domingo, 30 de setembro de 2018

Jorge Rodrigues



A escrita é a minha primeira morada de silêncio



A escrita é a minha primeira morada de silêncio

a segunda irrompe do corpo movendo-se por trás das palavras

extensas praias vazias onde o mar nunca chegou

deserto onde os dedos murmuram o último crime

escrever-te continuamente... areia e mais areia

construindo no sangue altíssimas paredes de nada


esta paixão pelos objectos que guardaste

esta pele-memória exalando não sei que desastre

a língua de limos


espalhávamos sementes de cicuta pelo nevoeiro dos sonhos

as manhãs chegavam como um gemido estelar

e eu perseguia teu rasto de esperma à beira-mar


outros corpos de salsugem atravessam o silêncio

desta morada erguida na precária saliva do crepúsculo

Al Berto

sábado, 29 de setembro de 2018




No meio do caminho



No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.


Carlos Drummond de Andrade

De passagem

Os Dioscuros. Eu vi-os numa praça de Roma, era de noite
levavam os cavalos pela mão. O seu olhar era oblíquo à passagem
das raparigas, mas era um para o outro que sorriam.

Eugénio de Andrade

quinta-feira, 27 de setembro de 2018


O Livro dos Amantes



I

Glorifiquei-te no eterno.
Eterno dentro de mim
fora de mim perecível.
Para que desses um sentido
a uma sede indefinível.

Para que desses um nome
à exactidão do instante
do fruto que cai na terra
sempre perpendicular
à humidade onde fica.

E o que acontece durante
na rapidez da descida
é a explicação da vida.

II

Harmonioso vulto que em mim se dilui.
Tu és o poema
e és a origem donde ele flui.
Intuito de ter. Intuito de amor
não compreendido.
Fica assim amor. Fica assim intuito.
Prometido.

III

Príncipe secreto da aventura
em meus olhos um dia começada e finita.
Onda de amargura numa água tranquila.
Flor insegura enlaçada no vento que a suporta.
Pássaro esquivo em meus ombros de aragem
reacendendo em cadência e em passagem
a lua que trazia e que apagou.

IV

Dá-me a tua mão por cima das horas.
Quero-te conciso.
Adão depois do paraíso
errando mais nítido à distância
onde te exalto porque te demoras.

V

Toma o meu corpo transparente
no que ultrapassa tua exigência taciturna
Dou-me arrepiando em tua face
uma aragem nocturna.

Vem contemplar nos meus olhos de vidente
a morte que procuras
nos braços que te possuem para além de ter-te.

Toma-me nesta pureza com ângulos de tragédia.
Fica naquele gosto a sangue
que tem por vezes a boca da inocência.

VI

Aumentámos a vida com palavras
água a correr num fundo tão vazio.
As vidas são histórias aumentadas.
Há que ser rio.

Passámos tanta vez naquela estrada
talvez a curva onde se ilude o mundo.
O amor é ser-se dono e não ter nada.
Mas pede tudo.

VII

Tu pedes-me a noção de ser concreta
num sorriso num gesto no que abstrai
a minha exactidão em estar repleta
do que mais fica quando de mim vai.

Tu pedes-me uma parcela de certeza
um desmentido do meu ser virtual
livre no resultado de pureza
da soma do meu bem e do meu mal.

Deixa-me assim ficar. E tu comigo
sem tempo na viagem de entender
o que persigo quando te persigo.

Deixa-me assim ficar no que consente
a minha alma no gosto de reter-te
essencial. Onde quer que te invente.

VIII

Eis-me sem explicações
crucificada em amor:
a boca o fruto e o sabor.

IX

Pusemos tanto azul nessa distância
ancorada em incerta claridade
e ficamos nas paredes do vento
a escorrer para tudo o que ele invade.

Pusemos tantas flores nas horas breves
que secam folhas nas árvores dos dedos.
E ficámos cingidos nas estátuas
a morder-nos na carne dum segredo.

Natália Correia


terça-feira, 25 de setembro de 2018



Passagem

Com que palavras ou que lábios
é possível estar assim tão perto do fogo
e tão perto de cada dia, das horas tumultuosas e das serenas,
tão sem peso por cima do pensamento?

Pode bem acontecer que exista tudo e isto também,
e não só uma voz de ninguém.
Onde, porém? Em que lugares reais,
tão perto que as palavras são de mais?

Agora que os deuses partiram,
e estamos, se possível, ainda mais sós,
sem forma e vazios, inocentes de nós,
como diremos ainda margens e diremos rios?

Manuel António Pina


quinta-feira, 13 de setembro de 2018




As mulheres aspiram a casa para dentro dos pulmões

As mulheres aspiram a casa para dentro dos pulmões
E muitas transformam-se em árvores cheias de ninhos - digo,
As mulheres - ainda que as casas apresentem os telhados inclinados
Ao peso dos pássaros que se abrigam. 

É à janela dos filhos que as mulheres respiram
Sentadas nos degraus olhando para eles e muitas
Transformam-se em escadas

Muitas mulheres transformam-se em paisagens
Em árvores cheias de crianças trepando que se penduram
Nos ramos - no pescoço das mães - ainda que as árvores irradiem
Cheias de rebentos

As mulheres aspiram para dentro
E geram continuamente. Transformam-se em pomares.
Elas arrumam a casa
Elas põem a mesa
Ao redor do coração. 

Daniel Faria


(Um momento de filosofia barata)


Para além do ser ou não ser
dos problemas ocos,
o que importa é isto:

Penso nos outros,
logo existo.

José Gomes Ferreira

quarta-feira, 12 de setembro de 2018


Esta noite o vento ceifa os bosques

Esta noite o vento ceifa os bosques e
uma raiva sacode a terra. Se a voz
do mar chamasse pelas velas, os estreitos
aguardariam um naufrágio. E se dissesses
o meu nome eu morreria de amor.
Devo, por isso, afastar-me de ti – não
por ter medo de morrer (que é de já não
o ter que tenho medo), mas porque a chuva
que devora as esquinas é a única canção
que se ouve esta noite sobre o teu silêncio.

Maria do Rosário Pedreira


terça-feira, 11 de setembro de 2018

O analfabeto político

O pior analfabeto é o analfabeto político. Ele não ouve, não fala, nem participa dos acontecimentos políticos. Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, da renda, dos sapatos e do medicamento dependem das decisões políticas.
O analfabeto político é tão burro que se orgulha e enche o peito de ar dizendo que odeia a política. Não sabe o imbecil que, da sua ignorância política, nascem a prostituta, o menor abandonado e o pior de todos os bandidos, que é o político vigarista, malandro, corrupto e lacaio das empresas nacionais e multinacionais.

Bertoldt Brecht (atribuído)


domingo, 9 de setembro de 2018

Ilha de Santiago, Cabo Verde


Para a Helena Lopes da Silva, onde quer que esteja



OS QUE LUTAM
Há aqueles que lutam um dia; e por isso são bons;
Há aqueles que lutam muitos dias; e por isso são muito bons;
Há aqueles que lutam anos; e são melhores ainda;
Porém, há aqueles que lutam toda a vida; esses são os imprescindíveis.

Bertolt Brecht

quinta-feira, 6 de setembro de 2018

Annemarie sentou-se à minha mesa. Vi logo o tamanho da sua solidão: tinha o tamanho do mundo. Ela era a criatura mais só do mundo. E a sua história apareceu - simples, tenebrosa - entre as nossas duas cervejas. Todas as histórias pessoais são simples e tenebrosas. Não me comovi. Comovido já eu estava: com as coisas, comigo, com a chuva sobre a cidade. Talvez houvesse uma irónica alegoria em nós dois ali
sentados diante dos belos copos frios, compreendendo ambos tão facilmente o que nos acontecia e iria acontecer que não tínhamos pressa. Poderíamos morrer ali mesmo. Esperávamos.

Herberto Helder


Quarteto




Eu não sei se me salvo ou se me perco
ou se és tu que te perdes e me salvas
só sei que me redimo quando peco
e corpo a corpo ao céu vão nossas almas.

Manuel Alegre

Flor da esteva


Poema em linha reta

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado
[sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe — todos eles príncipes — na vida…

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos — mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Fernando Pessoa

terça-feira, 4 de setembro de 2018


O crachá nos dentes

[O que eu andei para reencontrar este texto... Nem sempre a poesia vem em verso. M.]

Começo por me identificar, eu sou um cachorro. Que não vai responder a nenhuma pergunta, mesmo porque não sei as respostas, sou um cachorro e basta. Tantas raças vieram desaguar em mim como os afluentes de pequenos rios se perdendo e se encontrando no tempo e no acaso, mas qual dessas raças acabou por vigorar na soma, isto eu não sei dizer. Melhor assim. Fico na superfície sem indagar da raiz, agora não. Aqui onde estou posso passar quase despercebido em meio de outros que também levam os crachás dependurados no pescoço como os rótulos das garrafas de uísque. Que ninguém lê com atenção, estão todos muito ocupados para se interessar de verdade por um próximo que é único e múltiplo apesar da identidade. Às vezes, fico raivoso, meu pêlo se eriça e cerro os maxilares rolando e ganindo, quero fugir, morder. Mas as fases de cachorro louco passam logo. Então, componho o peito, conforme ouvi o treinador dizer, não sei em que consiste isso de compor o peito, não sei, mas é o que faço quando desconfio que não estou agradando: componho o peito e volto à normalidade de um cachorro manso. Doce. O dono do circo, um hábil treinador de roupa vermelha com botões dourados, acabou por me ensinar muitas coisas, tais como falar no telefone, fazer piruetas e dançar. Quando resisto, ele vem queimar as minhas patas dianteiras com a ponta de um cigarro aceso, percebe de longe que estou vacilando na posição vertical e vem correndo e chiiii... - queima as patas transgressoras até fazer aqueles furos. Então me levanto depressa e saio dançando com meu saiote de tule azul. Mas fui humano quando me apaixonei e virei um mutante que durou enquanto durou a paixão. Abrasadora. E breve. Escondi os pequenos objectos reveladores e que não eram muitos, a coleira, o osso e o saiote das noites de gala. Olhei de frente para o sol. Devo lembrar que eu varava feito uma seta salivando de medo os grandes arcos de fogo e eis que o medo desapareceu completamente quando me descobri em liberdade, todo o fogo vinha apenas aqui de dentro do meu coração… fiquei flamejante. Penso agora que flamejei demais e o meu amor que parecia feliz acabou se assustando, era um amor frágil, assustadiço. Tentei disfarçar tamanha intensidade, o medo de ter medo. Vem comigo! Eu queria gritar e apenas sussurrava. Passei a falar baixinho, escolhendo as palavras, os gestos e ainda assim o amor começou a se afastar. Delicadamente, é certo, mas foi se afastando enquanto crescia o meu desejo numa verdadeira descida aos infernos. É que estou amando por toda uma vida! eu podia ter dito. Mas me segurei, ah, o cuidado com que montava nesse corpo que se fechava, ficou uma concha. Não me abandone! Cheguei a implorar aos gritos no nosso último encontro. Desatei a escrever-lhe cartas tão ardentes, bilhetes, repeti o mesmo texto em vários telegramas: Imenso Inextinguível Amor Ponto De Exclamação. Era noite quando fiquei só. Tranquei-me no quarto e olhei a lua cheia com sua face de pedra esclerosada. As estrelas. Abracei com tanta força a mim mesmo e comecei a procurar, onde? Fui até à larga cama branca, ali nos juntámos tantas vezes, tanto fervor e agora aquele frio, fucei o travesseiro, as cobertas, onde? Onde. A busca desesperada continuou no sonho, sonhei que escavava a terra. Acordei exausto e enlameado, aos uivos. Nem precisei ir ao espelho para saber que tinha virado de novo um cachorro. Amanhecia. Tomei o crachá nos dentes e voltei ao circo. O treinador me examinou atentamente e fez uma observação bem-humorada, que eu estava ficando velho. De resto, tudo correu sem novidade, como se não tivesse havido nenhuma interrupção. Dei valor aos meus dedos só depois que os perdi, podiam me servir agora para catar pulgas. Ou para coçar lá dentro do ouvido ou limpar o ranho do focinho quando estou resfriado. Com aqueles dedos toquei flauta, mas não me masturbei, nunca me masturbei enquanto fui um ser humano, não é estranho isso? Há ainda outras estranhezas, não importa. Aprendi também a rezar. Gosto muito de ouvir música e de ficar olhando as nuvens. Mas sou um cachorro e quando alguém duvida, mostro as palmas das minhas patas queimadas

Lygia Fagundes Telles



segunda-feira, 3 de setembro de 2018

Recado

Se eu morrer longe
sepulta-me no mar
dentro das algas ignorantes
e lúcidas.

Cobre o meu rosto de palavras
antigas
e de música.

Deixa em meus dedos
a memória mais recente
de outras coisas inúmeras

e nos meus cabelos
o incerto movimento
do vento e da chuva.

Eu vogarei sob as estrelas
com pálidas luzes entre os cílios
e pequenos caramujos
entrarão nos meus ouvidos.

Estarei assim idêntica
a todos os motivos.

Glória de Sant'Anna

sábado, 1 de setembro de 2018

A casa da escada de pedra, Lentas, Creta


Não posso adiar o amor

Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o rneu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração

António Ramos Rosa


Remedia Amoris

Foi uma péssima ideia a de voltarmos a ver-nos. Não fizemos mais do que trocar insultos e culpar-nos de velhas e sórdidas histórias. Depois ...