terça-feira, 22 de outubro de 2024

Traduzindo David Berman

Uns encontram
a luz na música
outros nos livros
já outros têm certeza
que ela só brilha no coração

Uns encontram
a luz no sexo
outros na bebida
já outros não encontram
luz nenhuma e levam uma vida no escuro

Daí vem alguém e diz
que isso é meio sombrio
mas não
a luz que a gente não vê
a gente acha que não faz falta

Leonardo Gandolfi


domingo, 13 de outubro de 2024

Se me puderes ouvir

Se me puderes ouvir
O poder ainda puro das tuas mãos
é mesmo agora o que mais me comove
descobrem devagar um destino que passa
e não passa por aqui
à mesa do café trocamos palavras
que trazem harmonias
tantas vezes negadas:
aquilo que nem ao vento sequer
segredamos
mas se hoje me puderes ouvir
recomeça, medita numa viagem longa
ou num amor
talvez o mais belo

José Tolentino de Mendonça



Sempre fui miúda de sonhos descabidos

Sempre fui miúda de sonhos descabidos
miúda grotescamente poética,
chata de coisas que chateiam
de pernas fininhas que depois engrossaram
as miúdas poéticas são bobinas de filmes, riscadas
são gaitas desafinadas
onde muitos passaram os lábios
mas não ficaram
as miúdas poéticas contemplam o suicídio
mesmo depois de uma taça de Corn Flakes
olham os telhados laranja de Lisboa
e pensam noutro sítio qualquer
semeiam flores para terem perfumes
matam-nas, por amá-las de mais
as miúdas poéticas têm cabelos desmoronados
de beatas e perguntas
têm roupa de detergente barato
e as unhas roídas à la carte
tossem devagarinho com medo de
agredir alguém
têm pose de girafa mas não chegam às árvores.

Cláudia R. Sampaio


Poema

Parte: como se tivesses de ser esquecida,
deixando atrás uma imagem de sombra. Não
leves contigo as palavras que trocámos,
como cartas, num instante de despedida; mas
não te esqueças da luz da tarde que os teus
olhos abrigaram. Por vezes, lembrar-me-ei
de ti. É como se, ao voltar-me, ainda me
esperasses, sem um sorriso, para me dizeres
que o tempo tudo resolve. Não te ouço; e,
ao aproximar-me dos teus braços, vejo-te
desaparecer. Mais tarde, penso, isto fará
parte de um poema; mas tu insistes. O amor
chama-nos, de dentro da vida; obriga-nos a
renunciar à imobilidade da alma,
a sacrificar o corpo a um desejo de memória.

Nuno Júdice


segunda-feira, 23 de setembro de 2024

Invictus

Out of the night that covers me,
Black as the pit from pole to pole,
I thank whatever gods may be
For my unconquerable soul.

In the fell clutch of circumstance
I have not winced nor cried aloud.
Under the bludgeonings of chance
My head is bloody, but unbowed.

Beyond this place of wrath and tears
Looms but the Horror of the shade,
And yet the menace of the years
Finds and shall find me unafraid.

It matters not how strait the gate,
How charged with punishments the scroll,
I am the master of my fate,
I am the captain of my soul.

William Ernest Henley


So

So, if you are too tired to speak, sit next to me for I, too, am fluent in silence.

Ron Arnold


quinta-feira, 19 de setembro de 2024

Poema X

Deito fora cavalo, pó, e fumo,
e juro não comer, nem ser, ou ter
outro suor de gente no meu ventre
por cem dias ao menos; ou seja, enquanto
a voz me ouvir, no fax das alturas.
Bem sabeis que não sei amar ninguém
e trago a boca cheia de mãos turvas
e me esqueci do nome de princesa;
que nada do que sou me sabe a certo
nem mesmo a errado, injusto ou justo;
e nunca saberei teologia,
astrologia, física celeste,
o bastante que explique o nascimento
a profusão das árvores e gente
que diz bom-dia quando a gente passa
e, indiferente, segue em frente.

António Franco Alexandre


When you are old

When you are old and grey and full of sleep,
And nodding by the fire, take down this book,
And slowly read, and dream of the soft look
Your eyes had once, and of their shadows deep;

How many loved your moments of glad grace,
And loved your beauty with love false or true,
But one man loved the pilgrim soul in you,
And loved the sorrows of your changing face;

And bending down beside the glowing bars,
Murmur, a little sadly, how Love fled
And paced upon the mountains overhead
And hid his face amid a crowd of stars.

William Butler Yeats


quarta-feira, 18 de setembro de 2024

Olha, Maria


Olha, Maria
Eu bem te queria
Fazer uma presa
Da minha poesia
Mas hoje, Maria
Pra minha surpresa
Pra minha tristeza
Precisas partir

Parte, Maria
Que estás tão bonita
Que estás tão aflita
Pra me abandonar
Sinto, Maria
Que estás de visita
Teu corpo se agita
Querendo dançar

Parte, Maria
Que estás toda nua
Que a lua te chama
Que estás tão mulher
Arde, Maria
Na chama da lua
Maria cigana

Maria maré
Parte cantando
Maria fugindo
Contra a ventania
Brincando, dormindo
Num colo de serra
Num campo vazio
Num leito de rio
Nos braços do mar

Vai, alegria
Que a vida, Maria
Não passa de um dia
Não vou te prender
Corre, Maria
Que a vida não espera
É uma primavera
Não podes perder

Anda, Maria
Pois eu só teria
A minha agonia
Pra te oferecer

Chico Buarque


terça-feira, 27 de agosto de 2024

Força estranha

https://youtube.com/watch?v=jBnedtBKUso

Eu vi um menino correndo, eu vi o tempo
Brincando ao redor do caminho daquele menino
Eu pus os meus pés no riacho
E acho que nunca os tirei
O Sol ainda brilha na estrada e eu nunca passei

Eu vi a mulher preparando outra pessoa
O tempo parou pra eu olhar para aquela barriga
A vida é amiga da arte
É a parte que o Sol me ensinou
O Sol que atravessa essa estrada que nunca passou

Eu vi muitos cabelos brancos na fronte do artista
O tempo não para e, no entanto, ele nunca envelhece
Aquele que conhece o jogo
Do fogo das coisas que são
É o Sol, é a estrada, é o tempo, é o pé e é o chão

Eu vi muitos homens brigando, ouvi seus gritos
Estive no fundo de cada vontade encoberta
E a coisa mais certa de todas as coisas
Não vale um caminho sob o Sol
E o Sol sobre a estrada é o Sol sobre a estrada
É o Sol

Por isso uma força me leva a cantar
Por isso essa força estranha
Por isso é que eu canto, não posso parar
Por isso essa voz tamanha

Caetano Veloso


[...]

Vendo bem, é tudo vão
e perdoa se te digo

que eu só te fiz um favor
ao escolher a solidão
que já trazias contigo.

Rui Pires Cabral


Mote

Passado, o que fazes tu aqui?
E como sabias onde eu estava?

Vítor Nogueira


Ode a Guillaume Apollinaire

No meio dos anjos desembarcados em Marselha
nas margens do Sena, ao ouvido de Marie,
os olhos ardidos de ternura,
leio os teus versos, sem piedade de ti.
 
Leio os teus versos neste outono breve
onde passeiam lentos com água
Lou e Ottomar;
a esperança é ainda violenta,
mas estamos tão cansados de esperar.
 
Leio os teus versos no cemitério
onde as crianças indiferentes
brincam à roda da tua sepultura;
e choro, ao lado de Madeleine,
órfão de ti, órfão de aventura.
 
E tu passas, artilheiro ,
apaixonadamente como um rio
ou touro de amor até aos cornos:
Orfeu cheirando a pólvora e a cio.
 
Passas, e seguem-te saltimbancos,
galdérias, vadios, ciganos e anões;
Annie - ou Jeanne - surge da bruma,
e de longe atira-te uma rosa,
talvez de lume, talvez de espuma.
 
Passas, e entras no paraíso
no meio dos adolescentes tresmalhados;
Martin, Gertrude, Hans e Henri,
com ervas ainda nos cabelos,
cantam coplas de putas e soldados.

Oh Madeleine, não tenhas piedade:
ou mortos somos nós, aqui sentados,
Com a noite nos ombros e embalando
a angústia nos braços decepados.

Eugénio de Andrade


Na luta de classes

Na luta de classes
todas as armas
são boas:
pedras, noite e poemas.

Paulo Leminski


domingo, 21 de julho de 2024

3.

Envolvo-me no silêncio da tua
chegada. O espelho turvo
do teu nome acelera em mim
a evidência deste corpo em
que persisto.
Fazes-me espesso, orgânico,
compacto em torno do absurdo forte
de nos imaginar reciprocamente
despenhados.
Porque sinto que caminho já no ar,
cada passo mais distante,
à espera da tua levitação, que me entendas
a um palmo do peito, enfim caídos
por consequência da rendição.
Entre nós e o mundo há
quinhentos metros
de grito.

Vasco Gato


Traduzindo David Berman

Uns encontram a luz na música outros nos livros já outros têm certeza que ela só brilha no coração Uns encontram a luz no sexo outros na beb...