segunda-feira, 25 de outubro de 2021

A humildade

a humildade
o desenfreio em tipo pequeno
antídoto aos dédalos
assoma
assombra
ensombra

oh que embargo
que aspas
que estacionário capricho

Ana Hatherly


sábado, 23 de outubro de 2021

Milord

Allez, venez, Milord!

Vous asseoir à ma table
Il fait si froid, dehors
Ici c'est confortable
Laissez-vous faire, Milord
Et prenez bien vos aises
Vos peines sur mon cœur
Et vos pieds sur une chaise
Je vous connais, Milord
Vous n'm'avez jamais vue
Je n'suis qu'une fille du port
Qu'une ombre de la rue

https://www.youtube.com/watch?v=Yo9-M22-C2E 


Eu sabia por ela as estações



Eu sabia por ela as estações

os esquilos os corvos as gaivotas.

Chegada a primavera abria os nós

em flores precipitadas e carnudas

de longas redondezas tacteantes

que batiam no vidro da janela.

Não dava fruto a minha castanheira

e na verdade não era sequer minha

ou só seria porque nos olhámos

cada manhã por mais de trinta anos.

Mas dava flores e esquilos e gaivotas

verão outono corvos primavera

sem contabilidades biológicas

doutras fertilidades transmissíveis.

Dava flores como se desse versos

sem precisar por isso de escrevê-los

como os amantes se amam num só corpo

sem ver onde um começa e o outro acaba

aberta toda em lábios vaginais

com uterinos longos falos brancos.

Também este ano floriu no tempo certo.

Mas o inverno chegou em plenas maias.

Disseram que a raiz rachou ao meio

que o centro do seu tronco estava oco

não percebiam como tinha flores.

Cortaram membro a membro a minha árvore

ficou só a raiz e o seu vazio

e sobre o campo em volta a neve quente

das suas flores perplexas

impossíveis.


Helder Macedo



terça-feira, 19 de outubro de 2021

1970 (retrato)


A minha geração, já se calou, já se perdeu, já amuou,
Já se cansou, desapareceu, ou então casou, ou então mudou
Ou então morreu: já se acabou.

A minha geração de hedonistas e de ateus, de anticlubistas,
De anarquistas, deprimidos e de artistas e de autistas
Estatelou-se docemente contra o céu.

A minha geração ironizou o coração, alimentou a confusão
Brincou às mil revoluções amando gestos e protestos e canções,
Pelo seu estilo controverso.

(...)

JP Simões


Escrito de memória

1. Um pequeno depósito de incredulidade no fundo dos teus olhos.

2. Um breve estremecimento no movimento
do coração (do meu coração).

3. A impressão de alguém olhando-te atrás de ti.

4. Uma voz familiar
num sítio cheio de gente.
(que só tu ouves dentro de ti).

5. Um súbito silêncio entre as
sílabas de certas palavras
que fica depois a pairar perto dos lábios.

6. A ignorância de alguma coisa
que ainda não sabes que não sabes.

7. Uma palavra só, aguardando,
uma palavra que basta dizer ou não dizer,
abrindo caminho entre ser e possibilidade.

8. O que não sou capaz de dizer dizendo-me.

9. Eu (um lugar vazio) para sempre; tu para sempre.

10. Outras duas pessoas
de que outras duas pessoas se lembram.

11. Esse país estrangeiro, o tempo.

Manuel António Pina




sexta-feira, 1 de outubro de 2021

Facebook love

Meu amor: sempre que entro no facebook
lembro-me de ti
e no entanto
eu sei
que digo coisas muito incompreensíveis
e não sou deste tempo.
Estou sozinho na frente deste ecrã onde alguém
comentou a tua última fotografia e não consigo
lembrar-me de uma frase normal e simpática
sozinho
apesar de hoje fazer um ano que nos conhecemos.
Não te culpo por não estarmos juntos neste momento
porque sei que a culpa não é tua, que vives noutra cidade
e que nem sequer o dinheiro sobra (apenas as saudades).
Escolhi um caminho errado para a minha vida,
porque todos os caminhos certos me pareceram
ainda mais errados. Assim, fiz tudo o que tinha que fazer,
ou seja, pensei e senti. Não preciso que compreendam as
minhas ideias mas do ser humano ocasional espero ainda
um pedaço de tempo para uma conversa sem pressas,
uma vez por mês, com um café ao alcance da mão.
À janela do estabelecimento, espreitando sempre,
há os pais dos outros e os filhos dos outros
e as casas
e contra ou a favor da história natural eu posso
nada.
Talvez viaje no próximo mês e a distância se
altere. Apetecia-me ir a pé de uma cidade a outra,
como dantes faziam os artistas e outras pessoas normais;
mas nas estradas grandes é proibido andar a pé e os
caminhos pequenos agora servem para amontoar
os habitantes da cidade que não encontraram ninguém
a quem entregar o seu amor. Enquanto decido,
a tua ausência sempre me vai fazendo alguma companhia.
Por favor cuida de ti,
tem cuidado a atravessar as ruas:
Deves saber que nunca tratei bem os mortos.

Rui Costa

Remedia Amoris

Foi uma péssima ideia a de voltarmos a ver-nos. Não fizemos mais do que trocar insultos e culpar-nos de velhas e sórdidas histórias. Depois ...