quinta-feira, 31 de janeiro de 2019
Como é que sabe que é uma peça Sung?
“Como é que sabe que é uma peça Sung?” Ele voltou a sorrir. “As proporções – não há outra marca distintiva. Foi por isso que o antiquário falhou. É como o cego, que só se fia no toque familiar dos objectos. Aqui, se fôssemos só pelo tacto, não podíamos conhecer. Tente olhar lá para dentro e sentir as proporções, sentir a maneira como foi moldada, como um ovo de pássaro.” Daí a pouco comecei a ver vagamente o que ele via; era bastante como um teorema em geometria. Compreendi então que o que ele admirava era o modo como o pequeno objecto absorvia o espaço – não era a habilidosa manipulação da matéria, a simples beleza da função. Podia assim, do nosso ponto de vista, dar-se pouco significado a esta pequena recordação, enquanto que do dele era a requintada armadilha destinada a valorizar o espaço ambiente em volta dela. Era a estética chinesa e a capacidade negativa!”
Lawrence Durrell
quarta-feira, 30 de janeiro de 2019
Vemos, ouvimos e lemos (Cantata da paz)
https://www.youtube.com/watch?v=o_L-l0A1C6c
Vemos, ouvimos e lemos
Não podemos ignorar
Vemos, ouvimos e lemos
Não podemos ignorar
Vemos, ouvimos e lemos
Relatórios da fome
O caminho da injustiça
A linguagem do terror
A bomba de Hiroshima
Vergonha de nós todos
Reduziu a cinzas
A carne das crianças
DÁfrica e Vietname
Sobe a lamentação
Dos povos destruídos
Dos povos destroçados
Nada pode apagar
O concerto dos gritos
O nosso tempo é
Pecado organizado.
Sophia de Mello Breyner Andresen
Vemos, ouvimos e lemos
Não podemos ignorar
Vemos, ouvimos e lemos
Não podemos ignorar
Vemos, ouvimos e lemos
Relatórios da fome
O caminho da injustiça
A linguagem do terror
A bomba de Hiroshima
Vergonha de nós todos
Reduziu a cinzas
A carne das crianças
DÁfrica e Vietname
Sobe a lamentação
Dos povos destruídos
Dos povos destroçados
Nada pode apagar
O concerto dos gritos
O nosso tempo é
Pecado organizado.
Sophia de Mello Breyner Andresen
terça-feira, 29 de janeiro de 2019
Andar? Não me custa nada!...
Andar? Não me custa nada!...
Mas estes passos que dou
Vão alongando uma estrada
Que nem sequer começou.
Andar na noite?! Que importa?...
Não lenho medo da noite
Nem medo de me cansar;
Mas na estrada em que vou.
Passo sempre a mesma poria...
E começo a acreditar
No mau feitiço da estrada:
Que se ela não começou
Também não foi acabada!
Só sei que, neste destino,
Vou atrás do que não sei...
E já me sinto cansada
Dos passos que nunca dei.
Natália Correia
Rústica
Ser a moça mais linda do povoado.
Pisar, sempre contente, o mesmo trilho,
Ver descer sobre o ninho aconchegado
A bênção do Senhor em cada filho.
Um vestido de chita bem lavado,
Cheirando a alfazema e a tomilho...
- Com o luar matar a sede ao gado,
Dar às pombas o sol num grão de milho...
Ser pura como a água da cisterna,
Ter confiança numa vida eterna
Quando descer à "terra da verdade"...
Deus, dai-me esta calma, esta pobreza!
Dou por elas meu trono de Princesa,
E todos os meus Reinos de Ansiedade.
Pisar, sempre contente, o mesmo trilho,
Ver descer sobre o ninho aconchegado
A bênção do Senhor em cada filho.
Um vestido de chita bem lavado,
Cheirando a alfazema e a tomilho...
- Com o luar matar a sede ao gado,
Dar às pombas o sol num grão de milho...
Ser pura como a água da cisterna,
Ter confiança numa vida eterna
Quando descer à "terra da verdade"...
Deus, dai-me esta calma, esta pobreza!
Dou por elas meu trono de Princesa,
E todos os meus Reinos de Ansiedade.
Florbela Espanca
Eu sou do tamanho do que vejo
Da minha aldeia veio quanto da terra se pode ver no Universo...
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não, do tamanho da minha altura...
Nas cidades a vida é mais pequena
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.
Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar,
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.
Alberto Caeiro
sábado, 26 de janeiro de 2019
O amigo
1.
Um amigo, o primeiro amigo
dentro da nuvem de um sonho.
O impossível toca-nos as mãos
subitamente — o fogo, a flor concêntrica
de planetas no exílio.
Na terra do silêncio
os frutos caem
de sua própria vontade.
2.
Ao coração das coisas,
ao jugo das cores da memória,
ao pequeno desvio da sombra no deserto,
ao amor que nos alimenta de morte, à morte
que morre connosco
opomos a infinita
constelação
dos nossos sentidos.
Casimiro de Brito
Eu não vou ficar como elas
Eu não vou ficar como elas, amarelecida numa fotografia de piquenique, antepassada de mim mesmo. Eu não vou ficar estupidamente feliz num retrato de casamento, um único momento de glória, ao lado de um homem que não conheço, que nunca conhecerei mas que me vai fazer muitos filhos e mandar-me calar quando eu disser asneiras. Eu vou ter as ancas magnéticas, os seios livres, ofertados, os calcanhares vibráteis como cordas, transmitindo o chamamento da minha sede de ser amada e amar na vertigem de ser amada.
Natália Correia
sexta-feira, 25 de janeiro de 2019
Cala-te
e me adormece
a dizer-me que a vida
nunca vale o sonho que se esquece.
Cala-te, voz que assevera
e insinua
que a primavera
a pintar-se de lua
nos telhados,
só é bela
quando se inventa
de olhos fechados
nas noites de chuva e de tormenta.
Cala-te, sedução
desta voz que me diz
que as flores são imaginação
sem raiz.
Cala-te, voz maldita
que me grita
que o sol, a luz e o vento
são apenas o meu pensamento
enlouquecido….
(E sem a minha sombra
o chão tem lá sentido!)
Mas canta tu, voz desesperada
que me excede.
E ilumina o Nada
Com a minha sede.
José Gomes Ferreira
domingo, 20 de janeiro de 2019
Carta a uma menina que queria ser poeta
A Matilde Rosa Araújo
Quando quiseres fazer um poema
não procures imitar ninguém
nenhum autor
cujas obras tenhas conhecido
ou mesmo
qualquer cantiga popular
cujo autor desconheças.
Não.
Não faças isso.
Quando quiseres fazer um poema
a única coisa de que precisas
é sentir essa vontade e depois
- só depois -
decidires-te.
Um poema pode ter muitas formas:
pode ser feito com palavras
muito bonitas
ou muito engraçadas
muito bem escritas e alinhadas
numa linda folha de papel
mas também pode ser rabiscado
ou com figuras.
Pode ser a preto e branco
ou a cores
pode ser a tinta
a lápis
a esferográfica
a ponta de feltro
sobre papel
plástico
lousa
pedras
sei lá
até pode ser de areia
de pano
de folhas
pode ser só feito com a voz
falado
cantado
murmurado
dito
só dentro da cabeça da gente
ou então representado no palco
com gestos
caretas várias
aos saltos
cambalhotas
ou imovelmente.
Um poema pode ser tudo isso
pode ter essas formas todas
porque a poesia está
onde a soubermos encontrar
ou colocar.
A poesia é uma coisa que está
ou tem de estar
dentro de nós
e que nós
por isso
podemos projectar em tudo.
A poesia não é só uma arte
é um princípio
quer dizer
uma lei da nossa sensibilidade.
O que a poesia exige de nós
é só uma coisa:
liberdade
porque a liberdade
é a lei mais importante da criação
a lei mais importante da felicidade.
A poesia é um acto livre
tem de ser um acto livre.
Mas também é um jogo
um conjunto de regras
que a nós próprios impomos
para com elas praticarmos
um acto que nos torna felizes.
Todas as formas de arte
nascem dessa liberdade
dessa iniciativa
que nos leva a criar
coisas
casas
livros
palavras.
A poesia é para sermos felizes
e comunicarmos
essa felicidade.
Quando a poesia
trata de assuntos tristes
está a queixar-se
da falta de alegria
dos momentos infelizes do mundo
que não deixam criar
realidades belas
novas
generosas.
No entanto
quando um poeta cria
um poema
um objecto
uma coisa qualquer
nesse momento exacto
não pensa em nada disso:
vive simplesmente um impulso
a que ele se entrega
e depois entrega ao mundo.
Por isso
se tudo o que te apetece
é simplesmente
deitares-te no chão
e olhar o céu
podes crer
também isso é poesia
e basta.
Ana Hatherly
não procures imitar ninguém
nenhum autor
cujas obras tenhas conhecido
ou mesmo
qualquer cantiga popular
cujo autor desconheças.
Não.
Não faças isso.
Quando quiseres fazer um poema
a única coisa de que precisas
é sentir essa vontade e depois
- só depois -
decidires-te.
Um poema pode ter muitas formas:
pode ser feito com palavras
muito bonitas
ou muito engraçadas
muito bem escritas e alinhadas
numa linda folha de papel
mas também pode ser rabiscado
ou com figuras.
Pode ser a preto e branco
ou a cores
pode ser a tinta
a lápis
a esferográfica
a ponta de feltro
sobre papel
plástico
lousa
pedras
sei lá
até pode ser de areia
de pano
de folhas
pode ser só feito com a voz
falado
cantado
murmurado
dito
só dentro da cabeça da gente
ou então representado no palco
com gestos
caretas várias
aos saltos
cambalhotas
ou imovelmente.
Um poema pode ser tudo isso
pode ter essas formas todas
porque a poesia está
onde a soubermos encontrar
ou colocar.
A poesia é uma coisa que está
ou tem de estar
dentro de nós
e que nós
por isso
podemos projectar em tudo.
A poesia não é só uma arte
é um princípio
quer dizer
uma lei da nossa sensibilidade.
O que a poesia exige de nós
é só uma coisa:
liberdade
porque a liberdade
é a lei mais importante da criação
a lei mais importante da felicidade.
A poesia é um acto livre
tem de ser um acto livre.
Mas também é um jogo
um conjunto de regras
que a nós próprios impomos
para com elas praticarmos
um acto que nos torna felizes.
Todas as formas de arte
nascem dessa liberdade
dessa iniciativa
que nos leva a criar
coisas
casas
livros
palavras.
A poesia é para sermos felizes
e comunicarmos
essa felicidade.
Quando a poesia
trata de assuntos tristes
está a queixar-se
da falta de alegria
dos momentos infelizes do mundo
que não deixam criar
realidades belas
novas
generosas.
No entanto
quando um poeta cria
um poema
um objecto
uma coisa qualquer
nesse momento exacto
não pensa em nada disso:
vive simplesmente um impulso
a que ele se entrega
e depois entrega ao mundo.
Por isso
se tudo o que te apetece
é simplesmente
deitares-te no chão
e olhar o céu
podes crer
também isso é poesia
e basta.
Ana Hatherly
sábado, 19 de janeiro de 2019
Sobre o caminho
Nada
nem o branco fogo do trigo
nem as agulhas cravadas na pupila dos pássaros
te dirão a palavra
Não interrogues não perguntes
entre a razão e a turbulência da neve
não há diferença
Não colecciones dejectos o teu destino és tu
Despe-te
não há outro caminho
nem o branco fogo do trigo
nem as agulhas cravadas na pupila dos pássaros
te dirão a palavra
Não interrogues não perguntes
entre a razão e a turbulência da neve
não há diferença
Não colecciones dejectos o teu destino és tu
Despe-te
não há outro caminho
Eugénio de Andrade
Destino
à ternura pouca
me vou acostumando
enquanto me adio
servente de danos e enganos
vou perdendo morada
na súbita lentidão
de um destino
que me vai sendo escasso
conheço a minha morte
seu lugar esquivo
seu acontecer disperso
agora
que mais
me poderei vencer?
Mia Couto
terça-feira, 15 de janeiro de 2019
Coisas, pequenas coisas
Fazer das coisas fracas um poema.
Uma árvore está quieta,
murcha, desprezada.
Mas se o poeta a levanta pelos cabelos
e lhe sopra os dedos,
ela volta a empertigar-se, renovada.
E tu, que não sabias o segredo,
perdes a vaidade.
Fora de ti há o mundo
e nele há tudo
que em ti não cabe.
Homem, até o barro tem poesia!
Olha as coisas com humildade.
Fernando Namora
Uma árvore está quieta,
murcha, desprezada.
Mas se o poeta a levanta pelos cabelos
e lhe sopra os dedos,
ela volta a empertigar-se, renovada.
E tu, que não sabias o segredo,
perdes a vaidade.
Fora de ti há o mundo
e nele há tudo
que em ti não cabe.
Homem, até o barro tem poesia!
Olha as coisas com humildade.
Fernando Namora
Igual-Desigual
todas as histórias em quadrinho são iguais.
Todos os filmes norte-americanos são iguais.
Todos os filmes de todos os países são iguais.
Todos os best-sellers são iguais
Todos os campeonatos nacionais e internacionais de futebol são
iguais.
Todos os partidos políticos
são iguais.
Todas as mulheres que andam na moda
são iguais.
Todos os sonetos, gazéis, virelais, sextinas e rondós são iguais
e todos, todos
os poemas em verso livre são enfadonhamente iguais.
Todas as guerras do mundo são iguais.
Todas as fomes são iguais.
Todos os amores, iguais iguais iguais.
Iguais todos os rompimentos.
A morte é igualíssima.
Todas as criações da natureza são iguais.
Todas as acções, cruéis, piedosas ou indiferentes, são iguais.
Contudo, o homem não é igual a nenhum outro homem, bicho ou
[coisa.
Ninguém é igual a ninguém.
Todo o ser humano é um estranho
ímpar.
Carlos Drummond de Andrade
quinta-feira, 10 de janeiro de 2019
Amigo
Mal nos conhecemos
Inaugurámos a palavra «amigo».
«Amigo» é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo,
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece,
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!
«Amigo» (recordam-se, vocês aí,
Escrupulosos detritos?)
«Amigo» é o contrário de inimigo!
«Amigo» é o erro corrigido,
Não o erro perseguido, explorado,
É a verdade partilhada, praticada.
«Amigo» é a solidão derrotada!
«Amigo» é uma grande tarefa,
Um trabalho sem fim,
Um espaço útil, um tempo fértil,
«Amigo» vai ser, é já uma grande festa!
Alexandre O'Neill
Inaugurámos a palavra «amigo».
«Amigo» é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo,
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece,
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!
«Amigo» (recordam-se, vocês aí,
Escrupulosos detritos?)
«Amigo» é o contrário de inimigo!
«Amigo» é o erro corrigido,
Não o erro perseguido, explorado,
É a verdade partilhada, praticada.
«Amigo» é a solidão derrotada!
«Amigo» é uma grande tarefa,
Um trabalho sem fim,
Um espaço útil, um tempo fértil,
«Amigo» vai ser, é já uma grande festa!
Alexandre O'Neill
Brinquedo
Foi um sonho que eu tive:
Era uma grande estrela de papel
Um cordel
E um menino de bibe.
O menino tinha lançado a estrela
Com ar de quem semeia uma ilusão;
E a estrela ia subindo, azul e amarela,
Presa pelo cordel à sua mão.
Mas tão alto subiu
Que deixou de ser estrela de papel.
E o menino, ao vê-la assim, sorriu
E cortou-lhe o cordel.
Miguel Torga
terça-feira, 8 de janeiro de 2019
Os argonautas
https://www.youtube.com/watch?v=CwppKJjYReA
O barco, meu coração não aguenta
Tanta tormenta, alegria
Meu coração não contenta
O dia, o marco, meu coração
O porto, não
Navegar é preciso
Viver não é preciso
Navegar é preciso
Viver não é preciso
Tanta tormenta, alegria
Meu coração não contenta
O dia, o marco, meu coração
O porto, não
Navegar é preciso
Viver não é preciso
Navegar é preciso
Viver não é preciso
O barco, noite no céu tão bonito
Sorriso solto perdido
Horizonte, madrugada
O riso, o arco, da madrugada
O porto, nada
Navegar é preciso
Viver não é preciso
Navegar é preciso
Viver não é preciso
Sorriso solto perdido
Horizonte, madrugada
O riso, o arco, da madrugada
O porto, nada
Navegar é preciso
Viver não é preciso
Navegar é preciso
Viver não é preciso
O barco, o automóvel brilhante
O trilho solto, o barulho
Do meu dente em tua veia
O sangue, o charco, barulho lento
O porto, silêncio
Navegar é preciso
Viver não é preciso
Navegar é preciso
Viver não é preciso
Navegar é preciso
Viver não é preciso
Navegar é preciso
Viver não é preciso
Navegar é preciso
Viver . . .
O trilho solto, o barulho
Do meu dente em tua veia
O sangue, o charco, barulho lento
O porto, silêncio
Navegar é preciso
Viver não é preciso
Navegar é preciso
Viver não é preciso
Navegar é preciso
Viver não é preciso
Navegar é preciso
Viver não é preciso
Navegar é preciso
Viver . . .
Caetano Veloso
sábado, 5 de janeiro de 2019
Achado
Fui à floresta,
Em si volvido.
Na distração
Tive sentido.
No escuro eu vi
Uma flor bela,
Com olhos ternos,
Como uma estrela.
Eu fui cortá-la;
Pôs-se a falar:
“Se eu for cortada,
Não vou murchar?”
Rente às raízes
Fundo cavei,
E ao meu jardim
A transplantei.
Em lugar calmo
Pus a flor linda;
Sempre há um renovo,
Floresce ainda.
Goethe
quinta-feira, 3 de janeiro de 2019
Poema de um funcionário cansado
A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só
Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?
Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo numa só noite comprida
num quarto só
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só
Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?
Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo numa só noite comprida
num quarto só
António Ramos Rosa
quarta-feira, 2 de janeiro de 2019
História do sul
Anoiteceu, recordo-me, era um cão pequeno e branco, numa
cidade do sul, com limoeiros ainda e o frémito da sombra ao
fundo dos pátios. Um cão, há muitos anos, via-o aproximar-se
de longe, certamente tinha um destino, magro destino de cão,
já se sabe, contudo destino. Na noite deserta, um osso na
boca, ele ia à sua vida, talvez uma cadela o esperasse num
daqueles vícolos que desaguavam nas trevas do porto, mas
também ele me viu, não era difícil, na rua deserta só eu
aguardava, e quase alvoroçado aproximou-se, parou na minha
frente, deitou fora o osso, ergueu-se nas patas traseiras e os
olhos diziam que, a partir de então, osso, cadela, destino,
tudo isso era eu. Inclinei-me para uma festa, disse-lhe também
da minha ternura, daquela ferida breve acabada de abrir, mas o
meu destino era ainda mais precário, mal chegara não tardaria
a partir, só quase o tempo de respirar a cal da sombra. Dei
alguns passos, sabia que me seguia, parei, parou, voltei a
caminhar, voltou a seguir-me, de novo o acariciei, ali estavam
aqueles olhos molhados, eram por assim dizer os olhos de minha
mãe, outra vez lhe falei, lhe pedi perdão por não poder
levá-lo, por não poder ficar, viajar com amigos não era andar
pelo mundo de sacola ao ombro, devia compreender. Não, ele não
compreendia, não podia mesmo entender razões assim, a terra
era o que havia de mais deserto, do amor não ficava senão um
pequeno fio de sangue, menos ainda, a baba da lesma na relva,
e de repente uma campainha retiniu, ficámos rodeados de gente,
o deserto aumentou, ele continuava na minha frente, aqueles
olhos onde subiam as águas mais fundas, como esquecê-los? Os
amigos ali estavam,
deram-se logo conta, os inteligentes, daquele enleio, deram
também razões, o cãozito tinha certamente dono, via-se bem que
não era vadio embora lhe faltasse raça, quisesse eu não
faltariam cães, por toda a parte havia milhares bem mais
bonitos, e depois, as fronteiras, tanto trabalho por um cão
vulgaríssimo, como vês não entendem, nenhum deles viu nos teus
olhos a raiz do orvalho, entraram no carro, fiz-lhe ainda uma
festa, da janela de trás via-o no espaço que o automóvel
deixara, farejava o chão inquieto, depois levantou a cabeça
desorientado, não percebia como um sopro me levara, impossível
amor, meu filho, passarei o resto da vida a embalar-te, as
pessoas continuavam a dispersar, as últimas luzes do cinema
apagavam-se, a rua escureceu, não tardaria a ficar deserta.
Eugénio de Andrade
terça-feira, 1 de janeiro de 2019
A vida
A vida, as suas perdas e os seus ganhos, a sua
mais que perfeita imprecisão, os dias que contam quando não se espera, o atraso na preocupação
dos teus olhos, e as nuvens que caíram
mais depressa, nessa tarde, o círculo das relações
a abrir-se para dentro e para fora
dos sentidos que nada têm a ver com círculos,
quadrados, rectângulos, nas linhas
rectas e paralelas que se cruzam com as
linhas da mão;
a vida que traz consigo as emoções e os acasos,
a luz inexorável das profecias que nunca se realizaram
e dos encontros que sempre se soube que
se iriam dar, mesmo que nunca se soubesse com
quem e onde, nem quando; essa vida que leva consigo
o rosto sonhado numa hesitação de madrugada,
sob a luz indecisa que apenas mostra
as paredes nuas, de manchas húmidas
no gesso da memória;
a vida feita dos seus
corpos obscuros e das suas palavras
próximas.
Nuno Júdice
A um jovem poeta
Procura a rosa.
Onde ela estiver
estás tu fora
de ti. Procura-a em prosa, pode ser
que em prosa ela floresça
ainda, sob tanta
metáfora; pode ser, e que quando
nela te vires te reconheças
como diante de uma infância
inicial não embaciada
de nenhuma palavra
e nenhuma lembrança.
Talvez possas então
escrever sem porquê,
evidência de novo da Razão
e passagem para o que não se vê.
Manuel António Pina
Onde ela estiver
estás tu fora
de ti. Procura-a em prosa, pode ser
que em prosa ela floresça
ainda, sob tanta
metáfora; pode ser, e que quando
nela te vires te reconheças
como diante de uma infância
inicial não embaciada
de nenhuma palavra
e nenhuma lembrança.
Talvez possas então
escrever sem porquê,
evidência de novo da Razão
e passagem para o que não se vê.
Manuel António Pina
Subscrever:
Mensagens (Atom)
a minha avó repete:
a minha avó repete: o tempo cura a ferida mas não cura a cicatriz e nenhum outro poema de nenhum outro poeta me falou tão alto ao ouvido Inê...
-
Onde uma tem o cetim a outra tem a rudeza * Onde uma tem a cantiga a outra tem a firmeza * Tomba o cabelo nos ombros o suor pela barriga * O...
-
Quietos fazemos as grandes viagens só a alma convive com as paragens estranhas lembro-me de uma janela na Travessa da Infância onde se...
-
Hoje roubei todas as rosas dos jardins e cheguei ao pé de ti de mãos vazias. Eugénio de Andrade