terça-feira, 28 de outubro de 2025

write wrote written

comprei agora um livro
“creative writing”
nunca pensei
que um dia fosse comprar uma coisa destas
a primeira frase já não é nada divertida:
“… do the best we can with what is available…”
a mulher da livraria & o seu cachorro ruivo
diz ela
estar à beira da loucura
porque lhe faltam estantes
para tantas caixas de livros
só presto meia atenção
porque a toda a hora alguém me diz 
que está à beira da loucura
mas no fim todos acabam
a fazer o seu trabalho
& todas as mudanças drásticas
se perdem
& se transformam em pão de forma

Lütfiye Güzel




I am much too alone in this world, yet not alone

I am much too alone in this world, yet not alone 
enough
to truly consecrate the hour.
I am much too small in this world, yet not small
enough
to be to you just object and thing,
dark and smart.
I want my free will and want it accompanying
the path which leads to action;
and want during times that beg questions,
where something is up,
to be among those in the know,
or else be alone.

I want to mirror your image to its fullest perfection,
never be blind or too old
to uphold your weighty wavering reflection.
I want to unfold.
Nowhere I wish to stay crooked, bent;
for there I would be dishonest, untrue.
I want my conscience to be
true before you;
want to describe myself like a picture I observed
for a long time, one close up,
like a new word I learned and embraced,
like the everday jug,
like my mother’s face,
like a ship that carried me along
through the deadliest storm.

Rainer Maria Rilke




domingo, 26 de outubro de 2025

Com unhas e dentes


Estar vivo
é abrir uma gaveta
na cozinha,
tirar uma faca de cabo preto,
descascar uma laranja.
Viver é outra coisa:
deixas a gaveta fechada
e arrancas tudo
com unhas e dentes,
o sabor amargo da casca,
de tão doce,
não o esqueces.

Luis Filipe Parrado



O poema pouco original do medo


O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis
Vai ter olhos onde ninguém os veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no tecto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos

O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
óptimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projectos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com certeza a deles

Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados

Ah o medo vai ter tudo
tudo

(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)

*

O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos

Sim
a ratos

Alexandre O’Neill



Na casa antiga, cada um de nós levava


Na casa antiga, cada um de nós levava
consigo um candeeiro, com que arrastava
o seu duplo de penumbra e de sombra.
A chama do petróleo ardia junto à boca,
podíamos devorar a própria luz.
Chamas nos queimavam as entranhas
e em archotes vivos nos tornaram,
vagueando por corredores e por escadas
atrás do Outro, que nada nos dizia.

Fiama Hasse Pais Brandão



Não discuto


não discuto
com o destino
o que pintar
eu assino

Paulo Leminski



Cajuína


Existirmos, a que será que se destina?
Pois quando tu me deste a rosa pequenina
Vi que és um homem lindo e que se acaso a sina
Do menino infeliz não se nos ilumina
tampouco turva-se a lágrima nordestina
Apenas a matéria vida era tão fina
E éramos olharmo-nos intacta retina
A cajuína cristalina em Teresina

Caetano Veloso



domingo, 19 de outubro de 2025

à parte do reino


as mulheres são todas iguais

todas, sem exceção. as de ontem, iguais às de hoje, as de hoje, iguais

às de amanhã

que não se engane o meu amor, porque em breve

a ex dele voltará através de mim, para dizer pela minha boca o que não pôde dizer pela sua

eu farei o mesmo, pela boca da próxima

e assim sucessivamente

é uma maldição

entramos na vida de um homem como se fôssemos cada uma

uma só

com o passar do tempo nos tornamos todas iguais

juramos sempre o mesmo amor no começo

rogamos sempre as mesmas pragas antes de bater a porta, no final

sempre a mesma garganta

a mesma língua de gárgula

.

as mulheres são todas iguais

por isso quando caminho pelo bairro me olho nos olhos que me olham

sou a moça parada à janela, translúcida

sou a que atravessa o dia pensando em rosas

do povo

de hiroshima

de gertrude stein

de ninguém

estou na rua, mas estou em casa

estou em mim mesma como no meio de uma catedral vazia, 

o sino sendo tangido pelo silêncio

.

o meu amor não sabe

se disser o nome de uma mulher, dirá o nome de todas

somos em certo sentido indeléveis como ar. somos todas marias

linhas de sombra e luz, fina fenda

somos um pássaro

e há um mundo inteiro suspenso nos fios de nossa respiração

.

li esses dias que os ciclos de sangue de mulheres que moram juntas tornam-se sincrônicos. vou mais 

longe, digo que também passamos a nos encontrar

em sonho. nessas horas, até chamamos umas às outras pelo nome

(em voz baixa, para que não se rompa

o fio de prata)

.

as mulheres são todas iguais, basta olhar com atenção

veja, por exemplo:

pouco depois de se separar de ted, sylvia se suicidou usando gás de cozinha

mais tarde, assia, a nova esposa, repetiu o ato

a mesma cena

o mesmo gás

o mesmo homem

as mulheres são todas iguais

.

pelas mãos de salomé, também eu servi a cabeça de joão batista numa bandeja

pelas mãos de lucrécia bórgia, também eu misturei cantarella no vinho

e terminei o dia envenenando um marido

.

esta noite o meu amor se deitará com sua nova namorada. nela estaremos todas

repetíveis, labirínticas

espelhos

espectros umas das outras

de madrugada, ele será seduzido com beijos e cheiros. quando descobrir que é a mesma mulher de sempre

o mesmo antigo demônio fêmeo

nessa hora será tarde. já a terá fecundado

já terá continuado nossa linhagem má

numa filha


Mar Becker



sábado, 11 de outubro de 2025

Luís Cunha

Ao Luís, no primeiro aniversário do seu voo.
30 anos de amizade, and counting.
Grata, grata.


Direi então:
Um amigo
é o lugar da terra
onde as maçãs brancas são mais doces.

Eugénio de Andrade



O futuro

E sei muito bem que não estarás.

Não estarás na rua, no sussurro que brota de noite
dos postes, nem no gesto
de escolher o cardápio, nem no sorriso
que alivia as lotações do metropolitano,
nem nos livros emprestados nem no até amanhã.

Não estarás nos meus sonhos,
no destino original das minhas palavras,
nem num número de telefone estarás,
ou na cor de um par de luvas ou de uma blusa.
Irritar-me-ei, meu amor, sem que seja por ti,
e comprarei bombons, mas não para ti,
esperarei na esquina a que não virás,
e direi as palavras que se dizem
e comerei as coisas que se comem
e sonharei as coisas que se sonham
e sei muito bem que não estarás,
nem aqui dentro, a prisão onde ainda te prendo,
nem lá fora, este rio de ruas e de pontes.
Não estarás para nada, não serás nem lembrança,
e, quando pensar em ti, pensarei um pensamento
que vagamente trata de lembrar-se de ti.

Julio Cortázar



Procuro-me e não me encontro

Procuro-me e não me encontro,
encontro-me e dissolvo-me,
sou eco de uma sombra
que nunca teve luz.
As horas rasgam-me,
os dias perseguem-me,
sou náufrago na minha carne,
sou convidado do meu fim.
Pergunto aos espelhos,
olham para mim e quebraram.
Pergunto aos silêncios
e nada sabem sobre mim.
Se sou lembrança,
se sou cinzas,
alguém me diga ao menos
se alguma vez vivi.

José Asunción Silva



Corredor de freiras

Talvez tenhas razão:
talvez a verdadeira paz
somente se encontre
num lugar escuro como este,
num corredor de colégio,
onde as raparigas se pavoneiam a cada dia,
deixando nas paredes
casacos e capuzes;
Onde os velhos pobres
que vêm pedir
se contentam com umas poucas moedas
oferecidas por Deus;
Onde, ainda cedo, por culpa
das janelas fechadas,
se acendem as lâmpadas
e não se aguarda
ver morrer a luz,
ver morrer a cor e a saliência das coisas;
Contudo, ide ao encontro da noite
com outra luz acesa ao alto,
e a alma que arde não sofrerá
a revelação da sombra.

Antonia Pozzi
(tradução de Tiago Nené)



quinta-feira, 25 de setembro de 2025

A lista

https://www.youtube.com/watch?v=krbz5wkDPBA

Faça uma lista de grandes amigos
Quem você mais via há dez anos atrás?
Quantos você ainda vê todo dia?
Quantos você já não encontra mais?

Faça uma lista dos sonhos que tinha
Quantos você desistiu de sonhar?
Quantos amores jurados pra sempre?
Quantos você conseguiu preservar?

Onde você ainda se reconhece
Na foto passada ou no espelho de agora?
Hoje é do jeito que achou que seria
Quantos amigos você jogou fora?

Quantos mistérios que você sondava?
Quantos você conseguiu entender?
Quantos segredos que você guardava?
Hoje são bobos, ninguém quer saber

Quantas mentiras você condenava?
Quantas você teve que cometer?
Quantos defeitos sanados com o tempo?
Eram o melhor que havia em você

Quantas canções que você não cantava
Hoje assobia pra sobreviver?
Quantas pessoas que você amava?
Hoje acredita que amam você?

Faça uma lista de grandes amigos
Quem você mais via há dez anos atrás?
Quantos você ainda vê todo dia?
Quantos você já não encontra mais?

Quantos segredos que você guardava?
Hoje são bobos, ninguém quer saber
Quantas pessoas que você amava?
Hoje acredita que amam você?

Oswaldo Montenegro



[...]

I miss her.
And I'm telling her
with all the silence
I am capable of.

Charles Bukowski



[después de un tiempo]

después de un tiempo,
uno aprende la sutil diferencia
entre sostener una mano
y encadenar un alma,
y uno aprende
que el amor no significa acostarse
y una compañía no significa seguridad
y uno empieza a aprender…
que los besos no son contratos
y los regalos no son promesas
y uno empieza a aceptar sus derrotas
con la cabeza alta y los ojos abiertos
y uno aprende a construir
todos sus caminos en el hoy,
porque el terreno del mañana
es demasiado inseguro para planes…
y los futuros tienen una forma de caerse
en la mitad.
y después de un tiempo
uno aprende que si es demasiado,
hasta el calorcito del sol quema.
así que uno planta su propio jardín
y decora su propia alma,
en lugar de esperar a que alguien le traiga flores.
y uno aprende que realmente puede aguantar,
que uno realmente es fuerte,
que uno realmente vale,
y uno aprende y aprende…
y con cada día uno aprende.

Jorge Luis Borges



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comprei agora um livro “creative writing” nunca pensei que um dia fosse comprar uma coisa destas a primeira frase já não é nada divertida: “...