terça-feira, 28 de janeiro de 2025

Vida


Vida, minha vida
Olha o que é que eu fiz
Deixei a fatia
Mais doce da vida
Na mesa dos homens
De vida vazia
Mas, vida, ali
Quem sabe, eu fui feliz

Vida, minha vida
Olha o que é que eu fiz
Verti minha vida
Nos cantos, na pia
Na casa dos homens
De vida vadia
Mas, vida, ali
Quem sabe, eu fui feliz

Luz, quero luz,
Sei que além das cortinas
São palcos azuis
E infinitas cortinas
Com palcos atrás...
Arranca, vida
Estufa, veia
E pulsa, pulsa, pulsa,
Pulsa, pulsa mais

Mais, quero mais
Nem que todos os barcos
Recolham ao cais
Que os faróis da costeira
Me lancem sinais
Arranca, vida
Estufa, vela
Me leva, leva longe
Longe, leva mais

Vida, minha vida
Olha o que é que eu fiz
Toquei na ferida
Nos nervos, nos fios
Nos olhos dos homens
De olhos sombrios
Mas, vida, ali
Eu sei que fui feliz

Chico Buarque


Moça linda bem tratada

Moça linda bem tratada,
Três séculos de família,
Burra como uma porta:
Um amor.

Grã-fino do despudor,
Esporte, ignorância e sexo,
Burro como uma porta:
Um coió.

Mulher gordaça, filó,
De ouro por todos os poros
Burra como uma porta:
Paciência...

Plutocrata sem consciência,
Nada porta, terremoto
Que a porta de pobre arromba:
Uma bomba.

Mário de Andrade


Desejo

Quem és? Perguntei ao desejo.

Respondeu: lava. Depois pó. Depois nada.


Hilda Hilst


sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

Encontro

                        A Carlos Queiroz

Que vens contar-me
se não sei ouvir senão o silêncio?
Estou parado no mundo.
Só sei escutar de longe
antigamente ou lá prò futuro.
É bem certo que existo:
chegou-me a vez de escutar.

Que queres que te diga
se não sei nada e desaprendo?
A minha paz é ignorar.
Aprendo a não saber:
que a ciência aprenda comigo
já que não soube ensinar.

O meu alimento é o silêncio do mundo
que fica no alto das montanhas
e não desce à cidade
e sobe às nuvens que andam à procura de forma
antes de desaparecer.

Para que queres que te apareça
se me agrada não ter horas a toda a hora?
A preguiça do céu entrou comigo
e prescindo da realidade como ela prescinde de mim.

Para que me lastimas
se este é o meu auge?!

Eu tive a dita de me terem roubado tudo
menos a minha torre de marfim.
Jamais os invasores levaram consigo as nossas torres de marfim.

Levaram-me o orgulho todo
deixaram-me a memória envenenada
e intacta a torre de marfim.
Só não sei que faça da porta da torre
que dá para donde vim.

José de Almada Negreiros


Janeiro

É esta a completude dos dias
Quando se reúnem sobre a cidade
Os sossegos da nossa idade já meiga.
São estas as palavras que ficam
Desde o interior do nosso mais antigo nome.

É o inverno aberto de janeiro
Com as árvores despidas e o frio azul,
É o ano que começa no tempo que é nada,
Os bolsos que se enchem de mãos,
As casas que parecem mais juntas.

Por esta altura estarão a nascer
As horas mais felizes das nossas vidas
- bebemos chá escutando o lume
E amanhã será um dia a menos,
Um outro som acrescentando à voz,
Um abraço fechando-se até ao amor.

Vasco Gato


sábado, 11 de janeiro de 2025

O Marquês de Chamilly a Mariana Alcoforado

Minha senhora deve ter
uma coisa muito urgente e capital
a dizer-me
porque me tem escrito muito
e muitas vezes
porém lamento dizer-lho
mas não percebo
a sua letra
já mostrei as suas cartas
a todas as minhas amigas
e à minha mãe
e elas também não percebem bem
não me poderia dizer
o que tem a dizer-me
em maiúsculas?
ou pedir a alguém
com uma letra mais regular
que a sua
que me escreva
por si?
como vê tenho a maior vontade
em lhe ser útil
mas a sua letra minha senhora
não a ajuda

Adília Lopes

(Tantos os poetas que me vão morrendo...)


Arte Poética

Perguntam-me com insistência
Porque é que de vez em quando mudo
De linha
É por uma razão
Verdadeiramente indigna
De ser ex
pressa

Louis Aragon


[...]

Eu usava uma armadura
Que me traiu duas vezes:

foi insuficiente para defender o golpe
foi eficaz a esconder a ferida

André Tecedeiro


Entraste na minha vida

Entraste na minha vida, não como quem faz uma visita curta e improvisada, mas como quem entra num reino onde todos os rios esperaram as tuas reflexões e todas as estradas os teus passos. [...] Preciso de ti, sim, meu conto de fadas. Porque és a única pessoa com quem posso conversar, seja sobre o matiz de uma nuvem, o tilintar de um pensamento ou o facto de hoje, quando fui trabalhar, ter olhado para o rosto de um girassol alto e ele ter sorrido para mim com todas as suas sementes.

Vladimir Nabokov (Cartas a Vera)

No soy de aquí, ni soy de allá

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