segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Chove. É Dia de Natal

Chove. É dia de Natal.
Lá para o Norte é melhor:
Há a neve que faz mal,
E o frio que ainda é pior.

E toda a gente é contente
Porque é dia de o ficar.
Chove no Natal presente.
Antes isso que nevar.

Pois apesar de ser esse
O Natal da convenção,
Quando o corpo me arrefece
Tenho o frio e Natal não.

Deixo sentir a quem quadra
E o Natal a quem o fez,
Pois se escrevo ainda outra quadra
Fico gelado dos pés.

Fernando Pessoa

domingo, 15 de dezembro de 2019

Último poema

É Natal, nunca estive tão só.
Nem sequer neva como nos versos
do Pessoa ou nos bosques
da Nova Inglaterra
Deixo os olhos correr
entre o fulgor dos cravos
dos dióspiros ardendo na sombra.
Quem assim tem o verão
dentro de casa
não devia queixar-se de estar só,
não devia.

Eugénio de Andrade

sábado, 14 de dezembro de 2019

Formigas

Formigas
ou
A morte explicada às criancinhas

1
Vê-se primeiro uma só formiga,
só uma.
Parece perdida, enleada nas ervas,
movendo-se indecisa atrás e adiante,
sem saber muito bem que direcção tomar.
Lembra um turista que não sabe exactamente
em que país se encontra
nem entende a língua que ali se fala,
( nem os nativos a dele),
e procura orientar-se consultando
um guia hostil num lugar hostil.

2
Mas na verdade a formiga não está só.
Reparando melhor,
vêem-se por perto mais duas ou três,
com a mesma aparência irresoluta
e igualmente em busca de um sentido
para a sua errância —
— porque há uma voz que as arregimenta,
lhes fala de um destino prometido
às formigas desde o início de tudo.

3
Só mais tarde se percebe que essas poucas
formigas desgarradas fazem na verdade
parte de um plano inexorável
e anunciam o que está para chegar.
Elas são as batedoras
de um exército zeloso de milhões de soldados
que vão sem se deter aonde aquela voz
as leva: rato morto ou boião de compota.
Todo o comestível é um destino idóneo.

4
Como nada há na natureza que não tenha
um sentido encoberto, ou que não seja
espelho de alguma coisa mais vasta
e mais severa —
— estas formigas rapaces e em tropel,
que cumprem ordens sem cuidar de quem as dá,
são na verdade uma recordatória
de que, por mais insecticidas que inventemos,
acabaremos os dias
debatendo-nos entre as tenebrosas peças
bucais da Grande Formiga.

A. M. Pires Cabral

quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

Ó meu amor

Ó meu amor, o nosso amor é impossível.
A madrugada propaga-se e queima.
A alma, amarga, doente, é legível,
Carregada de ternura.
Que o sonho madrugue a amena
Noite de Lisboa, dom e idade de ruídos.
Mil corpos sonâmbulos deambulam sóis…
Oh ternura de guitarras, gemendo tristeza e sorrisos,
Quando as ruas da cidade cintilam de faróis.
Oh timbre de voz de fadista, cantando um velho fado,
Ilumina-te, despe-te e despede-te das sombras…
O fado antiquíssimo é veloz diurno alado,
Quando, sobre o fadista, só a amante tomba,
E o exílio principia à beira de Lisboa, após a primavera exacta,
Até que a maresia do dia consinta na ternura intacta.

António Botto


Haiku

Cansei da viagem
hoje faz quantos dias?
Vento de outono.

Matsuo Bashô

sábado, 30 de novembro de 2019

Este caminho

Este caminho
Ninguém já o percorre,
Salvo o crepúsculo.

De que árvore florida
Chega? Não sei.
Mas é o seu perfume.

Bashô Matsuo



Devagar

Nada entre nós tem o nome da pressa.
Conhecêmo-nos assim, devagar, o cuidado
traçou os seus próprios labirintos. Sobre a pele
é sempre a primeira vez que os gestos acontecem. Porém,
se se abrir uma porta para o verão, vemos as mesmas coisas –
o que fica para além da planície e da falésia; a ilha,
um rebanho, um barco à espera de partir, uma palavra
que nunca escreveremos. Entre nós
o tempo desenha-se assim, devagar.
Daríamos sempre pelo mais pequeno engano.

Maria do Rosário Pedreira

A vida é breve


A vida é breve mas nela cabe muito mais do que somos capazes de viver.

José Saramago

quinta-feira, 28 de novembro de 2019

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Foi por ela


Foi por ela que amanhã me vou embora
ontem mesmo hoje e sempre ainda agora
sempre o mesmo em frente ao mar também me cansa
diz Madrid, Paris, Bruxelas quem me alcança
em Lisboa fica o Tejo a ver navios
dos rossios de guitarras à janela
foi por ela que eu já danço a valsa em pontas
que eu passei das minhas contas foi por ela
Foi por ela que eu me enfeito de agasalhos
em vez daquela manga curta colorida
se vais sair minha nação dos cabeçalhos
ainda a tiritar de frio acometida
mas o calor que era dantes também farta
e esvai-se o tropical sentido na lapela
foi por ela que eu vesti fato e gravata
que o sol até nem me faz falta foi por ela

Foi por ela que eu passo coisas graves
e passei passando as passas dos Algarves
com tanto santo milagreiro todo o ano
foi por milagre que eu até nasci profano
e venho assim como um tritão subindo os rios
que dão forma como um Deus ao rosto dela
foi por ela que eu deixei de ser quem era
sem saber o que me espera foi por ela
Foi por ela que amanhã me vou embora
ontem mesmo hoje e sempre ainda agora
sempre o mesmo em frente ao mar também me cansa
diz Madrid, Paris, Bruxelas quem me alcança
em Lisboa fica o Tejo a ver navios
dos rossios de guitarras à janela
foi por ela que eu já danço a valsa em pontas
que eu passei das minhas contas foi por ela
foi por ela
foi por ela

Fausto Bordalo Dias

Pequeno poema



Quando eu nasci,
ficou tudo como estava,
Nem homens cortaram veias,
nem o Sol escureceu,
nem houve Estrelas a mais...
Somente,
esquecida das dores,
a minha Mãe sorriu e agradeceu.

Quando eu nasci,
não houve nada de novo
senão eu.

As nuvens não se espantaram,
não enlouqueceu ninguém...

P'ra que o dia fosse enorme,
bastava
toda a ternura que olhava
nos olhos de minha Mãe...

Sebastião da Gama

Pastoral

Não há, não,
duas folhas iguais em toda a criação.

Ou nervura a menos, ou célula a mais,
não há, de certeza, duas folhas iguais.

Limbo todas têm,
que é próprio das folhas;
pecíolo algumas;
bainha nem todas.
Umas são fendidas,
crenadas, lobadas,
inteiras, partidas,
singelas, dobradas.

Outras acerosas,
redondas, agudas,
macias, viscosas,
fibrosas, carnudas.

Nas formas presentes,
nos actos distantes,
mesmo semelhantes
são sempre diferentes.

Umas vão e caem no charco cinzento,
e lançam apelos nas ondas que fazem;
outras vão e jazem
sem mais movimento.

Mas outras não jazem,
nem caem, nem gritam,
apenas volitam
nas dobras do vento.

É dessas que eu sou.

António Gedeão 


domingo, 24 de novembro de 2019


Pioneiro

O meu amante deixou-me ontem
e ainda não é certo que volte esta noite.
Marcha, algures, o meu amante e leva uma tocha,
acossado por uma escuridão preta como a que em mim propende -
como a que se nota em mim quando vejo desmoronar-se em pó,
cada pequena partícula com um sol dentro.
Em todos os lugares existem planetas saturados pela noite,
e no meio da noite um pioneiro busca talvez a morada do desespero.

Pentti Holappa

sábado, 16 de novembro de 2019

Chegada


Parece-me irreal que tenhas vindo,
quase irreconhecível: onde estava
o impossível
eco de vida, íngreme, o passado
tornado mais passado?
Parece-me real que tenhas ido
ser outro ser, distante desta praia
Reconheci-te?
A lua minguante
de agosto iluminou tua chegada.

Gastão Cruz

Intimidade


No coração da mina mais secreta,
No interior do fruto mais distante,
Na vibração da nota mais discreta,
No búzio mais convolto e ressoante,
Na camada mais densa da pintura,
Na veia que no corpo mais nos sonde,
Na palavra que diga mais brandura,
Na raiz que mais desce, mais esconde,
No silêncio mais fundo desta pausa,
Em que a vida se fez perenidade,
Procuro a tua mão, decifro a causa
De querer e não crer, final, intimidade.

José Saramago

sábado, 9 de novembro de 2019

Há tanto tempo (espero por ti)

https://www.youtube.com/watch?v=HuaGNMjxz08

Há tanto tempo espero por ti
na solidão do meu lugar
vem aquecer-me a cama
traz flores para o jantar

Sempre habitaste o meu coração
és a razão do meu fervor
mas não te vejo a cara
não sinto o teu calor

Podes contar ao mundo
como eu te procurei
quando me for embora
diz que te encontrei

Mesmo que tu não sejas real
ou sejas quem eu não previ
hei-de inventar-te sempre
hei-de esperar por ti

Podes contar ao mundo
como eu te procurei
quando me for embora
diz que te encontrei

quando eu me for embora
diz que te encontrei

Jorge Palma


Retrato

https://www.youtube.com/watch?v=HFXhtTqUBmg

Quando a tarde passa, abre-se outra porta
Se o morcego voa, a estrela desponta
Ser de hoje ou de sempre, nada disso importa
Todo o tempo corre só por nossa conta

Sei de praias brancas, de velas queimadas
Se perdi meus passos em longa carreira
Tive pais e filhos, tive namoradas
E encontrei-me logo aqui mesmo à beira

Jogo minhas cartas na mesa da vida
Recolho moedas e penas também
Alma incandescente, de frio transida
Quem me dá certezas que o livro não tem

O vinho bebido ao sangue juntei
E os frutos da terra descobri em mim
Que ninguém me diga que morreu sem lei
Que ninguém me diga que morreu assim

Mário Cláudio

Nocturno

Eram, na rua, passos de mulher.
Era o meu coração que os soletrava.
Era, na jarra, além do malmequer,
espectral o espinho de uma rosa brava...

Era, no copo, além do gim, o gelo;
além do gelo, a roda de limão...
Era a mão de ninguém no meu cabelo.
Era a noite mais quente deste verão.

Era no gira-discos, o Martirio
de São Sebastião, de Debussy....
Era, na jarra, de repente, um lirio!
Era a certeza de ficar sem ti.

Era o ladrar dos cães na vizinhança.
Era, na sombra, um choro de criança...

David Mourão-Ferreira

Mesmo que eu morra

Mesmo que eu morra o poema encontrará
Uma praia onde quebrar as suas ondas.

E entre quatro paredes densas
De funda e devorada solidão
Alguém seu próprio ser confundirá
com o poema do tempo.

Sophia de Mello Breyner Andresen

quinta-feira, 7 de novembro de 2019

Hoje deitei-me ao lado da minha solidão

Hoje deitei-me ao lado da minha solidão.
O seu corpo perfeito, linha a linha,
derramava-se no meu, e eu sentia
nele o pulsar do próprio coração.
.
Moreno, era a forma das pedras e das luas.
Dentro de mim alguma coisa ardia:
a brancura das palavras maduras
ou o medo de perder quem me perdia.
.
Hoje deitei-me ao lado da minha solidão
e longamente bebi os horizontes.
E longamente fiquei até sentir
o meu sangue jorrar nas próprias fontes.

Eugénio de Andrade

Não sei

Não sei porque diabo escolheste
janeiro para morrer: a terra
está tão fria.

É muito tarde para as lentas
narrativas do coração,
o vento continua
a tarefa das folhas:
cobre o chão de esquecimento.

Eu sei: tu querias durar.
Pelo menos durar tanto como o tronco
da oliveira que teu avô
tinha no quintal. Paciência,
querido, também Mozart morreu.

Só a morte é imortal.

Eugénio de Andrade

quarta-feira, 6 de novembro de 2019

Flor de verde pinho


https://www.youtube.com/watch?v=Vr-47FQtg7k

Eu podia chamar-te pátria minha
Dar-te o mais lindo nome português
Podia dar-te um nome de rainha
Que este amor é de Pedro por Inês.
Mas não há forma não há verso não há leito
Para este fogo amor para este rio.
Como dizer um coração fora do peito?
Meu amor transbordou. E eu sem navio.
Gostar de ti é um poema que não digo
Que não há taça amor para este vinho
Não há guitarra nem cantar de amigo
Não há flor não há flor de verde pinho.
Não há barco nem trigo não há trevo
Não há palavras para dizer esta canção.
Gostar de ti é um poema que não escrevo.
Que há um rio sem leito. E eu sem coração.
Manuel Alegre

Pernoitas em mim


pernoitas em mim
e se por acaso te toco a memória... amas
ou finges morrer

pressinto o aroma luminoso dos fogos
escuto o rumor da terra molhada
a fala queimada das estrelas

é noite ainda
o corpo ausente instala-se vagarosamente
envelheço com a nómada solidão das aves

já não possuo a brancura oculta das palavras
e nenhum lume irrompe para beberes

Al Berto

Esperança e desespero de alimento

Esperança e desespero de alimento
Me servem neste dia em que te espero
E já não sei se quero ou se não quero
Tão longe de razões é meu tormento.

Mas como usar o amor de entendimento?
Daquilo que te peço desespero
Ainda que mo dês – pois o que eu quero
Ninguém o dá senão por um momento.
Mas como és belo, amor, de não durares,
De ser tão breve e fundo o teu engano,
E de eu te possuir sem tu te dares.
Amor perfeito dado a um ser humano:
Também morre o florir de mil pomares
E se quebram as ondas no oceano.

Sophia de Mello Breyner Andresen

Enquanto longe divagas

I
Enquanto longe divagas
E através de um mar desconhecido esqueces a palavra
- Enquanto vais à deriva das correntes
E fugitivo perseguido por inomeadas formas
A ti próprio te buscas devagar
- Enquanto percorres os labirintos da viagem
E no país de treva e gelo interrogas o mudo rosto das [sombras
- Enquanto tacteias e duvidas e te espantas
E apenas como um fio te guia a tua saudade da vida
Enquanto navegas em oceanos azuis de rochas negras
E as vozes da casa te invocam e te seguem
Enquanto regressas como a ti mesmo ao mar
E sujo de algas emerges entorpecido e como drogado
- Enquanto naufragas e te afundas e te esvais
E na praia que é teu leito como criança dormes
E devagar devagar a teu corpo regressas
Como jovem touro espantado de se reconhecer
E como jovem toiro sacodes o teu cabelo sobre os olhos
E devagar recuperas tua mão teu gesto
E teu amor das coisas sílaba por sílaba

II
O meu amor da vida está paralisado pelo teu sono
É como ave no ar veloz detida
Tudo em mim se cala para escutar o chão do teu regresso

III
Pois no ar estremece tua alegria
- Tua jovem rijeza de arbusto –
A luz espera teu perfil teu gesto
Teu ímpeto tua fuga e desafio
Tua inteligência tua argúcia teu riso
Como ondas do mar dançam em mim os pés do teu regresso

Sophia de Mello Breyner Andresen

sábado, 26 de outubro de 2019

A cilada dos poemas de amor sobre os homens

Eles não são feitos de curvas e sombras.
Eles não vestem saias para caçar e atiçar
o olho, nem jogam seus cabelos, nem requebram.
É tão difícil se embalar para os homens:
quebrar os quadris, deixar a polpinha de fora
no jeans — eles carecem de senso estético. Um spray
de cachos pode levantar suas sobrancelhas, ou causar
borboletas nas calças. Mostrar o homem em seu melhor ângulo
requer certa habilidade. O noivo
parece melhor quando está montado. Ele assenta
o corpo gravado no smoking. Seu peito
se estende até a faixa da cintura. Porém,
quanto trabalho captar o apelo masculino!
Um relevo destaca-se entre as pernas
marcando seus traços banais. Lamentavelmente, revelado,
o relevo é somente um palito. Vivemos consternadas.
É duro tirar dos homens “meus parabéns”.
Nós tentamos. O amor deles é sempre difícil.
 
Beth Gylys
(Tradução: Yasmin Nigri e Naiara Barrozo)


quinta-feira, 24 de outubro de 2019

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Carta aos puros

Ó vós, homens sem sol, que vos dizeis os Puros
E em cujos olhos queima um lento fogo frio
Vós de nervos de nylon e de músculos duros
Capazes de não rir durante anos a fio.

Ó vós, homens sem sal, em cujos corpos tensos
Corre um sangue incolor, da cor alva dos lírios
Vós que almejais na carne o estigma dos martírios
E desejais ser fuzilados sem o lenço.

Ó vós, homens iluminados a néon
Seres extraordinariamente rarefeitos
Vós que vos bem amais e vos julgais perfeitos
E vos ciliciais à idéia do que é bom.

Ó vós, a quem os bons amam chamar de os Puros
E vos julgais os portadores da verdade
Quando nada mais sois, à luz da realidade,
Que os súcubos dos sentimentos mais escuros.

Ó vós que só viveis nos vórtices da morte
E vos enclausurais no instinto que vos ceva
Vós que vedes na luz o antónimo da treva
E acreditais que o amor é o túmulo do forte.

Ó vós que pedis pouco à vida que dá muito
E erigis a esperança em bandeira aguerrida
Sem saber que a esperança é um simples dom da vida
E tanto mais porque é um dom público e gratuito.
 
Ó vós que vos negais à escuridão dos bares
Onde o homem que ama oculta o seu segredo
Vós que viveis a mastigar os maxilares
E temeis a mulher e a noite, e dormis cedo.

Ó vós, os curiais; ó vós, os ressentidos
Que tudo equacionais em termos de conflito
E não sabeis pedir sem ter recurso ao grito
E não sabeis vencer se não houver vencidos.

Ó vós que vos comprais com a esmola feita aos pobres
Que vos dão Deus de graça em troca de alguns restos
E maiusculizais os sentimentos nobres
E gostais de dizer que sois homens honestos.

Ó vós, falsos Catões, chichisbéus de mulheres
Que só articulais para emitir conceitos
E pensais que o credor tem todos os direitos
E o pobre devedor tem todos os deveres.

Ó vós que desprezais a mulher e o poeta
Em nome de vossa vã sabedoria
Vós que tudo comeis mas viveis de dieta
E achais que o bem do alheio é a melhor iguaria.

Ó vós, homens da sigla; ó vós, homens da cifra
Falsos chimangos, calabares, sinecuros
Tende cuidado porque a Esfinge vos decifra...
E eis que é chegada a vez dos verdadeiros puros.

Vinícius de Moraes


sábado, 19 de outubro de 2019

Poética

Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor.
Estou farto do lirismo que para e vai averiguar no dicionário
o cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja
fora de si mesmo
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante
exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes
maneiras de agradar às mulheres, etc
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare
— Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.

Manuel Bandeira

quinta-feira, 17 de outubro de 2019

Ninguém cheira melhor

Ninguém cheira melhor
nestes dias

do que a terra molhada: é outono.

Talvez por isso a luz,
como quem gosta de falar
da sua vida, se demora à porta,
ou então passa as tardes à janela
confundindo o crepúsculo
com as ruínas
de cal mordidas pelas silvas.
Quando se vai embora o pano desce
rapidamente.

Eugénio de Andrade

sábado, 12 de outubro de 2019

As velhas constelações do mundo

As velhas constelações do mundo tão velhas como as palavras. Ó tranquila fragrância, ó puro frio das sílabas celestes! Penetramos na frescura indivisa, onde a perfeição acende a sua intacta claridade. Estamos num regaço onde somos compreendidos e há alguém, talvez apenas um puro espaço, para quem escrevo as palavras que não digo.

António Ramos Rosa


sexta-feira, 11 de outubro de 2019

Gaivota


Se uma gaivota viesse
trazer-me o céu de Lisboa
no desenho que fizesse,
nesse céu onde o olhar
é uma asa que não voa,
esmorece e cai no mar.

Que perfeito coração
no meu peito bateria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde cabia
perfeito o meu coração.

Se um português marinheiro,
dos sete mares andarilho,
fosse quem sabe o primeiro
a contar-me o que inventasse,
se um olhar de novo brilho
no meu olhar se enlaçasse.

Que perfeito coração
no meu peito bateria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde cabia
perfeito o meu coração.

Se ao dizer adeus à vida
as aves todas do céu,
me dessem na despedida
o teu olhar derradeiro,
esse olhar que era só teu,
amor que foste o primeiro.

Que perfeito coração
morreria no meu peito morreria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde perfeito
bateu o meu coração.

Alexandre O'Neill

Ainda que


Ainda que a verdade estivesse sentada não deixaria de ser flutuação.

Casimiro de Brito

sábado, 5 de outubro de 2019

wish you were here

https://www.youtube.com/watch?v=1tGO1Y4FGpI

A mulher desconhecida

É muito bela esta mulher desconhecida
que me olha longamente
e repetidas vezes se interessa
pelo meu nome

eu não sei
mas nos curtos instantes de uma manhã
ela percorreu ásperas florestas
estações mais longas que as nossas
a imposição temível do que
desaparece

e se pergunta tantas vezes o meu nome
é porque no corpo que pensa
aquela luta arcaica, desmedida se cravou:
um esquecimento magnífico
repara a ferida irreparável
do doce amor

José Tolentino de Mendonça

quinta-feira, 3 de outubro de 2019


Esta noite

Olho a noite em que a noite deixou
de ser vazia, a noite em que tu existes,
habitante do que sonho e do que
penso. Abraço-te em cada palavra
tua, e ouço-te em cada silêncio
que fica depois de as ler; mas é uma voz
que existe dentro de mim, e fala
comigo a cada passo que dou. Entro contigo
na figueira orvalhada da manhã,
e sinto nos seus ramos o perfume
dos teus cabelos. E a noite abraça-me
com as tuas mãos, passa por mim
com os teus dedos, chega à obscuridade
do seu mistério com o claro enigma
dos teus olhos a guiar-me, para
que o descubra e o perca em
cada pergunta que nos fazemos. E
guardo o teu coração na memória.
para o ouvir pulsar de novo
no dia que nos espera.

Nuno Júdice

Homeoptoto

Soubesse eu que me aceitas
Sentisse eu nos meus passos a firmeza que tem
nos seus a criança que vai para a escola
levada pelos olhos imensos da mãe
tivesse todo o meu ser a configuração
bastante pra caber na tua longa mão
e lá morrer essa mão onde todas as loucuras são
possíveis fosse a tua presença mais do que eu não ter
mais ninguém a meu lado
Não estivesse eu sujeito ao inverno que vem
mais carregado de memórias
do que ninguém

E eu não procuraria este meu nome em vão
na folha que descreve o vento
nesta fronte onde vêm repousar as moscas
fronteira do meu pensamento
nas crianças de gestos decisivos
ou noutros pobres seres transitórios
(Nem tanta servidão precisaria para libertar
umas simples palavras do tempo)

Viesses tu beleza sempre antiga e sempre nova
encher aquela mão que abre
dentro de mim a inquietação
e a minha humilde prece tomaria a forma
do mais agudo ângulo das tuas duas mãos
onde toda a paisagem triangular termina
O teu silêncio ondularia menos que qualquer planície
tão pouco ambíguo como não sei que nuvem
Colhesses um por um os meus passos dispersos
achasses-me nos meus perdidos versos
e eu não repousaria nas ideias que estendo como mantas
nalgum pinhal à hora da sesta perto do mar

O teu lugar
seria sempre no côncavo do sonho
eu não me esqueceria
de agora ou logo ir-te lá buscar
E nestas tardes que sobre nós desdobras
passariam as dobras dos cuidados
Em nós quaisquer outonos morreriam

Ruy Belo

terça-feira, 24 de setembro de 2019

Interlúdio

As palavras estão muito ditas
e o mundo muito pensado.
Fico ao teu lado.

Não me digas que há futuro
nem passado.
Deixa o presente — claro muro
sem coisas escritas.

Deixa o presente. Não fales,
Não me expliques o presente,
pois é tudo demasiado.

Em águas de eternamente,
o cometa dos meus males
afunda, desarvorado.

Fico ao teu lado.

Cecília Meireles

domingo, 15 de setembro de 2019

Não sei quantas almas tenho

Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,
Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: “Fui eu?”
Deus sabe, porque o escreveu.

Fernando Pessoa

terça-feira, 10 de setembro de 2019

The Moment


The moment when, after many years
of hard work and a long voyage
you stand in the centre of your room,
house, half-acre, square mile, island, country,
knowing at last how you got there,
and say, I own this,


is the same moment when the trees unloose
their soft arms from around you,
the birds take back their language,
the cliffs fissure and collapse,
the air moves back from you like a wave
and you can’t breathe.
No, they whisper. You own nothing.
You were a visitor, time after time
climbing the hill, planting the flag, proclaiming.
We never belonged to you. 
You never found us.
It was always the other way round.

Margaret Atwood

Da verdade do amor

Da verdade do amor se meditam
relatos de viagens confissões
e sempre excede a vida
esse segredo que tanto desdém
guarda de ser dito

pouco importa em quantas derrotas
te lançou
as dores os naufrágios escondidos
com eles aprendeste a navegação
dos oceanos gelados

não se deve explicar demasiado cedo
atrás das coisas
o seu brilho cresce
sem rumor

José Tolentino de Mendonça

terça-feira, 23 de julho de 2019

O Último Amor do Príncipe Genghi

Quando Genghi, o Resplandescente, o maior sedutor que jamais surpreendeu a Ásia, atingiu os cinquenta anos, deu-se conta de que tinha de começar a morrer. A sua segunda mulher, Murasaki, a princesa Violeta, que ele tanto amara através de tantas infidelidades contraditórias, precedera-o num desses Paraísos aonde vão os mortos que conquistaram algum mérito durante esta vida inconstante e difícil, e Genghi atormentava-se por não conseguir recordar exactamente o seu sorriso ou o esgar que esboçava antes de chorar. A sua terceira esposa, a Princesa do Palácio do Poente, enganara-o com o genro, tal como ele enganara o pai nos seus tempos de juventude com uma imperatriz adolescente. Representava-se a mesma peça no palco do mundo, mas desta vez sabia que lhe estava apenas reservado o papel de velho, e a semelhante personagem preferia a de fantasma. Por isso mesmo distribuiu os seus bens, reformou os seus servos e preparou-se para acabar os seus dias num eremitério que tivera o cuidado de mandar construir na encosta da montanha. Atravessou pela última vez a cidade, seguido apenas por dois ou três companheiros dedicados que não se resignaram a despedir-se, nele, da sua própria juventude. Não obstante a hora matinal, havia mulheres com o rosto encostado às delgadas ripas das persianas. Murmuravam em voz alta que Genghi era ainda muito belo, o que provou uma vez mais ao príncipe que chegara a hora de partir.
Levaram três dias a alcançar o eremitério, situado em pleno campo silvestre. A casita erguia-se à sombra de um bordo centenário; como era Outono, as folhas daquela bela árvore revestiam-lhe o telhado de colmo com uma coberta de oiro. A vida nesta solidão revelou-se ainda mais simples e mais dura do que nos longos exílios que na sua turbulenta juventude Genghi suportara no estrangeiro, e aquele homem requintado pôde finalmente saborear à saciedade o luxo supremo que consiste em distanciar-se de tudo. Breve se anunciaram os primeiros frios; as encostas da montanha cobriram-se de neve como as amplas pregas das vestes acolchoadas que se usam no Inverno, e o nevoeiro abafou o sol. Da aurora ao crepúsculo, à parca luz de um braseiro avaro, Genghi lia as Escrituras e achava naqueles austeros versículos certo sabor de que eram doravante falhos os mais patéticos versos de amor.
Mas breve se deu conta de que estava a perder a vista, como se todas as lágrimas que vertera sobre as suas frágeis amantes lhe houvesem queimado os olhos, e teve de reconhecer que, para ele, as trevas começariam antes da morte. De quando em vez, um correio transido chegava da capital, arrastando os pés inchados de cansaço e de frieiras, e apresentava-lhe respeitosamente mensagens de parentes ou amigos que desejavam visitá-lo uma derradeira vez neste mundo, antes dos encontros infinitos e incertos da outra vida. Mas Genghi receava inspirar aos seus hóspedes mera compaixão ou respeito, dois sentimentos a que tinha horror e aos quais preferia o esquecimento.
Sacudia tristemente a cabeça, e aquele príncipe outrora famoso pelo seu talento de poeta e calígrafo mandava o carteiro de volta com uma folha em branco. Pouco a pouco, os contactos com a capital abrandaram; o ciclo das festas sazonais continuava a girar longe do príncipe, que em tempos as dirigia com um aceno do leque, e Genghi, abandonado sem pejo às tristezas da solidão, agravava sem cessar o mal que lhe afligia os olhos, pois já não se envergonhava de chorar.
Duas ou três das suas antigas amantes haviam-lhe proposto virem partilhar o seu isolamento cheio de recordações. Chegavam-lhe as mais ternas cartas da Dama-da-aldeia-das-flores-que-caem: era uma antiga concubina de casta meã e de beleza medíocre; servira fielmente de dama de honor às outras esposas de Genghi e durante dezoito anos amara o príncipe sem nunca se cansar de sofrer. Ele fazia-lhe de vez em quando umas visitas nocturnas, e esses encontros, embora raros como estrelas em noite de chuva, haviam sido o bastante para alumiar a pobre vida da Dama-da-aldeia-das-flores-que-caem. Pois que não alimentava ilusões acerca da sua beleza, nem do seu espírito, nem do seu nascimento, a Dama, única entre tantas amantes, tributava a Genghi uma terna gratidão, porquanto não achava nada natural que ele a tivesse amado.
Como as suas cartas continuavam sem resposta, alugou uma modesta carruagem e fez-se conduzir à cabana do príncipe solitário. Empurrou timidamente a porta feita de ramos entrançados; ajoelhou-se com um risinho humilde, para se desculpar de estar ali. Foi na época em que Genghi reconhecia ainda o rosto dos que o visitavam, quando se aproximavam de muito perto. Uma raiva amarga o tomou frente àquela mulher que despertava nele as mais dolorosas recordações dos dias mortos, não tanto pelo efeito da sua própria presença, mas porque as suas mangas continuavam impregnadas do perfume que usavam as suas defuntas mulheres. Suplicou-lhe tristemente que a retivesse pelo menos como criada. Implacável pela primeira vez, expulsou-a; mas ela guardara amigos entre os poucos velhotes que asseguravam o serviço do príncipe, e estes davam-lhe notícias de quando em quando. Cruel também pela primeira vez na vida, ela vigiava de longe a progressão da cegueira de Genghi, como uma mulher impaciente de juntar-se ao amante espera que a noite caia por completo. 
Quando o soube quase totalmente cego, despiu a sua indumentária da cidade e cobriu-se com um vestido curto e grosseiro, como os que usam as jovens camponesas; entrançou os cabelos à maneira das raparigas do campo; e armou-se de um fardo de tecidos e de louças, como os que se vendem nas feiras de província. Assim enfarpelada, deixou-se conduzir ao sítio em que o exilado voluntário vivia na companhia dos corços e dos pavões da floresta; percorreu a pé a última parte do percurso, para que a lama e o cansaço a ajudassem a desempenhar o seu papel. A chuva miúda da Primavera caía do céu sobre a terra mole, afogando os derradeiros lampejos do crepúsculo: era a hora em que Genghi, envolto no rigor das suas vestes de monge, passeava lentamente pelo carreiro donde os seus velhos servos haviam cuidadosamente afastado o menor seixo, não fosse ele tropeçar. O seu rosto ausente, esvaziado, embaciado pela cegueira e as investidas da idade parecia um espelho plúmbeo que em tempos reflectira beleza, e a Dama-da-aldeia-das-flores-que-caem não precisou de fingir para começar a chorar.
Àquele som de soluços femininos Genghi sobressaltou-se e dirigiu-se lentamente para o lado donde vinham as lágrimas.
— Quem és tu, mulher? — perguntou inquieto.
— Sou Ukifune, a filha do rendeiro So-Hei — disse a Dama, sem se esquecer de adoptar a pronúncia da aldeia. — Fui à cidade com minha mãe, para comprar tecidos e tachos, porque me casam para a próxima lua. E eis que me perdi nos caminhos da montanha, e choro porque tenho medo dos javalis, dos demónios, do desejo dos homens e dos fantasmas dos mortos.
— Estás encharcada, menina — disse o príncipe pousando-lhe a mão no ombro.
Estava realmente ensopada até aos ossos.
O contacto daquela mão que tão bem conhecia fê-la estremecer da ponta dos cabelos aos dedos dos pés descalços, mas Genghi pensou porventura que ela tremia de frio.
— Vem para a minha cabana — retomou o príncipe com voz calorosa. — Poderás aquecer-te à minha lareira, muito embora tenha menos brasas do que cinzas.
A Dama seguiu-o, tendo o cuidado de imitar o andar simplório de uma camponesa.
Acocoraram-se os dois junto ao lume quase morto. Genghi estendia as mãos para o calor, mas a Dama escondia os dedos, demasiado delicados para uma rapariga do campo.
— Estou cego — suspirou Genghi ao cabo de um instante. — Podes despir sem pejo a tua roupa molhada, menina, e aquecer-te nua junto à lareira.
A Dama despiu docilmente o seu vestido de camponesa. O lume rosava-lhe o corpo esguio, que parecia talhado no mais pálido âmbar, De repente, Genghi murmurou:
— Enganei-te, menina, pois não estou ainda completamente cego. Adivinho-te através de uma névoa que talvez mais não seja do que o halo da tua própria beleza. Deixa-me pousar a mão no teu braço ainda tremuroso.
Foi assim que a Dama-da-aldeia-das-flores-que-caem voltou a ser a amante do príncipe Genghi, que humildemente amara durante mais de dezoito anos. E não se esqueceu de imitar as lágrimas e as hesitações de uma rapariga no seu primeiro amor. O seu corpo mantivera-se surpreendentemente jovem, e a vista do príncipe era demasiado fraca para distinguir os seus parcos cabelos grisalhos.
Chegados ao fim das carícias, a Dama ajoelhou-se aos pés do príncipe e disse-lhe:
— Enganei-te, Príncipe. Sou realmente Ukiíune, a fílha do rendeiro So-Hei, mas não me perdi na montanha. A glória do príncipe Genghi espalhou-se até à aldeia e vim por minha vontade, para descobrir o amor nos teus braços.
Genghi levantou-se cambaleante, como um pinheiro vacila ao embate do Inverno e do vento. Com voz sibilante, gritou:
— Maldita sejas, que acabas de trazer-me a lembrança do meu pior inimigo, o belo príncipe de olhar aceso cuja imagem me traz desperto todas as noites ... Vai-te daqui...
E a Dama-da-aldeia-das-flores-que-caem afastou-se, lamentando o erro que acabava de cometer.
Durante as semanas que seguiram, Genghi ficou só. Verificava com desalento que continuava enleado nos enganos deste mundo e bem pouco afeito ao despojamento e à renovação da outra vida. A visita da filha do rendeiro So— Hei despertara nele o gosto pelas criaturas de pulso esguio, de longos peitos cónicos, de riso patético e dócil. Depois que começara a cegar, o sentido do tacto era o seu único meio de captar a beleza do mundo, e as paisagens onde fora refugiar-se já lhe não dispensavam qualquer consolo, pois o barulho de um regato é mais monótono que a voz de uma mulher e as curvas das colinas ou as madeixas das nuvens são feitas para quem as vê e pairam demasiado longe para se deixarem afagar.
Decorridos dois meses, a Dama-da-aldeia-das-flores-que-caem fez segunda tentativa.
Desta feita vestiu-se e perfumou-se com esmero, mas teve o cuidado de dar ao corte dos tecidos qualquer coisa de acanhado e tímido em toda a sua elegância, e de deixar que o perfume discreto, mas banal, sugerisse a falta de imaginação de uma mulher jovem saída de um honrado clã da província e que nunca viu a corte.
Desta vez, alugou carregadores e uma liteira imponente, mas à qual faltavam os últimos aperfeiçoamentos da cidade. E arranjou maneira de alcançar as proximidades da cabana de Genghijá noite cerrada. O Verão chegara à montanha antes dela. Sentado ao pé do bordo, Genghi ouvia os grilos cantar. Ela aproximou-se, escondendo um pouco o rosto por detrás de um leque, e murmurou embaraçada:
— Eu sou Chujo, a mulher de Sukazu, fidalgo de sétima ordem da província de Yamato. Vou em peregrinação ao templo de Isê, mas um dos meus carregadores acaba de torcer um pé e não posso prosseguir caminho antes da aurora. Indica-me uma cabana onde possa hospedar-me sem receio de calúnias e dar descanso aos meus criados.
— Onde estará uma mulher nova mais abrigada das calúnias do que na casa de um velho cego? — disse o príncipe amargamente. !\ minha cabana é demasiado pequena para os teus servos, que poderão instalar-se debaixo desta árvore, mas ceder-te-ei o único colchão do meu retiro.
Levantou-se tacteando para lhe ensinar o caminho. Nem uma única vez ergueu os olhos para ela, que por este sinal reconheceu que ele estava completamente cego.
Depois que ela se estendeu no colchão de folhas secas, Genghi retomou o seu lugar melancólico à entrada da cabana. Estava triste, e nem sequer sabia se aquela mulher jovem era bela.
A noite estava quente e luminosa. A lua despejava um clarão no rosto erguido do cego, que parecia esculpido em jade branco. Ao cabo de um longo momento, a Dama deixou o seu leito campestre e foi também sentar-se à entrada. E disse com um suspiro:
— Está uma noite bonita e eu não tenho sono. Deixa-me cantar uma das canções de que trago o peito cheio.
E sem esperar pela resposta entoou uma romança de que o príncipe gostava muito, pois muitas vezes a ouvira, em tempos, nos lábios da sua mulher preferida, a princesa Violeta. Perturbado, Genghi aproximou-se insensivelmente da desconhecida:
— Tu donde vens, jovem mulher que sabes cantar canções que tanto afeiçoávamos na minhajuventude? Harpa onde se dedilham árias de antigamente, deixa-me passar a mão nas tuas cordas.
E acariciou-lhe os cabelos. Ao fim de um instante, perguntou-lhe:
— Ai de mim! Pois não é o teu esposo mais belo e mais jovem do que eu, jovem mulher do país de Yamato?
— O meu esposo é menos belo e parece menos jovem — respondeu simplesmente a Dama-da-aldeia-das-flores-que-caem.
Assim se tornou a Dama, sob novo disfarce, a amante do príncipe Genghi, a quem em tempos pertencera. De manhãzinha, ajudou-o a preparar umas papas quentes e o príncipe Genghi disse-lhe:
— És terna e hábil, jovem mulher, e creio que nem o príncipe Genghi, que tão feliz foi no amor, jamais teve amante mais doce do que tu.
— Nunca ouvi falar do príncipe Genghi disse a Dama sacudindo a cabeça.
— Quê? — exclamou Genghi amargamente. Pois tão depressa o esqueceram? E todo o dia se manteve sombrio. A Dama compreendeu então que se enganara pela segunda vez, mas Genghi não falava em mandá-la embora e parecia feliz de ouvir o sussurro do seu vestido de seda na erva.
O Outono chegou, mudando as árvores da montanha noutras tantas fadas vestidas de ouro e púrpura, mas destinadas a morrerem com os primeiros frios. A Dama descrevia a Genghi aqueles castanhos-cinza, aqueles castanhos-dourados, aqueles castanhos-malva, tendo o cuidado de os referir só por acaso, e evitando sempre dar mostras de ir ostensivamente em seu auxílio. E a toda a hora encantava Genghi com a invenção de engenhosos colares de flores, de pratos requintados de tão simples, de letras novas adaptadas a velhas modas ternas e dolentes. Já no seu pavilhão de quinta concubína, onde Genghi a visitara em tempos, fizera valer aqueles mesmos encantos; distraído, porém, por outros amores não dera conta deles.
Pelo fim do Outono, as febres subiram dos pântanos. Os insectos pululavam no ar empestado, e cada respiração era como um gole de água sorvido numa fonte envenenada.
Genghi caiu doente e deitou-se na sua enxerga de folhas mortas, sabendo que não voltaria a levantar-se. Envergonhava-se da sua fraqueza e dos cuidados humilhantes a que a doença o obrigava frente à Dama, mas àquele homem, que toda a sua vida procurara em cada experiência aquilo que ela tinha simultaneamente de mais único e de mais dilacerante, apenas restava provar o que aquela intimidade nova e miserável entre dois seres acrescentava às estreitas doçuras do amor.
Certa manhã em que a Dama lhe massajava as pernas, Genghi ergueu-se apoiado nos cotovelos, procurou as mãos da Dama, tacteando, murmurou:
— Jovem mulher que cuidas deste que vai morrer, enganei-te. Eu sou o príncipe Genghi.
— Quando vim ao teu encontro, não passava de uma provinciana ignorante — disse a Dama —, e não sabia quem era o príncipe Genghi. Sei agora que foi o mais belo e o mais desejado de entre os homens, mas não precisas de ser o príncipe Genghi para seres amado.
Genghi agradeceu-lhe com um sorriso.
Desde que se lhe haviam emudecido os olhos, dir-se-ia que o seu olhar lhe palpitava nos lábios.
— Vou morrer — disse a custo. — Não me queixo de uma sorte que partilho com as flores, com os insectos, com os astros. Num universo onde tudo passa como um sonho, seria censurável durar sempre. Não me queixo de que as coisas, os seres, os corações sejam perecíveis, porquanto parte da sua beleza é feita desse infortúnio. O que me aflige é que sejam únicos. Antigamente, a certeza de obter em cada instante da minha vida uma revelação que não mais se repetiria constituía o que havia de mais luminoso nos meus prazeres secretos: agora, morro envergonhado como um privilegiado que tivesse assistido sozinho a uma festa sublime que apenas terá lugar uma vez. Queridos objectos, apenas tendes por testemunha um cego à beira da morte ... Outras mulheres hão-de florescer, tão sorridentes como as que eu amei, mas o seu sorriso será diferente, e aquele sinal que me apaixonava na sua face de âmbar ter-se-á deslocado a espessura de um átomo. Outros corações hão-de ceder ao peso de um amor insuportável, mas não serão nossas as suas lágrimas. Mãos húmidas de desejo continuarão a enlear-se sob as amendoeiras em flor, mas nunca a mesma chuva de pétalas se desfolha duas vezes sobre a mesma felicidade humana. Ah! Sinto-me como um homem levado pela cheia, que quisera encontrar ao menos um quinhão de terra seca para aí deixar algumas cartas amarelecidas e alguns leques de cores já desbotadas ... Que será de ti quando já aqui não estiver para me enternecer contigo, Recordação da Princesa Azul, minha primeira mulher, em cujo amor apenas acreditei no dia seguinte ao da sua morte? E de ti também, desolada Recordação da Dama-do-Pavilhão-das-Volúveis, que morreu nos meus braços porque uma rival ciumenta teimara em ser a única a amar-me? E de vós, insidiosas Recordações da minha demasiado bela madrasta e da minha demasiado jovem esposa, que se encarregaram de me ensinar à vez quanto se sofre ao ser-se o cúmplice ou a vítima de uma infidelidade? E de ti, subtil Recordação da Dama-Cigarra-do-Jardim, que por pudor se esquivou, de tal modo que tive de consolar-me junto do seu jovem irmão, cujo rosto infantil reflectia alguns traços daquele tímido sorriso de mulher? E de ti, cara Recordação da Dama-da-Longa-Noite, que tão doce foi e consentiu em ser tão-só a terceira em minha casa e no meu coração? E de ti, pobre e breve Recordação pastoral da filha do rendeiro So-Hei, que em mim apenas meu passado amava? E sobretudo de ti, de ti, deliciosa Recordação da pequenina Chujo que neste momento me massaja os pés e nem tempo terá de ser recordação? Chujo, que gostaria de ter encontrado mais cedo na minha vida; mas também é justo haver frutos reservados para o Outono mais tardio ...
Ébrio de tristeza, deixou tombar a cabeça no travesseiro duro. A Dama-da-aldeia-das-flores-que-caem inclinou-se para ele e murmurou tremurosa:
— Não havia acaso em teu palácio outra mulher, cujo nome não pronunciaste? Uma mulher meiga? Uma mulher chamada Dama-da-aldeia-das-flores-que-caem? Ai, recorda-te ...
Mas já os traços do príncipe Genghi haviam conquistado aquela serenidade que só aos mortos é reservada. O termo de toda a dor apagara do seu rosto o menor vestígio de saciedade ou de amargura e parecia tê-lo convencido a ele próprio de que tinha ainda dezoito anos. A Dama-da-aldeia-das— flores-que-caem deitou-se ao chão, gritando para além de toda a medida; as lágrimas salgadas devastavam-lhe as faces como a chuva da tempestade e os cabelos que arrancava às mancheias voavam como penugem. O único nome que Genghi esquecera era precisamente o dela.

Marguerite Yourcenar


domingo, 14 de julho de 2019

Romance em doze linhas



quanto falta pra gente se ver hoje

quanto falta pra gente se ver logo

quanto falta pra gente se ver todo dia

quanto falta pra gente se ver pra sempre

quanto falta pra gente se ver dia sim dia não

quanto falta pra gente se ver às vezes

quanto falta pra gente se ver cada vez menos

quanto falta pra gente não querer se ver

quanto falta pra gente não querer se ver nunca mais

quanto falta pra gente se ver e fingir que não se viu

quanto falta pra gente se ver e não se reconhecer

quanto falta pra gente se ver e nem lembrar que um dia se conheceu



Bruna Beber

sábado, 13 de julho de 2019

A presença mais pura

Nada do mundo mais próximo
mas aqueles a quem negamos a palavra
o amor, certas enfermidades, a presença mais pura
ouve o que diz a mulher vestida de sol
quando caminha no cimo das árvores
«a que distância da língua comum deixaste
o teu coração?»

A altura desesperada do azul
no teu retrato de adolescente há centenas de anos
a extinção dos lírios no jardim municipal
o mar desta baía em ruínas ou se quiseres
os sacos do supermercado que se expandem nas gavetas
as conversas ainda surpreendentemente escolares
soletradas em família

a fadiga da corrida domingueira pela mata
as senhas da lavandaria com um «não esquecer» fixado
o terror que temos
de certos encontros de acaso
porque deixamos de saber dos outros
coisas tão elementares
o próprio nome

Ouve o que diz a mulher vestida de sol
quando caminha no cimo das árvores
«a que distância deixaste
o coração?»

José Tolentino de Mendonça

Travessia da infância

Quietos fazemos as grandes viagens
só a alma convive com as paragens
estranhas

lembro-me de uma janela
na Travessa da Infância
onde seguindo o rumor dos autocarros
olhei pela primeira vez
o mundo

não sei se poderás adivinhar
a secreta glória que senti
por esses dias

só mais tarde descobri que
o último apeadeiro de todos
os autocarros
era ainda antes
do mundo

mas isso foi depois
muito depois
repito

José Tolentino de Mendonça

domingo, 7 de julho de 2019

E ao anoitecer


e ao anoitecer adquires nome de ilha ou de vulcão
deixas viver sobre a pele uma criança de lume
e na fria lava da noite ensinas ao corpo
a paciência o amor o abandono das palavras
o silêncio
e a difícil arte da melancolia

Al Berto

I need you to turn to


https://www.youtube.com/watch?v=RA4L-EhDCXY

You're not a ship to carry my life
You are nailed to my love in many lonely nights
I've strayed from the cottages and found myself here
For I need your love your love protects my fears

[Chorus]
And I wonder sometimes and I know I'm unkind
But I need you to turn to when I act so blind
And I need you to turn to when I lose control
You're my guardian angel who keeps out the cold

[Verse 2]
Did you paint your smile on, well I said I knew
That my reason for living was for loving you
We're related in feeling but you're high above
You're pure and you're gentle with the grace of a dove

Elton John


terça-feira, 2 de julho de 2019

É isto o amor

Em quem pensar, agora, senão em ti? Tu, que
me esvaziaste de coisas incertas, e trouxeste a
manhã da minha noite. É verdade que te podia
dizer: «Como é mais fácil deixar que as coisas
não mudem, sermos o que sempre fomos, mudarmos
apenas dentro de nós próprios?» Mas ensinaste-me
a sermos dois; e a ser contigo aquilo que sou,
até sermos um apenas no amor que nos une,
contra a solidão que nos divide. Mas é isto o amor:
ver-te mesmo quando te não vejo, ouvir a tua
voz que abre as fontes de todos os rios, mesmo
esse que mal corria quando por ele passámos,
subindo a margem em que descobri o sentido
de irmos contra o tempo, para ganhar o tempo
que o tempo nos rouba. Como gosto, meu amor,
de chegar antes de ti para te ver chegar: com
a surpresa dos teus cabelos, e o teu rosto de água
fresca que eu bebo, com esta sede que não passa. Tu:
a primavera luminosa da minha expectativa,
a mais certa certeza de que gosto de ti, como
gostas de mim, até ao fim do mundo que me deste. 

Nuno Júdice

Nós voltaremos sempre em maio

Amanhã não estaremos já neste lugar
amanhã a cidade já não terá o teu rosto
e a canção não virá cheia de ti
escrever em cada árvore o teu nome verde.

Amanhã outros passarão onde passámos
farão os mesmos gestos dirão as mesmas palavras
dirão um nome baixo um nome loucamente
como quem sobre a morte é por instantes eterno.

Amanhã a cidade terá outro rosto.
Nós não estaremos cá. Mas a cidade
já não será contra o amor amanhã quando
os amantes passarem na cidade livre.

Nós não estaremos cá. Voltaremos em Maio
quando a cidade se vestir de namorados
e a liberdade for o rosto da cidade nós
que também fomos jovens e por ela e por eles

amámos e lutámos e morremos
nós voltaremos meu amor nós voltaremos sempre
no mês de Maio que é o mês da liberdade
no mês de Maio que é o mês dos namorados.

Manuel Alegre

terça-feira, 18 de junho de 2019

Meus amigos sou de vidro

Meus amigos sou de vidro
Sou de vidro escurecido
Encubro a luz que me habita
Não por ser feia ou bonita
Mas por ter assim nascido
Sou de vidro escurecido
Mas por ter assim nascido
Não me atinjam não me toquem
Meus amigos sou de vidro

Sou de vidro escurecido
Tenho fumo por vestido
E um cinto de escuridão
Mas trago a transparência
Envolvida no que digo
Meus amigos sou de vidro
Por isso não me maltratem
Não me quebrem não me partam
Sou de vidro escurecido

Tenho fumo por vestido
Mas por assim ter nascido
Não por ser feia ou bonita
Envolvida no que digo
Encubro a luz que me habita


Lídia Jorge


A casa onde às vezes regresso

A casa onde às vezes regresso é tão distante
da que deixei pela manhã
no mundo
a água tomou o lugar de tudo
reúno baldes, estes vasos guardados
mas chove sem parar há muitos anos 

Durmo no mar, durmo ao lado de meu pai
uma viagem se deu
entre as mãos e o furor
uma viagem se deu: a noite abate-se fechada
sobre o corpo
 
Tivesse ainda tempo e entregava-te
o coração

José Tolentino de Mendonça 

terça-feira, 11 de junho de 2019

El hombre que existió

En el campo con nieve va abriendo mi marido
una X, concepto definido ante un vacío;
se aleja hasta que queda
oculto por el bosque.
Cuando ya no lo veo,
en qué se ha convertido
qué otra forma
se mezcla en la
maleza, vacila por los charcos
se esconde de la alerta
presencia de animales de la ciénaga
Volverá
al mediodía; o puede que la idea
que tengo yo de él
sea lo que me encuentre de regreso
y con él amparándose tras ella.
Puede que me transforme a mí también
si llega con los ojos del zorro o los del búho
o con los ocho
ojos de la araña
No puedo imaginarme
qué verá
cuando abra la puerta
Margaret Atwood

Coisa amar

Contar-te longamente as perigosas
coisas do mar. Contar-te o amor ardente
e as ilhas que só há no verbo amar.
Contar-te longamente longamente.

Amor ardente. Amor ardente. E mar.
Contar-te longamente as misteriosas
maravilhas do verbo navegar.
E mar. Amar: as coisas perigosas.

Contar-te longamente que já foi
num tempo doce coisa amar. E mar.
Contar-te longamente como doi

desembarcar nas ilhas misteriosas.
Contar-te o mar ardente e o verbo amar.
E longamente as coisas perigosas.

Manuel Alegre

Nem eu


https://www.youtube.com/watch?v=8Nglpp3QSiI

quinta-feira, 30 de maio de 2019

A levíssima embriaguez de andarem juntos

Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que por admiração se estava de boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles.
Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles.
Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque - a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de escuras - e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca de admiração.
Como eles admiravam estarem juntos!
Até que tudo se transformou em não. Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. Então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, ela não via que ele não vira, ela que, estava ali, no entanto. No entanto ele que estava ali. Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome; porque quiseram ser, eles que eram. Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios. Tudo, tudo por não estarem mais distraídos.

Clarice Lispector

Namoro

https://www.youtube.com/watch?v=o58yrP-x9k0

Mandei-lhe uma carta em papel perfumado
e com letra bonita dizia ela tinha
um sorriso luminoso tão triste e gaiato
como o sol de Novembro brincando de artista
nas acácias floridas na fímbria do mar
e dando calor ao sumo das mangas
Sua pele macia era suma-uma
sua pele macia da cor do jambo
cheirando a rosas sua pele macia
guardava as doçuras do corpo rijo
tão rijo e tão doce como um maboque
seus seios laranjas, laranjas do Loge
seus dentes marfim
mandei-lhe essa carta e ela disse que não
Mandei-lhe um cartão
que o amigo Maninho tipografou
"por ti sofre o meu coração"
num canto "sim" noutro canto "não"
e ela o canto do "não" dobrou

Mandei-lhe um recado pela Zefa do sete
pedindo e rogando de joelhos no chão
pela Sra do Cabo, pela Sta Efigénia
me desse a ventura do seu namoro
e ela disse que não
Levei à Vó Xica, quimbanda de fama
areia da marca que o seu pé deixou
para que fizesse um feitiço
forte e seguro
que nela nascesse um amor como o meu
e o feitiço falhou
Esperei-a de tarde à porta da fábrica
orfetei-lhe um colar, um anel e um broche
Paguei-lhe doces na calçada da Missão
Ficamos num banco do Largo da Estátua
Afaguei-lhe as mãos falamos de amor
e ela disse que não.
Andei barbudo, sujo e descalço
como um monangamba procuraram por mim
não viu ai não viu, não viu Benjamim
e perdido me deram no morro da Samba
Para me distrair levaram-me ao baile
do Só Januário, mas ela lá estava
num canto a rir, contando o meu caso
às moças mais lindas do bairro operário
Tocaram uma rumba e dancei com ela
e num passo maluco voamos na sala
qual uma estrela riscando o céu
e a malta gritou "Aí Benjamim"
Olhei-a nos olhos sorriu para mim
pedi-lhe um beijo
lá lá lá lá lá
lá lá lá lá lá
E ela disse que sim

Sérgio Godinho



Remedia Amoris

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