sábado, 11 de janeiro de 2025

O Marquês de Chamilly a Mariana Alcoforado

Minha senhora deve ter
uma coisa muito urgente e capital
a dizer-me
porque me tem escrito muito
e muitas vezes
porém lamento dizer-lho
mas não percebo
a sua letra
já mostrei as suas cartas
a todas as minhas amigas
e à minha mãe
e elas também não percebem bem
não me poderia dizer
o que tem a dizer-me
em maiúsculas?
ou pedir a alguém
com uma letra mais regular
que a sua
que me escreva
por si?
como vê tenho a maior vontade
em lhe ser útil
mas a sua letra minha senhora
não a ajuda

Adília Lopes

(Tantos os poetas que me vão morrendo...)


Arte Poética

Perguntam-me com insistência
Porque é que de vez em quando mudo
De linha
É por uma razão
Verdadeiramente indigna
De ser ex
pressa

Louis Aragon


[...]

Eu usava uma armadura
Que me traiu duas vezes:

foi insuficiente para defender o golpe
foi eficaz a esconder a ferida

André Tecedeiro


Entraste na minha vida

Entraste na minha vida, não como quem faz uma visita curta e improvisada, mas como quem entra num reino onde todos os rios esperaram as tuas reflexões e todas as estradas os teus passos. [...] Preciso de ti, sim, meu conto de fadas. Porque és a única pessoa com quem posso conversar, seja sobre o matiz de uma nuvem, o tilintar de um pensamento ou o facto de hoje, quando fui trabalhar, ter olhado para o rosto de um girassol alto e ele ter sorrido para mim com todas as suas sementes.

Vladimir Nabokov (Cartas a Vera)

domingo, 22 de dezembro de 2024

a minha avó repete:

a minha avó repete:

o tempo cura a ferida
mas não cura a cicatriz

e nenhum outro poema
de nenhum outro poeta
me falou tão alto ao ouvido

Inês Francisco Jacob


Espero um dia

Espero um dia ter de esperar-te, com a ansiedade
dos que perderam tudo ou quase, menos talvez a memória
E espero humildemente vir a merece-te, cometer um ato heroico
e merecer-te, ser outra e a mesma pessoa – e merecer-te
Espero estar bem triste para quando enfim chegares
poder dar-te o mais autêntico: a memória, a tristeza
Espero a grande disponibilidade de poder esperar à vontade
quero o espaço, todo o espaço – e muita falta de ar
Espero a paciência de adivinhar-te e a sufocação de ver-te
ou a graça de poder continuar à espera – indefinidamente
Espero, ardentemente espero que o tempo passe e a morte não exista
e eu apenas à tua espera rodeado de livros, sem perceber nada
Espero, já agora, que no final, como quem completa um puzzle
afinal mais simples do que parecia, tu simplesmente venhas

Rui Caeiro


[...]

Y mirá que apenas nos conocíamos y ya la vida urdía lo necesario para desencontrarnos minuciosamente. Como no sabías disimular me di cuenta en seguida de que para verte como yo quería era necesario empezar por cerrar los ojos.

Julio Cortázar


segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

Canción 19 horas

Quién habla del amor? Yo tengo frío
y quiero ser diciembre.

Quiero llegar a un bosque apenas sensitivo,
hasta la maquinaria del corazón sin saldo.
Yo quiero ser diciembre.

Dormir
en la noche sin vida,
en la vida sin sueños,
en los tranquilizados sueños que desembocan
al río del olvido.

Hay ciudades que son fotografías
nocturnas de ciudades.
Yo quiero ser diciembre.

Para vivir al norte de un amor sucedido,
bajo el beso sin labios de hace ya mucho tiempo,
yo quiero ser diciembre.

Como el cadáver blanco de los ríos,
como los minerales del invierno,
yo quiero ser diciembre.

Luis García Moreno


sábado, 30 de novembro de 2024

Malditos bailarinos sem cabeça

Aqueles de nós
que sendo filhos e netos
de honestíssimos homens do campo
cem vezes
negaram as suas origens
antes e depois do canto dos galos.
Aqueles de nós
que aprenderam com os lobos
as voltas
sombrias
do uivar e do perseguir
e que às crueldades adquiridas
acrescentaram
os refinamentos da perversidade
extirpados
das cavidades dos lamentos.
E aqueles de nós
que compartilharam (e compartilham)
a mesa
e a cama
com feras peludas destrutivas geladas
da imagem da pátria, e que mentiram ou calaram
na hora da verdade, vós,
somente vós, malévolos bailarinos sem cabeça
um dia valereis menos do que uma garrafa partida
lançada
para o fundo de uma cratera da Lua.

Roberto Sosa


El sistema

Los funcionarios no funcionan.
Los políticos hablan pero no dicen.
Los votantes votan pero no eligen.
Los medios de información desinforman.
Los centros de enseñanza enseñan a ignorar.
Los jueces condenan a las víctimas.
Los militares están en guerra contra sus compatriotas.
Los policías no combaten los crímenes, porque están ocupados en cometerlos.
Las bancarrotas se socializan, las ganancias se privatizan.
Es más libre el dinero que la gente.
La gente está al servicio de las cosas.

Eduardo Galeano


Aos vindouros, se os houver...

Vós, que trabalhais só duas horas
a ver trabalhar a cibernética,
que não deixais o átomo a desoras
na gandaia, pois tendes uma ética;

que do amor sabeis o ponto e a vírgula
e vos engalfinhais livres de medo,
sem preçários, calendários, pílula,
jaculatórias fora, tarde ou cedo;

computai, computai a nossa falha
sem perfurar demais vossa memória,
que nós fomos pràqui uma gentalha
a fazer passamanes com a história;

que nós fomos (fatal necessidade!)
quadrúmanos da vossa humanidade.

Alexandre O’Neill


A Elisabeth foi-se embora

Eu que já fui do pequeno-almoço à loucura
eu que já adoeci a estudar morse
e a beber café com leite
não posso passar sem a Elisabeth
porque é que a despediu senhora doutora?
que mal me fazia a Elisabeth
a lavar-me a cabeça
não suporto que a senhora doutora me toque na cabeça
eu só venho cá senhora doutora
para a Elisabeth me lavar a cabeça
só ela sabe as cores os cheiros a viscosidade
de que eu gosto nos shampoos
só ela sabe como eu gosto da água quase fria
a escorrer-me pela cabeça abaixo
eu não posso passar sem a Elisabeth
não me venha dizer que o tempo cura tudo
contava com ela para o resto da vida
a Elisabeth era a princesa das raposas
precisava das mãos dela na minha cabeça
ah não haver facas que lhe cortem o
pescoço senhora doutora eu não volto
ao seu antiséptico túnel
já fui bela uma vez agora sou eu
não quero ser barulhenta e sozinha
outra vez no túnel o que fez à Elisabeth?
a Elisabeth era a princesa das raposas
porque me roubou a Elisabeth?
a Elisabeth foi-se embora
é só o que tem para me dizer senhora doutora
com uma frase dessas na cabeça
eu não quero voltar à minha vida

Adília Lopes



Conserve este bilhete até ao final da viagem

Devo dizer que sempre preferi
os versos feridos pela prosa
da vida, os versos turvos
que tornam mais transparentes
os negros palcos do tempo, a dor
de sermos filhos das estações
e de andarmos por aí, hora após
hora, entre tudo o que declina
e piora. Em suma, os versos
que gritam: Temos as noites
contadas. E também
os que replicam:
Valha-nos isso.

Rui Pires Cabral


domingo, 24 de novembro de 2024

Diante do teu rosto tardio

Diante do teu rosto tardio,
des-
acompanhado entre
noites que também me alteram,
veio pôr-se algo
que já um dia estivera connosco, in-
cólume de pensamentos.

Paul Celan


Ao perder-te

1
Ao perder-te a ti perdemos os dois
eu porque tu eras o que mais amava
e tu porque eu era quem mais te amava.
Mas de nós os dois és tu quem perde mais
porque eu poderei amar outras como te amava a ti
mas a ti não te hão de amar como eu te amava.

2.
Contaram-me que estavas apaixonada por outro
e então fui para o meu quarto
e escrevi um artigo contra o governo
razão pela qual estou preso.

Ernesto Cardenal


O Marquês de Chamilly a Mariana Alcoforado

Minha senhora deve ter uma coisa muito urgente e capital a dizer-me porque me tem escrito muito e muitas vezes porém lamento dizer-lho mas n...