sexta-feira, 26 de novembro de 2021

Cavalo à solta

https://www.youtube.com/watch?v=SjKne-2SaHU&list=RDSjKne-2SaHU&start_radio=1

Minha laranja amarga e doce
Meu poema
Feito de gomos de saudade
Minha pena 
Pesada e leve
Secreta e pura
Minha passagem para o breve
Breve instante da loucura

Minha ousadia, meu galope, minha rédea,
Meu potro doido, minha chama, minha réstia
De luz intensa, de voz aberta
Minha denúncia do que pensa
Do que sente a gente certa
(...)

Ary dos Santos


quarta-feira, 24 de novembro de 2021

 




Presságio

O amor, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar p'ra ela,
Mas não lhe sabe falar.

Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há de dizer.
Fala: parece que mente...
Cala: parece esquecer...

Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
P'ra saber que a estão a amar!

Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!

Mas se isto puder contar-lhe
O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar...

Fernando Pessoa


terça-feira, 23 de novembro de 2021

domingo, 21 de novembro de 2021

Com que voz?

Essa voz que deixei perder
já não me procura;
e nada será jamais
tão simples e singular
como aquela voz modulada
e firme na sua insegurança,
tão indefesa como estar vivo.
Porque falo nisto agora?
Desista de me ler
quem busca um fio coerente,
uma afirmação rotunda
e concisa. Não tenho loja
com essa mercadoria.

Nem com mais nenhuma.
Procuro apenas o som nítido de uma voz,
entre todas as coisas que deixei perder.
Procuro.

Luís Filipe Castro Mendes

sábado, 20 de novembro de 2021

Súmula

Minha cabeça estremece com todo o esquecimento.
Eu procuro dizer como tudo é outra coisa.
Falo, penso.
Sonho sobre os tremendos ossos dos pés.
É sempre outra coisa, uma
só coisa coberta de nomes.
E a morte passa de boca em boca
com a leve saliva,
com o terror que há sempre
no fundo informulado de uma vida.

Sei que os campos imaginam as suas
próprias rosas.
As pessoas imaginam os seus próprios campos
de rosas. E às vezes estou na frente dos campos
como se morresse;
outras, como se agora somente
eu pudesse acordar.

Por vezes tudo se ilumina.
Por vezes canta e sangra.
Eu digo que ninguém se perdoa no tempo.
Que a loucura tem espinhos como uma garganta.
Eu digo: roda ao longe o outono,
e o que é o outono?
As pálpebras batem contra o grande dia masculino
do pensamento.

Deito coisas vivas e mortas no espírito da obra.
Minha vida extasia-se como uma câmara de tochas.

- Era uma casa - como direi? - absoluta.
(...)

Herberto Helder


sexta-feira, 19 de novembro de 2021

Numa estação de metro

A minha juventude passou e eu não estava lá.
Pensava em outra coisa, olhava noutra direcção.
Os melhores anos da minha vida perdidos por distracção!

Rosalinda, a das róseas coxas, onde está?
Belinda, Brunilda, Cremilda, quem serão?
Provavelmente professoras de Alemão
em colégios fora do tempo e do espaço!

Hoje, antigamente, ele tê-las-ia
amado de um amor imprudente e impudente,
como num sujo sonho adolescente
de que alguém, no outro dia, acordaria.

Pois tudo era memória, acontecia
há muitos anos, e quem se lembrava
era também memória que passava,
um rosto que entre outros rostos se perdia.

Agora, vista daqui, da recordação,
a minha vida é uma multidão
onde, não sei quem, em vão procuro
o meu rosto, pétala dum ramo húmido, escuro.

Manuel António Pina


quinta-feira, 18 de novembro de 2021

All I really want

(...)
Do I wear you out?
You must wonder why I'm relentless and all strung out
I'm consumed by the chill of solitary
I'm like Estella
I like to reel it in and then spit it out
I'm frustrated by your apathy
And I am frightened by the corrupted ways of this land
If only I could meet the maker
And I am fascinated by the spiritual man
I am humbled by his humble nature, yeah
(...)

https://www.youtube.com/watch?v=MPqGOtgvHrk


terça-feira, 16 de novembro de 2021

Finish

We are like roses that have never bothered to bloom 

when we should have bloomed and

it is as if

the sun has become disgusted with

waiting


Charles Bukowsky


Passou por nós este tempo todo


Passou por nós este tempo todo, a coisa
ridícula do estão-a-tocar-a-nossa-canção
desaba sobre nós como um trovão.
Passa-nos uma coisa pela cabeça e
lá vamos nós de cabeça meter-nos
na boca do lobo, atirar ao próprio pé,
meter um golo na própria baliza.

Mesmo ao ler duas linhas muito belas,
com a sombra do candeeiro a dar-lhe em cheio,
a breve palavra dos seus lábios era outra.
A simples música dos seus lábios era outra.
Essas linhas já não tinham, por assim dizer,
lógica nenhuma. E eu, tonto, lá ia.

A coisa é de tal forma que ainda hoje
lá vou, a esse rodeio de mistérios repetidos,
força magnética e fatal, onde foste buscar
tanto sangue para meter nas veias?
Que, grossas, despontam sobre a ira
das mãos assanhadas e assim te atraem.

Uma dança parada de costas duras, fasquia
dobrável com truque de mão, alguma coisa
me prende aqui, quem sabe se nesta casa
não descobri, sem querer, o eixo da terra,
o equador de uma alma relativamente pobre.

Helder Moura Pereira

 


terça-feira, 9 de novembro de 2021

Com licença poética


Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
-- dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.


Adélia Prado


segunda-feira, 8 de novembro de 2021

Pudesse eu não ter laços nem limites

Pudesse eu não ter laços nem limites
Ó vida de mil faces transbordantes
Para poder responder aos teus convites
Suspensos na surpresa dos instantes.

Sophia de Mello Breyner

quinta-feira, 4 de novembro de 2021

O que fazes aqui?

Pensei que te havia dito adeus,
um adeus definitivo, ao deitar-me
quando pude finalmente fechar os meus olhos
e esquecer-me de ti e das tuas artimanhas
de tua insistência, de tua baba ruim,
da tua capacidade de me anular.
Pensei que te havia dito adeus
para todo o sempre, e acordo
e encontro-te novamente junto a mim,
dentro de mim, envolvendo-me, ao meu lado,
invadindo-me, sufocando-me, diante
dos meus olhos, na minha vida
à minha sombra, nas minhas entranhas,
em cada pulso do meu sangue, entrando
pelo meu nariz quando eu respiro, espreitando 
pelas minhas pupilas, ateando fogo
nas palavras que a minha boca diz.
E agora, o que faço? Como poderia
banir-te de mim ou acostumar-me
a viver contigo? Comecemos
por demonstrar maneiras impecáveis.
Bom dia, tristeza.

Amalia Bautista


Remedia Amoris

Foi uma péssima ideia a de voltarmos a ver-nos. Não fizemos mais do que trocar insultos e culpar-nos de velhas e sórdidas histórias. Depois ...