segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

Porque éramos amigos


Porque éramos amigos e, às vezes, 

nos amávamos; 
talvez para acrescentar outro interesse 
aos muitos que já nos obrigavam, 
decidimos jogar jogos de inteligência. 

Colocámos um tabuleiro à nossa frente: 
igual em peças, em valor, 
em possibilidades de movimento.
Aprendemos as regras, jurámos respeitá-las, 
e o jogo começou. 

Aqui estamos nós, um século depois, sentados, 
ponderando intensamente 
como desferir o golpe final que aniquile
de modo inapelável, e para sempre, o outro.

Rosario Castellanos





IV


Creio que não te quero,
que somente quero a impossibilidade
tão óbvia de querer-te
como a mão esquerda
enamorada dessa luva
que vive na direita.

Julio Cortázar




É verdade que sinto


É verdade que sinto um imenso desprezo
pelos poetas. Por todos os poetas.
Esses seres ignóbeis que escrevem
a palavra «estrela» e uma estrela, de súbito,
nos queima os dedos distraídos. Uma
vez esteve aqui um poeta. Escreveu
a palavra «labareda». E ainda hoje as manchas
do fogo sujam as paredes e os
mosaicos vidrados da sala de reuniões
do Conselho de Administração.

José Carlos Barros




I have decided


I have decided to find myself a home in the mountains, somewhere high up where one learns to live peacefully in the cold and the silence. It’s said that in such a place certain revelations may be discovered. That what the spirit reaches for may be eventually felt, if not exactly understood. Slowly, no doubt. I’m not talking about a vacation.

Of course, at the same time I mean to stay exactly where I am.

Are you following me?

Mary Oliver




segunda-feira, 10 de novembro de 2025

Los relojes

Los relojes se suicidan en mi cuarto cada vez que dejo de nombrarte. Ellos saben que el tiempo sin tu voz es una llaga interminable. Y sin embargo sigo oyendo el tic tac como si mi corazón quisiera recordar la exactitud de tu ausencia.

Alejandra Pizarnik




Sé todos los cuentos


Yo no sé muchas cosas, es verdad.
Digo tan sólo lo que he visto.
Y he visto:
que la cuna del hombre la mecen con cuentos,
que los gritos de angustia del hombre los ahogan con cuentos,
que el llanto del hombre lo taponan con cuentos,
que los huesos del hombre los entierran con cuentos,
y que el miedo del hombre…
ha inventado todos los cuentos.
Yo no sé muchas cosas, es verdad,
pero me han dormido con todos los cuentos…
y sé todos los cuentos.

León Felipe




Neologismo


Beijo pouco, falo menos ainda.
Mas invento palavras
Que traduzem a ternura mais funda
E mais cotidiana.
Inventei, por exemplo, o verbo teadorar.
Intransitivo:
Teadoro, Teodora.

Manuel Bandeira




O fueron nueve


Tal vez tuvimos sólo siete noches
no sé
no las conté
cómo hubiera podido.
Tal vez no más que seis
o fueron nueve.
No sé
pero valieron
como el más largo amor.
Tal vez
de cuatro o cinco noches como esas
pero precisamente como esas
tal vez
pueda vivirse
como de un largo amor
toda una vida.

Idea Vilariño




terça-feira, 28 de outubro de 2025

write wrote written

comprei agora um livro
“creative writing”
nunca pensei
que um dia fosse comprar uma coisa destas
a primeira frase já não é nada divertida:
“… do the best we can with what is available…”
a mulher da livraria & o seu cachorro ruivo
diz ela
estar à beira da loucura
porque lhe faltam estantes
para tantas caixas de livros
só presto meia atenção
porque a toda a hora alguém me diz 
que está à beira da loucura
mas no fim todos acabam
a fazer o seu trabalho
& todas as mudanças drásticas
se perdem
& se transformam em pão de forma

Lütfiye Güzel




I am much too alone in this world, yet not alone

I am much too alone in this world, yet not alone 
enough
to truly consecrate the hour.
I am much too small in this world, yet not small
enough
to be to you just object and thing,
dark and smart.
I want my free will and want it accompanying
the path which leads to action;
and want during times that beg questions,
where something is up,
to be among those in the know,
or else be alone.

I want to mirror your image to its fullest perfection,
never be blind or too old
to uphold your weighty wavering reflection.
I want to unfold.
Nowhere I wish to stay crooked, bent;
for there I would be dishonest, untrue.
I want my conscience to be
true before you;
want to describe myself like a picture I observed
for a long time, one close up,
like a new word I learned and embraced,
like the everday jug,
like my mother’s face,
like a ship that carried me along
through the deadliest storm.

Rainer Maria Rilke




domingo, 26 de outubro de 2025

Com unhas e dentes


Estar vivo
é abrir uma gaveta
na cozinha,
tirar uma faca de cabo preto,
descascar uma laranja.
Viver é outra coisa:
deixas a gaveta fechada
e arrancas tudo
com unhas e dentes,
o sabor amargo da casca,
de tão doce,
não o esqueces.

Luis Filipe Parrado



O poema pouco original do medo


O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis
Vai ter olhos onde ninguém os veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no tecto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos

O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
óptimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projectos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com certeza a deles

Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados

Ah o medo vai ter tudo
tudo

(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)

*

O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos

Sim
a ratos

Alexandre O’Neill



Na casa antiga, cada um de nós levava


Na casa antiga, cada um de nós levava
consigo um candeeiro, com que arrastava
o seu duplo de penumbra e de sombra.
A chama do petróleo ardia junto à boca,
podíamos devorar a própria luz.
Chamas nos queimavam as entranhas
e em archotes vivos nos tornaram,
vagueando por corredores e por escadas
atrás do Outro, que nada nos dizia.

Fiama Hasse Pais Brandão



Não discuto


não discuto
com o destino
o que pintar
eu assino

Paulo Leminski



Cajuína


Existirmos, a que será que se destina?
Pois quando tu me deste a rosa pequenina
Vi que és um homem lindo e que se acaso a sina
Do menino infeliz não se nos ilumina
tampouco turva-se a lágrima nordestina
Apenas a matéria vida era tão fina
E éramos olharmo-nos intacta retina
A cajuína cristalina em Teresina

Caetano Veloso



Porque éramos amigos

Porque éramos amigos e, às vezes,  nos amávamos;  talvez para acrescentar outro interesse  aos muitos que já nos obrigavam,  decidimos jogar...