domingo, 21 de julho de 2024

3.

Envolvo-me no silêncio da tua
chegada. O espelho turvo
do teu nome acelera em mim
a evidência deste corpo em
que persisto.
Fazes-me espesso, orgânico,
compacto em torno do absurdo forte
de nos imaginar reciprocamente
despenhados.
Porque sinto que caminho já no ar,
cada passo mais distante,
à espera da tua levitação, que me entendas
a um palmo do peito, enfim caídos
por consequência da rendição.
Entre nós e o mundo há
quinhentos metros
de grito.

Vasco Gato


Estamos aqui para converter

Estamos aqui para converter
os mortos em vivos, buscando
o que sentimos no que a vida
nos vai dando –

a arte sucede, disse o poeta,
a arte sucede quando o poema
é sucedâneo – substância do
pensamento que ganha corpo

e vence o que nos liberta:
a morte:
amar-te será em breve
o que o vício de viver disputa –

conhecendo-te esqueço quem fui
convertendo-me ao escuro
e à profunda arte de viver
encoberto.

Ricardo Marques


Não terás aprendido nada

Não terás aprendido nada
até teres aprendido o transtorno
ou a bênção de ser dispensável.

Ricardo Marques (excerto)


Sobre um improviso de John Coltrane

Ainda espero o amor
como no ringue o lutador caído
espera a sala vazia

primeiro vive-se e não se pensa em nada
não me digam a mim
com o tempo apenas se consegue
chegar aos degraus da frente:
é difícil
é cada vez mais difícil entrar em casa

não discuto o que fizeram de nós estes anos
a verdade é de outra importância
mas hoje anuncio que me despeço
à procura de um país de árvores

e ainda se me deixo ficar
um pouco além do razoável
não ouvem? O amor é um cordeiro
que grita abraçado à minha canção

José Tolentino de Mendonça


Os amigos

Esses estranhos que nós amamos
e nos amam
olhamos para eles e são sempre
adolescentes, assustados e sós
sem nenhum sentido prático
sem grande noção da ameaça ou da renúncia
que sobre a luz incide
descuidados e intensos no seu exagero
de temporalidade pura

Um dia acordamos tristes da sua tristeza
pois o fortuito significado dos campos
explica por outras palavras
aquilo que tornava os olhos incomparáveis

Mas a impressão maior é a da alegria
de uma maneira que nem se consegue
e por isso ténue, misteriosa:
talvez seja assim todo o amor

José Tolentino de Mendonça


Europa, Querida Europa

https://www.youtube.com/watch?v=SXsXpsKBJow

Europa nascida na Ásia profunda
Ó filha do rei fenício Agenor
Que Zeus entranhado no corpo de um touro
Levou-te p'ra Creta cativo de amor

Europa é de Homero
De helénicas formas
Do fórum romano e da cruz
De tantas nações
Ariana e semita
Ventre das descobertas
Da luz
Do diverso sistema do modo diferente
Da era da guerra e agora da paz
És assim querida Europa

Vem que eu te quero toda do mar à montanha
Vem que eu te quero muito mais bela que o mar
Vem vencendo cizânias que os povos sem feudos
Sempre se amaram brilhantes em todo o lugar
O teu chão não é traste
De meros mercados
De pauta aduaneira
Ou cifrão
É um terrunho de almas
Uma ideia
Um desejo
De uma nova maneira
Em fusão
Desfazendo complexos de mapas cor-de-rosa
Sem a má consciência no verso e na prosa
Só por ti querida Europa

Para que sejas tu mesma a decidir o teu uso
Para que sejas tu mesma ainda mais natural
Não me toques o "beat" à americana
Que esse já nós conhecemos na versão original
Aguenta-te firme
Livre de imitações
Espera só mais um pouco
Já vai
O que resta e o que sobra
Aquela mesma saudade
Toda a imaginação
Ainda mais
Não sentes um vago um suave cheiro a sardinhas
A algazarra nas ruas e o troar dos tambores
Somos nós querida Europa

Fausto Bordalo Dias


segunda-feira, 1 de julho de 2024

Olha o fado

https://www.youtube.com/watch?v=G8cVqT7tSkA 

Eu cá sou dos Fonsecas
Eu cá sou dos Madureiras
De ferro o puro sangue
O que me corre nas veias

Nasci da paixão temporal
Do parto dos vendavais
Cresço no fragor da luta
Numa força bruta
P'ra além dos mortais

Mas tenho muitas saudades
Certas penas e desejos
E aquela louca ansiedade
Como um pecado
Meu amor se te não vejo
Olha o fado

Ora é tão vingativo
Ora é tão paciente
Amanhã é comedor
Hoje abstinente
Mentiroso, alcoviteiro
Doce e verdadeiro

Uma vez conquistador
Outra vez vencido
Amanhã é navegante
Hoje é desvalido
Sensual e aventureiro
Doido e bandoleiro


Somos capitães, somos Albuquerques
Nós somos leões dos lobos do mar
De olhos pregados nos céus
De cima dos chapitéus

Somos capitães, somos Albuquerques
Nós somos leões dos lobos do mares
E na verdade que vos dói
É que não queremos ser heróis


Fausto Bordalo Dias


O despertar dos alquimistas

https://www.youtube.com/watch?v=EqUH6BcEtx0

Chegam os magos no claro rasto da lua cheia
Descem duendes pelos caminhos da Cassiopeia
Gnomos e bruxos, génios e divas, tudo e ninguém
Abeiram-se os sábios, os feiticeiros que o mundo tem
Sentam-se amenas mágicas formas, sombras de alguém

Vêm do fundo da paz da terra os sonhadores
Guardam em sonhos ocultas memórias os computadores
Pedreiros-livres, santos e artistas, tudo e ninguém
Sussurram secretas vozes profetas dos temporais
Pairam nos ventos estranhos seres como cristais

Ó roda viva, ó astro grande de almas gentis
Fonte das musas, covil dos homens mais varonis
A gente luta, a gente sofre, tudo e ninguém
Redime as dores, nossos amores, ódios também
Somos teus filhos, ó mar de estrelas
Cuida-nos bem

Fausto Bordalo Dias


Fausto, meu querido Fausto.

 

a minha avó repete:

a minha avó repete: o tempo cura a ferida mas não cura a cicatriz e nenhum outro poema de nenhum outro poeta me falou tão alto ao ouvido Inê...