terça-feira, 22 de abril de 2025

[Contemplemos]

Contemplemos
o mundo
que não atravessamos

José Tolentino de Mendonça


A casa de Zeus

 

A casa que mais chama pelo meu nome esperou-me no final de um caminho onde desaguei por engano, já nas costuras de uma aldeia remota do sul do sul do Mediterrâneo. A casa imprevista e exata. 



Quando você crescer


O que que você quer ser
Quando você crescer?
Alguma coisa importante
Um cara muito brilhante
Quando você crescer
Não adianta, perguntas não valem nada
É sempre a mesma jogada
Um emprego e uma namorada
Quando você crescer
E cada vez é mais difícil
De vencer
Pra quem nasceu pra perder
Pra quem não é importante
É bem melhor
Sonhar, do que conseguir
Ficar em vez de partir
Melhor uma esposa ao invés de uma amante
Uma casinha, um carro à prestação
Saber de cor a lição
Que no bar não se gospe no chão, nêgo
Quando você crescer
Alguns amigos da mesma repartição
Durante o fim-de-semana
Se vai mais tarde pra cama
Quando você crescer
E no subúrbio, com flores na sua janela
Você sorri para ela
E dando um beijo lhe diz
Felicidades
E uma casa pequenina
É amar uma menina
E não ligar pro que se diz
Belo casal que paga as contas direito
Bem comportado no leito
Mesmo que doa no peito
Sim...
Quando você crescer
E o futebol te faz pensar que no jogo
Você é muito importante
Pois o gol é o seu grande instante
Quando você crescer
Um cafézinho mostrar o filho pra vó
Sentindo o apoio dos pais
Achando que não está, só
Quando você crescer
Quando você crescer
Quando você crescer
Tudo igual...
Vai ser exatamente o mesmo...

Raul Seixas


Canção póstuma

Fiz uma canção para dar-te;
porém tu já estavas morrendo.
A Morte é um poderoso vento.
E é um suspiro tão tímido, a Arte…

É um suspiro tímido e breve
como o da respiração diária.
Choro de pomba. E a Morte é uma águia
cujo grito ninguém descreve.

Vim cantar-te a canção do mundo,
mas estás de ouvidos fechados
para os meus lábios inexatos,
— atento a um canto mais profundo.

E estou como alguém que chegasse
ao centro do mar, comparando
aquele universo de pranto
com a lágrima da sua face.

E agora fecho grandes portas
sobre a canção que chegou tarde.
E sofro sem saber de que Arte
se ocupam as pessoas mortas.

Por isso é tão desesperada
a pequena, humana cantiga.
Talvez dure mais do que a vida.
Mas à Morte não diz mais nada.

Cecília Meireles


Não sei se respondo ou se pergunto

Não sei se respondo ou se pergunto.
Sou uma voz que nasceu na penumbra do vazio.
Estou um pouco ébria e estou crescendo numa pedra.
Não tenho a sabedoria do mel ou a do vinho.
De súbito, ergo-me como uma torre de sombra fulgurante.
A minha tristeza é a da sede e a da chama.
Com esta pequena centelha quero incendiar o silêncio.
O que eu amo não sei. Amo. Amo em total abandono.
Sinto a minha boca dentro das árvores e de uma oculta nascente.
Indecisa e ardente, algo ainda não é flor em mim.
Não estou perdida, estou entre o vento e o olvido.
Quero conhecer a minha nudez e ser o azul da presença.
Não sou a destruição cega nem a esperança impossível.
Sou alguém que espera ser aberto por uma palavra.

António Ramos Rosa


O sal da língua

Escuta, escuta:
tenho ainda uma coisa a dizer.

Não é importante, eu sei, não vai
salvar o mundo, não mudará
a vida de ninguém – mas quem
é hoje capaz de salvar o mundo
ou apenas mudar o sentido
da vida de alguém?

Escuta-me, não te demoro.

É coisa pouca, como a chuvinha
que vem vindo devagar.
São três, quatro palavras, pouco
mais. Palavras que te quero confiar,
para que não se extinga o seu lume,
o seu lume breve.

Palavras que muito amei,
que talvez ame ainda.

Elas são a casa, o sal da língua.

Eugénio de Andrade


O amigo

Não voltará – o que dele me ficou

é como no inverno entre cortinas
de chuva um tímido fio de sol:
ilumina mas não aquece as mãos.

Eugénio de Andrade


segunda-feira, 14 de abril de 2025

Sei que o homem lavava os cabelos como se fossem longos

Sei que o homem lavava os cabelos como se fossem longos
Porque tinha uma mulher no pensamento
Sei que os lavava como se os contasse
Sei que os enxugava com a luz da mulher
Com os seus olhos muito claros voltados para o centro
Do amor, na operação poderosa
Do amor
Sei que cortava os cabelos para procurá-la
Sei que a mulher ia perdendo os vestidos cortados
Era um homem imaginado no coração da mulher que lavava
O cabelo no seu sangue
Na água corrente
Era um homem inclinado como o pescador nas margens para ouvir
E a mulher cantava para o homem respirar.

Daniel Faria


[Contemplemos]

Contemplemos o mundo que não atravessamos José Tolentino de Mendonça