quinta-feira, 27 de junho de 2024

Ave, Maria

Gosto de pensar, Maria, que também a tua fraqueza sustém a tua força, que soubeste aceitar atravessar tantas incertezas, fazendo aderir o teu coração a uma confiança que não se via. E que, por isso, não te é estranha a minha agitação confusa, a minha indecisão, os medos que em certas horas me agridem, e que tu, que tudo compreendes, sabes abraçar.

Gosto de recordar quanto foi difícil o teu caminho, repleto de obstáculos mais duros do que aqueles que eu enfrento, fustigado por sombras, derivas e dores. E que o teu olhar se tornou um imenso ventre, onde posso depor tudo aquilo que tanto me custa, e que tu, que tudo compreendes, sabes abraçar.

Gosto de contemplar essa tua capacidade de agradecer. De agradecer a anunciação luminosa e as suas ásperas consequências; essas palavras límpidas e depois uma dolorosa sucessão de momentos passados a perguntar-te como será; a brandura da brisa e a dureza do vento.

E que, por isso, tu abraças o meu cansaço de viver com esperança a minha força e a minha fragilidade; aquilo que levo ao termo e aquilo que deixarei incompleto; aquilo que depende ou não depende de mim – e tudo tu compreendes.

Gosto de saber que encontraste os planos de Deus infinitamente superiores a ti e que, mais uma vez, te sentiste pequena, só e não à altura, como tantas vezes eu me sinto. E também por isto, no fundo de mim experimento que me abraças, tu que tudo compreendes.

José Tolentino de Mendonça


A minor bird

I have wished a bird would fly away,
And not sing by my house all day;

Have clapped my hands at him from the door
When it seemed as if I could bear no more.

The fault must partly have been in me.
The bird was not to blame for his key.

And of course there must be something wrong
In wanting to silence any song.

Robert Frost


É o que me interessa

https://www.youtube.com/watch?v=G_O-8jCtSIE 

Daqui desse momento
do meu olhar pra fora
o mundo é só miragem. 
A sombra do futuro
a sobra do passado
assombram a paisagem.

Quem vai virar o jogo
e transformar a perda
em nossa recompensa? 

Quando eu olhar pro lado
eu quero estar cercado
só de quem me interessa. 

Às vezes é um instante
a tarde faz silêncio 
o vento sopra a meu favor. 
Às vezes eu pressinto
e é como uma saudade
de um tempo que ainda não passou.

Me traz o teu sossego
atrasa o meu relógio
acalma a minha pressa... 
Me dá sua palavra
sussurra em meu ouvido
só o que me interessa. 

A lógica do vento
o caos do pensamento
a paz na solidão... 
A órbita do tempo
a pausa do retrato
a voz da intuição. 
A curva do universo
a fórmula do acaso
o alcance da promessa... 
O salto do desejo
o agora e o infinito,
só o que me interessa 

Lenine


Limites

Uma noite me dei conta de que possuía uma história,
contínua, desde o meu nascimento indesligável de mim.
E de que era monótona com sua fieira de lábios, narizes,
modos de voz e gesto repetindo-se.
Até os dons, um certo comum apelo ao religioso
e que tudo pesava. E desejei ser outro.
Minha mãe não tinha letras.
Meu pai frequentou um ginásio por três dias
de proveitoso retiro espiritual.
Tive um mundo grandíssimo a explorar:
‘Demagogia, o que é mesmo que essa palavra é?’
Abismos de maravilha oferecidos em sermãos triunfantes:
‘Tota pulchra est Maria!’
Só quadros religiosos nas paredes.
Só um lugar aonde ir
— e já existiam Nova Iorque, Roma!
Tanta coisa eu julguei inventar,
minha vida e paixão,
minha própria morte,
esta tristeza endócrina resolvida a jaculatórias pungentes,
observações sobre o tempo. Aprendi a suspirar.
A poesia é tão triste! O que é bonito enche os olhos de
lágrimas.

Tenho tanta saudade dos meus mortos!
Estou tão feliz! À beira do ridículo
arde meu peito em brasas de paixão.
Vinte anos de menos, só seria mais jovem.
Nunca, mais amorável.
Já desejei ser outro.
Não desejo mais não.

Adélia Prado


Ave, Maria

Gosto de pensar, Maria, que também a tua fraqueza sustém a tua força, que soubeste aceitar atravessar tantas incertezas, fazendo aderir o te...