quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

Um tempo que passou

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Vou
Uma vez mais
Correr atrás
De todo o meu tempo perdido
Quem sabe, está guardado
Num relógio escondido por quem
Nem avalia o tempo que tem
Ou alguém o achou
Examinou
Julgou um tempo sem sentido
Quem sabe, foi usado
E está arrependido o ladrão
Que andou vivendo com o meu quinhão
Ou dorme num arquivo
Um pedaço de vida
A vida, a vida que eu não gozei
Eu não respirei
Eu não existia
Mas eu estava vivo
Vivo, vivo
O tempo escorreu
O tempo era meu
E apenas queria
Haver de volta
Cada minuto que passou sem mim
Sim
Encontro enfim
Iguais a mim
Outras pessoas aturdidas
Descubro que são muitas
As horas dessas vidas que estão
Talvez postas em grande leilão
São mais de um milhão
Uma legião
Um carrilhão de horas vivas
Quem sabe, dobram juntas
As dores coletivas, quiçá
No canto mais pungente que há
Ou dançam numa torre
As nossas sobrevidas
Vidas, vidas
A se encantar
A se combinar
Em vidas futuras
Enquanto o vinho corre, corre, corre
Morrem de rir
Mas morrem de rir
Naquelas alturas
Pois sabem que não volta jamais
Um tempo que passou

Sérgio Godinho/Chico Buarque


terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Reflexão n.º 1

Ninguém sonha duas vezes o mesmo sonho
Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio
Nem ama duas vezes a mesma mulher.

Deus, de onde tudo deriva,
É a circulação e o movimento infinito.

Ainda não estamos acostumados com o mundo
Nascer é muito comprido.

Murilo Mendes


sábado, 19 de fevereiro de 2022

Fado Escorpião

 https://www.youtube.com/watch?v=EpXPaE5VM2E

Escorpião relacional
Sou de matar e morrer
Meu movimento letal
É só porque tem de ser

Já tentei fazer diferente
Já tentei não me afogar
Mas a força da corrente
Nunca me deixou mudar

Atracção pelos excessos
Ou simples curiosidade
Não são todos os começos
Princípio de eternidade?


O que eu faço não se faz
Já tanta gente mo disse
Mas eu nunca fui capaz
Nem vou ser porque alguém disse

Escorpião relacional
Sou de matar e morrer
Por condição afinal
Sou assim, tenho que ser

Duarte



Só necessito que tu existas

Afogo no teu ombro
tudo o que não te digo
o pânico do sonho
o resplendor do risco

É de ti que me escondo
Em ti é que me firmo
Antes de já ser ontem
sentir que estamos vivos

Nada garante que tu existas
Não acredito que tu existas

Só necessito que tu existas


David Mourão-Ferreira


quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

Extención y fama del oficio de puta


No te quejes, ¡oh, Nise!, de tu estado

aunque te llamen puta a boca llena,

que puta ha sido mucha gente buena

y millones de putas han reinado.


Dido fue puta de un audaz soldado

y Cleopatra a ser puta se condena

y el nombre de Lucrecia, que resuena,

no es tan honesto como se ha pensado;


esa de Rusia emperatriz famosa

que fue de los virotes centinela,

entre más de dos mil murió orgullosa;


y, pues todas lo dan tan sin cautela,

haz tú lo mismo, Nise vergonzosa;

que aquesto de honra y virgo es bagatela.


Tomás de Iriarte


domingo, 13 de fevereiro de 2022

 


Os justos

Um homem que cultiva o seu jardim, como queria Voltaire.
O que agradece que na terra haja música.
O que descobre com prazer uma etimologia.
Dois empregados que num café do Sul jogam um xadrez silencioso.
O ceramista que premedita uma cor e uma forma.
O tipógrafo que compõe bem esta página, que talvez não lhe agrade.
Uma mulher e um homem que leem os tercetos finais de certo canto.
O que acarinha um animal adormecido.
O que justifica ou quer justificar um mal que lhe fizeram.
O que agradece que na terra haja Stevenson.
O que prefere que os outros tenham razão.
Essas pessoas, que se ignoram, estão a salvar o mundo.

Jorge Luis Borges


quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

(Escre)ver-me

nunca escrevi

sou
apenas um tradutor de silêncios

a vida
tatuou-me nos olhos
janelas
em que me transcrevo e apago

sou
um soldado
que se apaixona
pelo inimigo que vai matar

Mia Couto


quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

Se cada dia cai

Se cada dia cai, dentro de cada noite,

há um poço
onde a claridade está presa.

Há que sentar-se na beira
do poço da sombra
e pescar a luz caída
com paciência.

Pablo Neruda


segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

Destino

Matamos o que amamos. O resto
nunca esteve vivo.
Ninguém está tão perto. A nenhum outro fere
um esquecimento, uma ausência, às vezes menos.
Matamos o que amamos. Que cesse esta asfixia
de respirar por um pulmão distante!
O ar não é suficiente
para os dois. E não basta a terra
para os corpos juntos
e a ração de esperança é pouca
e a dor não se pode dividir.

O homem é um animal de solidões,
cervo com uma flecha no flanco
que foge e se dessangra.

Ah, porém o ódio, sua fixação insone
de pupilas de vidro; sua atitude
que alterna entre repouso e ameaça.

O cervo vai beber e na água aparece
o reflexo do tigre.

O cervo bebe a água e a imagem. Torna-se
– antes que o devorem – (cúmplice, fascinado)
igual ao seu inimigo.

Damos a vida apenas ao que odiamos.

Rosario Castellanos


domingo, 6 de fevereiro de 2022

Eu cá sou do Midi


Como tu és loira
Eu sou muito moreno
Como és mexediça
Eu sou mesmo sereno
Tens um ar que corta corações alados
Meu ser apaixonado
Insiste todavia
Que hei-de eu fazer da minha idiossincrasia?

Tu és muito fria
Eu cá sou muito quente
Tu és quase triste
Eu sou quase indecente
Persiste a volúpia na latinidade
Esta sensualidade
No grau superlativo
Mesmo do género idílico e contemplativo
Sou um militante ativo
E queres ser minha lira
Tal qual és…
Mentira

Como és tão calada
Eu sou tão algarvio
Como és civilizada
Eu sou mesmo gentio
Teu estilo derrama tecnologias
Mas não tem a poesia
Que esta emoção encerra
Também vos falta o que nos sobra lá na terra

Tu és muito ao norte
Eu cá sou do Midi
Tu és quase distante
E eu quase te esqueci
O teu modo esguio, gótico, ogival
O meu sentimental
Bucólico e idealista
Prometem terramotos, trovões e faíscas
Ó alma renascentista
P'ra além deste chinfrim
Que mais queres tu de mim?
P'ra além desta cantiga
A quanto tu me obrigas

Fausto Bordalo Dias


sábado, 5 de fevereiro de 2022

O brinco que perdeste

Marta, em quantas vidas não nos encontrámos, mas aconteceu-nos algures o milagre, o encontro, as palavras. Esta a parte que quero lembrar de quanto não nos foi dado, roubado, falhado, ou simplesmente sumido entre ruas e esquinas onde virámos ou não virámos, mas sempre deixámos para trás a rua por onde não fomos. E no entanto, é bem capaz de ser verdade que os mais belos encontros são os que não vivemos, os únicos que afinal a vida pobre não alcança. Marta, desculpa, não queria estragar com palavras um silêncio tão limpo, mas estás a ver, não sou capaz. Preciso demasiado das palavras, procuro demasiado nas palavras a vida que delas afasto, consumado idiota, a correr para lá de mim numa ânsia ridícula e sem sentido, rumo a nada, rumo ao fim. Marta, aceita-o, se puderes, na sua imperfeição e no seu erro, na mão que te estende e nada quer. Este é, embora não pareça, um poema feliz para guardares na estante dos teus livros tristes.

Jorge Roque


Remedia Amoris

Foi uma péssima ideia a de voltarmos a ver-nos. Não fizemos mais do que trocar insultos e culpar-nos de velhas e sórdidas histórias. Depois ...