quarta-feira, 2 de janeiro de 2019

História do sul

Anoiteceu, recordo-me, era um cão pequeno e branco, numa
cidade do sul, com limoeiros ainda e o frémito da sombra ao
fundo dos pátios. Um cão, há muitos anos, via-o aproximar-se
de longe, certamente tinha um destino, magro destino de cão,
já se sabe, contudo destino. Na noite deserta, um osso na
boca, ele ia à sua vida, talvez uma cadela o esperasse num
daqueles vícolos que desaguavam nas trevas do porto, mas
também ele me viu, não era difícil, na rua deserta só eu
aguardava, e quase alvoroçado aproximou-se, parou na minha
frente, deitou fora o osso, ergueu-se nas patas traseiras e os
olhos diziam que, a partir de então, osso, cadela, destino,
tudo isso era eu. Inclinei-me para uma festa, disse-lhe também
da minha ternura, daquela ferida breve acabada de abrir, mas o
meu destino era ainda mais precário, mal chegara não tardaria
a partir, só quase o tempo de respirar a cal da sombra. Dei
alguns passos, sabia que me seguia, parei, parou, voltei a
caminhar, voltou a seguir-me, de novo o acariciei, ali estavam
aqueles olhos molhados, eram por assim dizer os olhos de minha
mãe, outra vez lhe falei, lhe pedi perdão por não poder
levá-lo, por não poder ficar, viajar com amigos não era andar
pelo mundo de sacola ao ombro, devia compreender. Não, ele não
compreendia, não podia mesmo entender razões assim, a terra
era o que havia de mais deserto, do amor não ficava senão um
pequeno fio de sangue, menos ainda, a baba da lesma na relva,
e de repente uma campainha retiniu, ficámos rodeados de gente,
o deserto aumentou, ele continuava na minha frente, aqueles
olhos onde subiam as águas mais fundas, como esquecê-los? Os
amigos ali estavam, 
deram-se logo conta, os inteligentes, daquele enleio, deram
também razões, o cãozito tinha certamente dono, via-se bem que
não era vadio embora lhe faltasse raça, quisesse eu não
faltariam cães, por toda a parte havia milhares bem mais
bonitos, e depois, as fronteiras, tanto trabalho por um cão
vulgaríssimo, como vês não entendem, nenhum deles viu nos teus
olhos a raiz do orvalho, entraram no carro, fiz-lhe ainda uma
festa, da janela de trás via-o no espaço que o automóvel
deixara, farejava o chão inquieto, depois levantou a cabeça
desorientado, não percebia como um sopro me levara, impossível
amor, meu filho, passarei o resto da vida a embalar-te, as
pessoas continuavam a dispersar, as últimas luzes do cinema
apagavam-se, a rua escureceu, não tardaria a ficar deserta.

Eugénio de Andrade 

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