-nos de velhas e sórdidas histórias. Depois ...