não como Hâzim Hikmet no avião de pedra
mas na minha cidade
livre de ir onde quiser
e no entanto prisioneiro
neste ano de 1962
exatamente
em Lisboa
Avenida de Roma número noventa e três
às três horas da tarde
Neste ano de 1962
encostado a uma esquina da estação do Rossio
esperando talvez a carta que não chega
um amor adolescente
meu Paris tão distante
minha África inútil
aqui mesmo
aqui de mãos nos bolsos e o coração cheio de amargura
cumprindo os pequenos ritos quotidianos
cigarro após o almoço
café com pouco açúcar
má-língua e literatura
Aqui mesmo a não sei quantos graus de latitude
e de enjoo crescente
solitário e agreste
invisível aos olhos dos que amo
ignorado por ti pequeno empregado de escritório preocupado
com um erro de contas
incapaz de dizer toda a minha ternura
operária de fábrica com três filhos famintos
Aqui mesmo envolto na placidez burguesa
higienicamente limpo e com os papéis em ordem
vestido de nylon dralon leacril
com acabamentos sanitized
e lugar marcado junto ao aparelho de TV
eu
enjoado de tudo e contemporizando com tudo
eu
peça oleada do mecanismo de trituração
eu
incapaz de suicídio descerrando um sorriso-gelosia
eu
apesar de tudo vivo apesar de tudo inquieto
eu
neste ano de 1962
exatamente
não ontem mas precisamente às três horas da tarde
pela hora oficial
exilado na pátria
De ti sabes o nome
a hora exata o martelo no relógio
a escassa visão do tempo novo, a vida
sempre imatura e entanto desejada
De ti sabes a calma citadina
a distância entre a casa e o emprego o perfil
da amante
o sabor do café matinal
a maresia súbita.
De ti sabes a idade a altura o peso e o vigor
dos músculos a suave atração
da porta do cinema
a misteriosa voz lunar palavras soltas
gagarine vostok estação espacial
De ti sabes os sinais característicos
quando pode ser escrito medido registado
em fichas passaportes cartões de identidade.
Só não sabes da bala da pólvora da arma
só não sabes das mãos como as tuas plebeias
erradas mãos do povo
só não sabes do medo do ódio da terrível impotência.
Só não sabes da morte antes do tempo
exilado na pátria numa tarde de Maio.
Pergunto. poderia cantar de modo alheio
dizer outras palavras como quem diz bom dia
poderia acaso ignorar o tempo a tortura a prisão
Bernardino e a pequena rosa
vermelha e orvalhada
insólita no tablier do automóvel azul
Poderia falar dos dias impossíveis
das manhãs sem revolta. do xadrez matemático
jogado interminavelmente
das virgens, dos poentes, do mar da minha infância
Poderia escrever meu amor e pensá-lo
Sem mais nada. sem a rubra mancha de sangue na parede da cela
Sem um nome ou um grito
Daniel Filipe