terça-feira, 16 de janeiro de 2024

Carta a Sophia, ou O quinto poema do português errante

Querida Sophia: como os índios do seu poema
também eu procurei o país sem mal.
Em dez anos de exílio o imaginei
como os índios utópicos também eu queria
um outro Portugal em Portugal.
Mas quando regressei eu não o vi
como eles me perdi e nunca achei
o país sem mal.

Talvez a própria vida seja isto
passar montanha e mar sem se dar conta
de que o único sentido é procurar.
Como os índios do seu poema eu não desisto
sou um português errante a caminhar
em busca do país que não se encontra.

Manuel Alegre


Sobre um poema

Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.

Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
- a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.

E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.

- Em baixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.
- E o poema faz-se contra o tempo e a carne.

Herberto Helder


domingo, 7 de janeiro de 2024

Varadouro, Faial, dezembro de 2023 (vista da casa onde viveram Brell e Tordo)


 

Sou doutras coisas

https://www.youtube.com/watch?v=KmOh0L9ECgQ 

Sou doutras coisas
Pertenço ao tempo que há de vir sem ser futuro
E sou amante da profunda liberdade
Sou parte inteira duma vida vagabunda
Sou evadido da tristeza e da ansiedade.

Sou doutras coisas
Fiz o meu barco com guitarras e com folhas
E com o vento fiz a vela que me leva
Sou pescador de coisas belas, de emoções,
Sou a maré que sempre sobe e não sossega

Sou das pessoas que me querem e que eu amo
Vivo com elas por saber quanto lhes quero
A minha casa é uma ilha é uma pedra
Que me entregaram num abraço tão sincero

Sou doutras coisas
Sou de pensar que a grandeza está no homem
Porque é o homem o mais lindo continente
Tanto me faz que a terra seja longa ou curta
Tranco-me aqui por ser humano e por ser gente

Sou doutras coisas
Sou de entender a dor alheia que é a minha
Sou de quem parte com a mágoa de quem fica
Mas também sou de querer sonhar o novo dia
- sou dos lugares onde se baila a chamarrita.

Fernando Tordo
(escrito no Varadouro, Ilha do Faial)


[...]

and all I loved
I loved alone

Edgar Allan Poe


Poema LVII

No te nombro; pero estás en mí
como la música en la garganta del
ruisenor aunque no esté cantando.

Dulce María Loynaz


[...]

Há uma fenda que fende a vida para sempre. Abre-se um buraco no coração e nunca nada ninguém mudará isso.

José Amaro Dionísio


Remedia Amoris

Foi uma péssima ideia a de voltarmos a ver-nos. Não fizemos mais do que trocar insultos e culpar-nos de velhas e sórdidas histórias. Depois ...