domingo, 26 de dezembro de 2021

O lugar onde temos razão

Do lugar onde temos razão
jamais crescerão
flores na primavera.

O lugar onde temos razão
está pisoteado e duro
como um pátio.

Mas dúvidas e amores
escavam o mundo
como uma toupeira, como a lavradura.
E um sussurro será ouvido no lugar
onde houve uma casa
que foi destruída.

Yehuda Amichai


Poema inacabável

Many loved before us, I know
that we're not new...
- podia começar assim,
com uma dessas canções
profanas e furibundas
a que se regressa sempre
nos partidos tempos da vida.
 
Mas não creio que o alento possa voltar
a ser o daquelas manhãs de Junho
em que uma despedida precoce ditou leis
que eu cumpri demasiado bem.
Que tem isso a ver contigo, dirás,
e a resposta cala-se no meu peito,
 
asfixia lentamente nas sílabas
do teu nome em forma de punhal,
enquanto eu, o próprio, ando por aí
a ver passar os navios que já não passam
e a preparar tabernas disponíveis
para a velhice que virá.
Já não sou, acredita, esse príncipe
 
de um reino que quis imundo e breve.
E sei agora que as algemas do amor
doem mais quando os pulsos mal abertos
calafetaram a memória numa travessa
sem espera. De pouco serve importunar-te:
 
és apenas o álibi dilacerante
de um poema que eventualmente terá
alguma coisa a ver comigo, nada
que mereça a pena que aliás nada merece.
 
E hás-de ter uma vida, uma família, um cão,
como toda a gente tem mesmo que não tenha,
inventando paliativos cheios de calor,
do sossego, que nunca curaram ninguém
da peste real do amor: esta vontade
de beber por mãos alheias o sangue derramado,
suspenso num sorriso em chamas
sobre o qual já tudo foi dito e ainda nada.

Que te protejam, na noite serrada,
as mais frias certezas e a boca da catástrofe
que não beijou nem quis o poema inacabável.

Manuel de Freitas


sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

Solo le pido a Dios


(...)
Solo le pido a Dios
Que la guerra no me sea indiferente
Es un monstruo grande y pisa fuerte
Toda la pobre inocencia de la gente

Solo le pido a Dios
Que el engaño no me sea indiferente
Si un traidor puede más que unos cuantos
Que esos cuantos no lo olviden fácilmente
(...)

León Gieco
Mercedes Sosa


quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Fado Penélope

 https://www.youtube.com/watch?v=6VT6H7doXUU

(...)
E enquanto o meu amor anda em viagem
Fazendo a guerra santa ao desespero
Eu encho o meu vazio de coragem
Fazendo e desfazendo o que não quero
Fazendo e desfazendo o que não quero

A fome de estar vivo é tão intensa
Paixão que se alimenta do perigo
De o chão em que se inscreve a minha crença
Só ter por garantia ser antigo
Só ter por garantia ser antigo

José Mário Branco


Sólo el silencio salva

Sólo el silencio salva, compañero.
Sólo el silencia salva. Si has tenido
una noche gloriosa en que Afrodita
te ha sonreído y Baco te ha llenado
la copa sin cesar, piensa que luego,
cuando la oscuridad se desvanezca,
tus amigos se marchen a sus casas
y empiece a amanecer, sólo el silencio
va a salvarte, muchacho. Tenlo en cuenta.

Luis Alberto de Cuenca


Quero dizer-te: não morras.

quero dizer-te: não morras.
Nem me digas quem és, quem foste, como sabes
a língua que se fala sobre a terra.
Ao lume lanço
toda a vontade de viver, ser vivo,
a cautela do ar, ardendo em torno.
Passarei, terás passado em mim, só quero
dizer-te: não morras nunca, agora, nunca mais.

António Franco Alexandre


segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

As palavras que faltaram

https://www.publico.pt/2021/12/20/impar/cronica/palavras-faltaram-1989249

(...)
Fui muitas vezes magoada por pessoas incapazes de dizer em palavras, o comodismo de me preterir, e no silêncio encontraram a melhor forma de aparentemente saírem ilesos disso: e isso, parece-me, era uma grande responsabilidade.

Às vezes precisamos de crescer para saber usar as palavras em vez do silêncio. As palavras tornam-se difíceis quando temos de as escolher adequadamente, enquanto o silêncio é uma forma preguiçosa de dispensar os outros.

A dor que os outros nos infligem quando nos dispensam mudos dificilmente será esquecida.

Até as palavras mais cruas vencem à angústia de uma página em branco.
(...)

Inês Meneses


domingo, 19 de dezembro de 2021

Eu quero a paz de pertencer

eu quero a paz de pertencer a um só lugar,
eu quero a tranquilidade de não dividir memórias.
ser todo de uma vida.
e assim ter a certeza que morro de uma só única vez.
_________ custa-me ir cumprindo tantas pequenas mortes, 
essas que apenas nós notamos, 
na íntima obscuridade de nós.

Mia Couto


quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Haikus

I

Passou a meia-noite –
A Via Láctea
Inclina-se sobre um bambu


II
A morte chega –
Alguém ri às gargalhadas
Nas ameixoeiras

Masaoka Shikiki


terça-feira, 14 de dezembro de 2021

Coincidir

https://www.youtube.com/watch?v=b3GyAtcoogc

Hay historias de amor que nunca terminan
Que se esconden tras la vuelta de tu esquina
Que bailan sobre un solo pie
Que reman con un remo, que beben sin sed
Hay espacio, hay dolor, hay deseo
Corazones en el aire llenos de agujeros
(...)


Chuva incessante e eu bebendo só

A vida depressa caminha para o nada,
sempre assim foi e será
e se neste nosso mundo viveram imortais
como o Pinheiro Vermelho e Wang Chiao,
onde estão eles agora?
um ancião ofereceu-me vinho, garantindo-me a imortalidade
sendo assim bebo um pouco, não tenho nada a perder
aos primeiros golos deixei de sentir
ao fim de uns quantos copos até do céu me esqueci
mantém-te mas é fiel ao momento que passa
e às suas próprias coisas
pássaros de asas mágicas, viajam através das nuvens,
em oito direcções preparam a viagem de volta
eu por mim consagro-me a viver em solidão
já faz quarenta anos que a isso me dedico
com devoção e de acordo com a sábia natureza
o meu corpo envelheceu há muito tempo
mas os meus sentimentos continuam intactos,
por isso nada tenho a lamentar.

Tao Yuanming (365-427)

sábado, 11 de dezembro de 2021

Rio Verdugo

 


(*) What's in a name

Pergunto: o que há num nome?
 
De que espessura é feito se atendido,
que guerras o amparam,
paralelas?

Linhagens, chãos servis,
raças domadas por algumas sílabas,
alicerces da história nas leis que se forjaram
a fogo e labareda?

Extirpado o nome,
ficará o amor, ficarás tu e eu – mesmo na morte,
mesmo que em mito só

E mesmo o mito (escuta!),
a nossa história breve
que alguns lerão como matéria inerte,
ficará para o sempre do humano

E outros
o hão de sempre recolher,
quando o seu século dele carecer

E, meu amor, força maior de mim,
seremos para eles como a rosa –
Não, como o seu perfume:
ingovernado                  livre

Ana Luísa Amaral


quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Não pude amar mais nada

não pude amar mais nada
não pude amar mais ninguém
e mesmo que te minta
é o contrário disso

e mesmo que te minta
é a verdade seca
posta ali às avessas;
não pude amar mais claro

Fernando Assis Pacheco


Remedia Amoris

Foi uma péssima ideia a de voltarmos a ver-nos. Não fizemos mais do que trocar insultos e culpar-nos de velhas e sórdidas histórias. Depois ...