sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Sai de casa


Rasga este poema depois de o leres.
E depois espalha os bocados
Pelo vasto mundo
Ou então na tua rua, vai à aldeia, à praia,
Atira-o ao mar, deita-o ao lixo,
Para que venha o vento, o sol, a chuva, os homens do lixo,
Acabar com ele de vez.
Passado um dia,
Sai de casa e procura
Encontrá-lo de novo.

Manuel Resende

quarta-feira, 29 de janeiro de 2020


A noite dos alquimistas by Fausto


https://www.youtube.com/watch?v=EqUH6BcEtx0

João Miguel Fernandes Jorge


A zona de pausa

Tens de a ter, caso contrário, as paredes
cercar-te-ão.
tens de desistir de tudo, deitar
fora, deitar tudo fora.
tens de olhar para o que estás a olhar
ou pensar no que estás a pensar
ou fazer o que estás a fazer
ou
a não fazer
sem considerar proveito
pessoal
sem aceitar orientação.

as pessoas estão consumidas com
o esforço,
escondem-se em hábitos
comuns.
as suas preocupações são preocupações de
manada.
poucos têm capacidade de olhar
para um sapato velho durante
dez minutos
ou de pensar em coisas estranhas
como: quem é que inventou
a maçaneta?
tornam-se desvivas
por serem incapazes de fazer
uma pausa
de se desarmarem
de se desdobrarem
de desverem
de desaprenderem
de se exporem.
escuta o seu riso
falso, depois
vai-te
embora.

Charles Bukowski
(trad. de Rosalina Marshall)

terça-feira, 28 de janeiro de 2020

Não haver palavras és tu a desaparecer

A quem senão a ti direi
como estou triste? Mas se a tristeza vem
de tu não estares, como ta direi, como hei-
de juntar o que me está doendo ao ven-
to que não bate mais à tua porta? Eu sei
que a tristeza é só isto, é só isto,
o descoincidir consigo mesmo, eu sei,
descoincidir com os outros, estava previsto
porque dentro de si o mundo não coincide e
não há senão tristeza. Em cada um está Cristo
sempre abandonado, cada um abandonado
a si mesmo, sem princípio e sem fim,
pois no princípio o amor era dado
promessa de te ter sempre junto a mim
não ausência, nem dor, nem habitado
ser por todo este absurdo. Morrer
um pouco, disse, sem saber o que dizia
pois eram só palavras, como se a prometer
tudo aquilo que havia e não havia.
Não haver palavras és tu a desaparecer.

Bernardo Pinto de Almeida


sábado, 25 de janeiro de 2020

Não entres como turista no coração de uma mulher

Não entres como turista no coração de uma mulher -
a tirar fotos,
a deixar latas de cerveja,
procurando apenas catedrais imensas
e estátuas transparentes,
com a mochila cheia de mapas
e fazendo refeições rápidas;
há um país
sete cidades
uma cordilheira e um inverno
no coração de uma mulher.
não bebas lá apenas um copo de Mar.
não entres de avião:
apanha o comboio da meia lua;
não reveles lá as tuas fotos numa hora;
se não fizer demasiado frio
entra nu,
não leves guarda-chuva
e sobretudo não cortes árvores
no coração de uma mulher
não costumam voltar a crescer.

José María Zonta


Aqui, onde agora habito

Aqui, onde agora habito
o vazio não para de se queixar.
Não arranja nada para fazer
e não tem casa.

Adonis (trad.: Nuno Júdice)

quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

Estrela


Legenda
para aquela estrela
azul
e fria
que me apontaste
já de madrugada:
amar
é entristecer
sem corrompermos
nada.


Carlos de Oliveira

(Prefiro o Inácio)



Prefiro o Inácio,
a quase todos os poetas que conheço.
Não sei se morreu ou se já não vive
- pois foi proibido de beber
e de fumar, e o Inácio era
essencialmente isso: um grande bêbado
e um fumador diligente, que ensinara
o cão a ir junto da taberneira buscar-lhe
novo maço de tabaco. Quem viu, acredita.
Quem não viu, falhou o milagre.


Manuel de Freitas

As armas



Muitos armam-se para a guerra.
É necessário.
Outros armam-se para o mundo.
É preciso.
Alguns armam-se para a morte.
É natural.
Tu armas-te para o amor
e estás tão indefeso
para a guerra,
para o mundo,
para a morte.

Luz Helena Cordero

quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

Quem vive para o amor está lixado

Quem vive para o amor está lixado
não tarda, que o amor é um amplo espaço
vazio sem cor nem forma e um silêncio
tumular por dentro. Mau, muito mau
para se levar alguém. Mas tu vieste
e de imediato tudo fôra já decidido
como quando alguém nasce e olha em torno
– pouco importa se estranha ou não a paisagem.
Tínhamos o nosso espaço e tínhamo-nos
a nós, um ao outro por natural companhia
era o amor, tudo indicava. Podia-se morrer
disso. E tínhamos o tempo todo para ver.

Rui Caeiro


domingo, 12 de janeiro de 2020

Reduzir a dependência das coisas

Tudo consiste em reduzir a dependência das coisas.
Partes amanhã. Não mais nos veremos. Um pouco o
desertor a cada passagem da nossa alma ou
quem espera para morrer.

A aquisição de todos estes bens
as espécies de tristeza são o que
acompanha quem espera — quais as pretendidas
vantagens? a juventude ou o mar?

Que te importa o que posso ou não fazer? Se
estamos tão perto quando nas ruas cruzamos e dizemos
o herói de toda a circunstância — a tua vida
precede a minha a tua morte ao abrigo das paixões
mas nada disto é dito
animal que repousa sob o erro.

Pela última vez
põe os teus sapatos novos
tão contrários à fonte dos actos e à moral
e vem, mesmo que tenhas andado para lá do som,
lavadinho, para que eu possa passar a minha mão
pelo pêlo
pelo pêlo lugar também do saber e de toda a possessão.

João Miguel Fernandes Jorge

Falhar melhor


Falhar outra vez. Falhar melhor. 
(Samuel Beckett)


Falhar melhor,
não sei mas falhar
sempre

exige muita pontaria.


Marta Magalhães




sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

Ano Novo

Meia-noite. Fim
de um ano, início
de outro. Olho o céu:
nenhum indício.
Olho o céu:
o abismo vence o
olhar. O mesmo
espantoso silêncio
da Via-Láctea feito
um ectoplasma
sobre a minha cabeça
nada ali indica
que um ano novo começa.
E não começa
nem no céu nem no chão
do planeta:
começa no coração.
Começa como a esperança
de vida melhor
que entre os astros
não se escuta
nem se vê
nem pode haver:
que isso é coisa de homem
esse bicho
estelar
que sonha
(e luta).

Ferreira Gullar

Ano Novo

Ficção de que começa alguma coisa!
Nada começa: tudo continua.
Na fluida e incerta essência misteriosa
Da vida, flui em sombra a água nua.

Curvas do rio escondem só o movimento.
O mesmo rio flui onde se vê.
Começar só começa em pensamento.

Fernando Pessoa

The storm (Bear)

Now through the white orchard my little dog romps, breaking the new snow with wild feet. Running here, running there, excited, hardly able t...