sexta-feira, 31 de agosto de 2018

Cala Tuent, Maiorca


Tu perguntas, e eu não sei

Tu perguntas, e eu não sei,
eu também não sei o que é o mar.

É talvez uma lágrima caída dos meus olhos
ao reler uma carta, quando é de noite.
Os teus dentes, talvez os teus dentes,
miúdos, brancos dentes, sejam o mar,
um mar pequeno e frágil,
afável, diáfano,
no entanto sem música.

É evidente que minha mãe me chama
quando uma onda e outra onda e outra
desfaz o seu corpo contra o meu corpo.
Então o mar é carícia,
luz molhada onde desperta
meu coração recente.

Às vezes o mar é uma figura branca
cintilando entre os rochedos.
Não sei se fita a água
ou se procura
um beijo entre conchas transparentes.

Não, o mar não é nardo nem açucena.
É um adolescente morto
de lábios abertos aos lábios de espuma.
É sangue,
sangue onde a luz se esconde
para amar outra luz sobre as areias.

Um pedaço de lua insiste,
insiste e sobe lenta arrastando a noite.
Os cabelos de minha mãe desprendem-se,
espalham-se na água,
alisados por uma brisa
que nasce exactamente no meu coração.
O mar volta a ser pequeno e meu,
anémona perfeita, abrindo nos meus dedos.

Eu também não sei o que é o mar.
Aguardo a madrugada, impaciente,
os pés descalços na areia.

Eugénio de Andrade

quinta-feira, 30 de agosto de 2018

Sacode as nuvens que te poisam nos cabelos

Sacode as nuvens que te poisam nos cabelos,
Sacode as aves que te levam o olhar.
Sacode os sonhos mais pesados do que as pedras.
Porque eu cheguei e é tempo de me veres,
Mesmo que os meus gestos te trespassem
De solidão e tu caias em poeira,
Mesmo que a minha voz queime o ar que respiras
E os teus olhos nunca mais possam olhar.

Sophia de Mello Breyner Andresen

quarta-feira, 29 de agosto de 2018

Jorge Rodrigues


Meu amor

Meu amor meu amor
meu profundo segredo
*
meu secreto recanto
meu lamor mais sedento
*
Meu amor meu amor
minha sede mais pura
*
meu corpo
meu invento
*
meu futuro lamento
minha grande ternura

Maria Teresa Horta


O que está escrito no mundo

O que está escrito no mundo está escrito de lado
a lado do corpo 
- e tu, pura alucinação da memória,
entras no meu coração como um braço vivo:

o dia traz as paisagens de dentro delas,
a noite é um grande
buraco selvagem 
- e a voz agarra em todo o espaço,
desde o epicentro às constelações

Herberto Helder


sábado, 11 de agosto de 2018

Muro


O muro é branco

O muro é branco
e bruscamente
sobre o branco do muro cai a noite.
Há uma cavalo próximo do silêncio,
uma pedra fria sobre a boca,
pedra cega de sono.
Amar-te-ia se viesses agora
ou inclinasses
o teu rosto sobre o meu tão puro
e tão perdido,
ó vida.

Eugénio de Andrade

Perguntas de um operário que lê



Quem construiu Tebas, a de sete portas?
Nos livros, ficam os nomes dos reis.
Os reis arrastaram os blocos de pedra?
Babilónia, muitas vezes destruída,
Quem a reconstruiu tantas vezes? Em que casas
De Lima aurirradiosa moravam os operários?
Para onde foram, na noite em que ficou pronta a Muralha da China,
Os pedreiros? A grande Roma
Está cheia de arcos de triunfo. Quem os erigiu? Sobre quem
Triunfaram os Césares? Bizâncio multicelebrada
Tinha apenas palácios para os seus habitantes? Mesmo na lendária Atlântida,
Na noite em que o mar a sorveu,
Os que se afogavam gritavam pelos seus escravos.
O jovem Alexandre conquistou a Índia.
Ele sozinho?
César bateu os gauleses.
Não levava pelo menos um cozinheiro consigo?
Felipe de Espanha chorou, quando a sua armada
Se afundou. Ninguém mais teria chorado?
Frederico II venceu a Guerra dos Sete Anos. Quem
A venceu com ele?
Por todo o lado uma vitória.
Quem cozinhou o banquete da vitória?
Em cada década, um grande homem.
Quem pagou as despesas?

Histórias de mais.
Perguntas de menos.

Bertolt Brecht

Remedia Amoris

Foi uma péssima ideia a de voltarmos a ver-nos. Não fizemos mais do que trocar insultos e culpar-nos de velhas e sórdidas histórias. Depois ...