domingo, 28 de fevereiro de 2021

Miranda do Douro, 29/02/21


 

Cena bárbara

Os bárbaros brincam com os patos no jardim,
correm atrás deles, querem convencê-los
de que são galinhas, e cobrem as cabeças
com cristas para se disfarçarem de galos. Os bárbaros são
analfabetos mas escrevem cartas às namoradas, e quando elas
respondem fingem que sabem ler e inventam frases
de amor em que só eles acreditam. Os bárbaros não
precisam de fazer a barba nem de usar gravata, mas
às vezes sentam-se como se fossem educados, pedem
uma água mineral e abrem o jornal só para fingir
que sabem ler, e são intransigentes com as moscas
que lhes pousam no nariz e que matam à palmada. Para
trocar as voltas aos bárbaros, nada melhor do que
ameaçá-los com a faca com que se corta o pescoço às galinhas,
e dizer-lhes que a canja está na panela, e se a quiserem
o mundo será canja para eles. Mas depois de comer
a canja os bárbaros vão ao espelho, cortam a barba
com a faca de matar galinhas, põem gravata e dão
vivas como se não fossem bárbaros, soubessem
ler e não vivessem no quintal dos patos que eles,
armados em galos, querem transformar em galinhas
para as comerem, uma a uma, no meio dos pintainhos.

Nuno Júdice

Zé Tolentino

O meu pai estava a explicar ao meu sobrinho Duarte, então uma criança, a importância da inteligência e o Duarte interrompeu-o assim

– Há uma coisa muito mais importante que a inteligência, avô, é a bondade.

O meu pai contou-me isto comovido

– O miúdo tem razão, o miúdo tem razão

e tinha: a bondade é muito mais importante que a inteligência. Este episódio veio-me à cabeça por causa do Zé Tolentino: ele tem as duas coisas em grau altíssimo, o malandro. Uma bondade enorme e a inteligência metida lá dentro. De que serve ela, aliás, fora disso? A bondade

(e, já agora, a modéstia)

rodeiam-no como um halo, 
a inteligência possui uma descrição e uma delicadeza que não sei se encontrei em mais alguém. Para além disto

(ele, de facto, é escandalosamente rico)

carrega uma agudeza e uma cultura de cristal de rocha e um talento poético de excepção. Nós somos, felizmente, um país de poetas, de grandes poetas, e José Tolentino Mendonça é sem dúvida um deles. E isto é verdade porque eu digo. A sua voz é inteiramente pessoal, compreende-se, ao lê-lo, que o seu conhecimento das obras alheias é muito grande, nota-se, como em qualquer artista, o halo 
dos autores que foram importantes para ele, mas a sua voz não deve nada a ninguém a não ser a si mesmo. (Se eu fosse parvo escrevia eu próprio, que é como pôr ketchup em cima de rodelas de tomate.) Não só não deve 
nada a ninguém a não ser a si mesmo como se sente que a qualidade da sua voz vai continuar a crescer. 
E o pouco

(o muito pouco)

que conheço da sua prosa é de altíssima qualidade. Não é um ficcionista nem me interessaria que o fosse, é um magnífico escritor com um perfeito domínio da ondulação e do ritmo, capaz de pensar numa musicalidade de cristal, denso sem nunca ser pesado, fundo sem nunca sair pela outra ponta, de palavras todas dominadas como cavalinhos de circo. O talento deste homem, naturalmente humilde, faz-nos sentir aquela inveja boa da qual o Zé Cardoso Pires me falou tantas vezes:

– Tenho uma inveja boa de ti,

dizia ele todo vaidoso

tenho uma inveja boa de ti

e é óptimo ter uma inveja boa dos camaradas 
de ofício. Infelizmente, Zé, falta-me a tua qualidade humana e nisso invejo-te também. Eu, que me acho 
o melhor do mundo

(não tenho lugar em mim para falsas modéstias)

invejo-te de um modo 
que me faz morder-me todo. Invejo-te a quantidade 
e invejo-te a qualidade, quase que dava o cu

(desculpa lá, não sou padre)

para compor poemas assim. Sendo um homem complexo, por vezes aparentemente contraditório, consegues sempre tocar-me no coração do coração porque a tua inteligência é uma doçura de gume que me penetra sempre até ao centro de mim, onde estou eu e tudo o que amo também. Devo-te o prazer de te ler, devo-te o prazer 
de aprender contigo

(que ensinas sempre aprendendo, malandro, 
outra virtude rara)

devo-te 
o prazer de, ao estarmos juntos, sermos dois sobretudo quando conseguimos ser um. Esta crónica não vai ser comprida porque está cheia de amor, amizade, respeito e ternura e esses sentimentos poupam-se. Só quero dizer quanto te agradeço não por seres meu amigo, só quero dizer quanto te agradeço por eu ser teu amigo. Quem não necessita de um amigo assim nesta vida? Espero que tenha sobrado suficiente papel nesta página para caber lá um abraço. Este:

António Lobo Antunes

(Visão, 3 de maio de 2018)


domingo, 21 de fevereiro de 2021

Rio Mira, Milfontes

 


Anunciação

Não tenho palavras, nem entendo
formas visíveis.
Elas vêm concretas como aragem
a que dou nome.

Tenho-me, eis tudo. Acontece.
Há uma folha que desce,
que sobrenada, que desce,
que submerge no ar e depois desce
longe de mim no ar fundo.

Nós não somos deste mundo.

Fresca e limpa como a chuva,
ouço a tua voz cantada
descer do céu ao silêncio
que vem da terra molhada.

Nós não somos deste mundo.

Ouso dizer-te o meu nome
como quem se atreve a dar-te
a minha imagem.

Nós não somos deste mundo.

O que não vejo, entendo.
Pelos rios do meu sangue,
atrevo-me.

Anoitecendo, a vida recomeça.
Dou-me em palavras
que ressuscitam.
Algures no céu amanhece.

Só, intranquilo, pela vereda, desce
o nómada meu amigo.

Ruy Cinatti

Vieste do fim do mundo


https://www.youtube.com/watch?v=TdL-MHtRzD4

Vieste do fim do mundo
num barco vagabundo 
vieste como quem tinha que vir
para contar 
histórias e verdades
vontades e carinhos
promessas e mentiras
de quem de porto em porto amar se faz 
vieste de repente
de olhar tão meigo e quente
bebeste a celebrar a volta tua
tomaste-me em teus braços
em marinheiros laços
tocaste no meu corpo uma canção
que em vil magia me fez tua 
subiste para o quarto
de andar tão mole e farto
de beijos e de rum
a noite ardeu
cobri-me em tatuagens
dissolvi-me em viagens
com pólvora e perdões
tomaste o meu navio
que agora é teu. 

João Lóio

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Pedra nativa (fragmento)


Como as pedras do Princípio
Como o princípio da Pedra
Como no Princípio pedra contra pedra
Os fastos da noite:
O poema ainda sem rosto
O bosque ainda sem árvores
Os cantos ainda sem nome

Mas a luz irrompe com passos de leopardo
E a palavra levanta-se ondula cai
E é uma extensa ferida e puro silêncio sem mácula

Octavio Paz


terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

Bandoneón


El litúrgico armonio callejero,
el órgano más pobre de Alemania,
fue con los emigrantes que embarcaron
y llegó hasta el burdel en Buenos Aires.
Igual que un cura apóstata,
allí se fue arrastrando por historias
de soledad y de melancolía.
Amé siempre los tangos, que escuchaba
en mi niñez, las tardes de domingo:
mi padre y mi madre los bailaban
recorriendo el pasillo de la casa.
Son la voz de una épica perdida,
con los bandoneones arrastrando
letras que hablan de un amor culpable.
Los que bailaban en aquel pasillo
ahora viven ya dentro de un tango
que, misteriosamente feliz, canta
un viejo que sonríe dando un paso de baile
mientras se acerca a la Desconocida.

Joan Margarit


sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Quién eres tú?

https://www.youtube.com/watch?v=FZCb6-2QvEs 

Quién eres tú?
Que amándome de día
Me arrastras al
Peligro de la noche.
Quién eres tú?
Que con sabiduría
Anulas todo el peso
Del reproche.
Quién eres tú?
Que siempre sosteniendo
Mi voluntad
Me ofrece la segura
Ventana, donde el sol
Está naciendo
Y me llenas de vida
La aventura.
Quiero evadirme
De esas horas graves
Donde las cosas
No son nunca claras
Tal vez allí te espere la respuesta
A la pregunta que me deparares.
Pago tu amor
Con un amor fastuoso
Más puro que la nieve
Y más humano que el agua
Que bebiste en otros pozos
Y todo aquello que tocó tu mano.

Ponte Caldelas, Galiza





Paisagens


São outras as paisagens quando alguém
as vê pelas janelas do seu próprio coração ou quando
com esse coração
a própria estrada está comprometida.

Luís Miguel Nava


Soneto do amigo


Enfim, depois de tanto erro passado
Tantas retaliações, tanto perigo
Eis que ressurge noutro o velho amigo
Nunca perdido, sempre reencontrado.

É bom sentá-lo novamente ao lado
Com olhos que contêm o olhar antigo
Sempre comigo um pouco atribulado
E como sempre singular comigo.

Um bicho igual a mim, simples e humano
Sabendo se mover e comover
E a disfarçar com o meu próprio engano.

O amigo: um ser que a vida não explica
Que só se vai ao ver outro nascer
E o espelho de minha alma multiplica...

Vinícius de Moraes


segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

Em poucas palavras


https://www.youtube.com/watch?v=lhKTlK4kRyU 


De longe em longe regressas

De longe em longe regressas.

Chegas pelo lado mais escuro

dos meus sonhos e sentas-te a meu lado

sem nada dizer.

Olhamos ambos o escuro, comovidos.

Há uma alegria tão funda neste reencontro

que estremece as raízes mais próximas,

breve bálsamo nos caminhos que temos de cumprir

para chegar

onde a vida nos envia.

Depois levantas-te, regressas sem uma palavra

 à noite fechada que te engole.

Levas contigo a chave

e deixas-me a casa, inabitável.


Violeta Runa


sábado, 6 de fevereiro de 2021

Guardar


Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la. Em cofre não
se guarda coisa alguma. Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la, isto
é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por ela, isto é,
velar por ela, isto é, estar acordado por ela, isto é, estar por ela
ou ser por ela.
Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro
Do que pássaros sem vôos.
Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica, por isso se
declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.

Antônio Cícero


Las simples cosas

💗

https://www.youtube.com/watch?v=kSRex8sj_u4 


sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

Congresso Internacional do Medo

Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio porque esse não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,
depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.

Carlos Drummond de Andrade


Remedia Amoris

Foi uma péssima ideia a de voltarmos a ver-nos. Não fizemos mais do que trocar insultos e culpar-nos de velhas e sórdidas histórias. Depois ...