sábado, 30 de novembro de 2024

Malditos bailarinos sem cabeça

Aqueles de nós
que sendo filhos e netos
de honestíssimos homens do campo
cem vezes
negaram as suas origens
antes e depois do canto dos galos.
Aqueles de nós
que aprenderam com os lobos
as voltas
sombrias
do uivar e do perseguir
e que às crueldades adquiridas
acrescentaram
os refinamentos da perversidade
extirpados
das cavidades dos lamentos.
E aqueles de nós
que compartilharam (e compartilham)
a mesa
e a cama
com feras peludas destrutivas geladas
da imagem da pátria, e que mentiram ou calaram
na hora da verdade, vós,
somente vós, malévolos bailarinos sem cabeça
um dia valereis menos do que uma garrafa partida
lançada
para o fundo de uma cratera da Lua.

Roberto Sosa


El sistema

Los funcionarios no funcionan.
Los políticos hablan pero no dicen.
Los votantes votan pero no eligen.
Los medios de información desinforman.
Los centros de enseñanza enseñan a ignorar.
Los jueces condenan a las víctimas.
Los militares están en guerra contra sus compatriotas.
Los policías no combaten los crímenes, porque están ocupados en cometerlos.
Las bancarrotas se socializan, las ganancias se privatizan.
Es más libre el dinero que la gente.
La gente está al servicio de las cosas.

Eduardo Galeano


Aos vindouros, se os houver...

Vós, que trabalhais só duas horas
a ver trabalhar a cibernética,
que não deixais o átomo a desoras
na gandaia, pois tendes uma ética;

que do amor sabeis o ponto e a vírgula
e vos engalfinhais livres de medo,
sem preçários, calendários, pílula,
jaculatórias fora, tarde ou cedo;

computai, computai a nossa falha
sem perfurar demais vossa memória,
que nós fomos pràqui uma gentalha
a fazer passamanes com a história;

que nós fomos (fatal necessidade!)
quadrúmanos da vossa humanidade.

Alexandre O’Neill


A Elisabeth foi-se embora

Eu que já fui do pequeno-almoço à loucura
eu que já adoeci a estudar morse
e a beber café com leite
não posso passar sem a Elisabeth
porque é que a despediu senhora doutora?
que mal me fazia a Elisabeth
a lavar-me a cabeça
não suporto que a senhora doutora me toque na cabeça
eu só venho cá senhora doutora
para a Elisabeth me lavar a cabeça
só ela sabe as cores os cheiros a viscosidade
de que eu gosto nos shampoos
só ela sabe como eu gosto da água quase fria
a escorrer-me pela cabeça abaixo
eu não posso passar sem a Elisabeth
não me venha dizer que o tempo cura tudo
contava com ela para o resto da vida
a Elisabeth era a princesa das raposas
precisava das mãos dela na minha cabeça
ah não haver facas que lhe cortem o
pescoço senhora doutora eu não volto
ao seu antiséptico túnel
já fui bela uma vez agora sou eu
não quero ser barulhenta e sozinha
outra vez no túnel o que fez à Elisabeth?
a Elisabeth era a princesa das raposas
porque me roubou a Elisabeth?
a Elisabeth foi-se embora
é só o que tem para me dizer senhora doutora
com uma frase dessas na cabeça
eu não quero voltar à minha vida

Adília Lopes



Conserve este bilhete até ao final da viagem

Devo dizer que sempre preferi
os versos feridos pela prosa
da vida, os versos turvos
que tornam mais transparentes
os negros palcos do tempo, a dor
de sermos filhos das estações
e de andarmos por aí, hora após
hora, entre tudo o que declina
e piora. Em suma, os versos
que gritam: Temos as noites
contadas. E também
os que replicam:
Valha-nos isso.

Rui Pires Cabral


domingo, 24 de novembro de 2024

Diante do teu rosto tardio

Diante do teu rosto tardio,
des-
acompanhado entre
noites que também me alteram,
veio pôr-se algo
que já um dia estivera connosco, in-
cólume de pensamentos.

Paul Celan


Ao perder-te

1
Ao perder-te a ti perdemos os dois
eu porque tu eras o que mais amava
e tu porque eu era quem mais te amava.
Mas de nós os dois és tu quem perde mais
porque eu poderei amar outras como te amava a ti
mas a ti não te hão de amar como eu te amava.

2.
Contaram-me que estavas apaixonada por outro
e então fui para o meu quarto
e escrevi um artigo contra o governo
razão pela qual estou preso.

Ernesto Cardenal


Fragmento XIX

Aqueles que são capazes da amizade são os que conseguem compreender de coração a sorte de um desconhecido. Não há outros.

Simone Weil


Oxímoro para uma ausência

1
Há tanto já explicada a tua
ausência tornou-se inexplicável.

Gastão Cruz


segunda-feira, 18 de novembro de 2024

Os poemas?

Os poemas?
Alguns funcionam,
outros não.
Se o que queres
é uma garantia,
então compra um televisor.

Roger Wolfe


Só quero um sítio onde pousar a cabeça.

Só quero um sítio onde pousar a cabeça.
Anoitece em todas as cidades do mundo,
acenderam-se as luzes de corredores sonâmbulos
onde o meu coração, falando, vagueia.

Manuel António Pina


a minha avó repete:

a minha avó repete: o tempo cura a ferida mas não cura a cicatriz e nenhum outro poema de nenhum outro poeta me falou tão alto ao ouvido Inê...