domingo, 26 de fevereiro de 2023

Não deites fora as cartas de amor

Elas não te abandonarão.
Passará o tempo, apagar-se-á o desejo
– essa flecha de sombra –
e os rostos sensuais, inteligentes, belíssimos
ocultar-se-ão em ti, no fundo de um espelho.
Cairão os anos. Cansar-te-ão os livros.
Decairás ainda mais
e perderás até a poesia.
O ruído frio da cidade nos vidros
acabará por ser a tua única música,
e as cartas de amor que tiveres guardado
serão a tua última literatura.

Joan Margarit
(trad. de Miguel Filipe Mochila)


Título por haver

No meu poema ficaste
de pernas para
o ar
(mas também eu
já estive tantas vezes)

Por entre versos vejo-te as mãos
no chão
do meu poema
e os pés tocando o título
(a haver quando eu
quiser)

Enquanto o meu desejo assim serás:
incómodo estatuto:
preciso de escrever-te
do avesso
para te amar em excesso

Ana Luísa Amaral

Palácio de São Bento, 25 de fevereiro


 

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

Why shines does not always need to

Because today we did not leave this world,
We now embody a prominence within it,
Even amidst its indifference to our actions,
Whether they be noiseless or not.
After all, nonsense is its own type of silence,
Lasting as long as the snow on your
Tongue. You wonder why each evening
Must be filled with a turning away, eyes to the lines
Of the hardwood floor as if to regret the lack
Of movement in a single day, our callous hope
For another wish put to bed with the others in a slow
Single-file line. I used to be amazed at the weight
An ant could carry. I used to be surprised by
Survival. But now I know the mind can carry
Itself to the infinite power. Like the way snow
Covers trauma to the land below it, we only
Believe the narrative of what the eye can see.

Adam Clay


The stranger song

Ele quis dizer-te agarra
a noite e não pudeste
contentá-lo. Agora
é tarde. Cai uma nódoa
na parede, na camisa

do poema. És acossado
pelo fim que consentiste
e pela sombra da razão
que não tiveste. Olhas
em volta

e só não vês o que aí está
se não quiseres perder de vez
a ilusão de uma saída.
Nos arredores, a luz
é torpe, o verso

inquina. Não há
comboio a estas horas
que te leve ao outro lado
onde te espera, por engano,
a tua vida.

Rui Pires Cabral


Paciência


Mesmo quando tudo pede um pouco mais
de calma
Até quando o corpo pede um pouco mais
de alma
A vida não para

Enquanto o tempo acelera e pede pressa
Eu me recuso, faço hora, vou na valsa
A vida é tão rara

Enquanto todo mundo espera a cura
do mal
E a loucura finge que isso tudo
é normal
Eu finjo ter paciência

E o mundo vai girando cada vez mais veloz
A gente espera do mundo 
e o mundo espera de nós
Um pouco mais de paciência

Será que é o tempo que lhe falta para perceber?
Será que temos esse tempo para perder?
E quem quer saber?
A vida é tão rara, tão rara

Mesmo quando tudo pede um pouco mais
de calma
Até quando o corpo pede um pouco mais
de alma
Eu sei, a vida não para
A vida não para, não

Lenine


Da falta que me fazes

São de nada
tempestades
ante a falta
que me fazes

David Mourão-Ferreira


sábado, 4 de fevereiro de 2023

Belvedere, Viena, dezembro de 2022

 




Amor à primeira vista

Ambos estão convencidos
que os uniu uma paixão súbita.
É bela esta certeza,
mas a incerteza mais bela ainda.
 
Julgam que por não se terem encontrado antes,
nada entre eles nunca ainda se passara.
E que diriam as ruas, as escadas, os corredores
onde se podem há muito ter cruzado. 

Gostaria de lhes perguntar
se não se lembram -
talvez nas portas giratórias,
um dia, face a face?
algum “desculpe” num grande aperto de gente?
uma voz de que “é engano” ao telefone?
- mas sei o que respondem.
Não, não se lembram.
 
Muito os admiraria
saber que desde há muito
se divertia com eles o acaso.
 
Ainda não completamente preparado
para se transformar em destino para eles,
aproximou-os e afastou-os,
barrou-lhes o caminho
e, abafando as gargalhadas,
lá seguiu saltando ao lado deles.

Houve marcas, sinais,
que importa se legíveis.
 
Haverá talvez três anos
ou terça-feira passada,
certa folhinha esvoaçante
de um braço a outro braço.
Algo que se perdeu e encontrou?
Quem sabe se já uma bola
nos silvados da infância?
 
Punhos de porta e campainhas
onde a seu tempo o toque
de uma mão tocou o outro toque.
As malas lado a lado no depósito.
Talvez acaso até mesmo um sonho
que logo o acordar desvaneceu.
 
Porque cada início
é só continuação,
e o livro das ocorrências
está sempre aberto ao meio.
 
Wislawa Szymborska
(tradução de Júlio Sousa Costa)


Breve

Esta manhã comecei a esquecer-me de ti.
Acordei mais cedo que nos outros dias
e com o mesmo sono.
A tua boca dizia-me “bom dia” mas não:
não o teu corpo todo como nos outros dias.
As sombras por aqui são lentas e hoje não
comprei o jornal: o mundo que se ocupe da
sua própria melancolia.
ontem. há uma semana. há muitos meses.
um ano ensina ao coração o novo ofício:
a vida toda eu hei de esquecer-me de ti.

Rui Costa


Remedia Amoris

Foi uma péssima ideia a de voltarmos a ver-nos. Não fizemos mais do que trocar insultos e culpar-nos de velhas e sórdidas histórias. Depois ...