sexta-feira, 29 de maio de 2020
Z
As formas, as sombras, a luz que descobre a noite
e um pequeno pássaro
e depois longo tempo eu te perdi de vista
meus braços são dois espaços enormes
os meus olhos são duas garrafas de vento
e depois eu te conheço de novo numa rua isolada
minhas pernas são duas árvores floridas
os meus dedos uma plantação de sargaçosa tua figura era ao que me lembro
da cor do jardim.
António Maria Lisboa
e um pequeno pássaro
e depois longo tempo eu te perdi de vista
meus braços são dois espaços enormes
os meus olhos são duas garrafas de vento
e depois eu te conheço de novo numa rua isolada
minhas pernas são duas árvores floridas
os meus dedos uma plantação de sargaços
da cor do jardim.
António Maria Lisboa
quarta-feira, 27 de maio de 2020
Trilho de luz
Sempre que conseguia
eu acendia o meu brilho
dizia do sol o fio
seguindo da luz o trilho
*
Lembrava o abandonono
recriava a rebeldia
abria com o estilete
de Pandora a caixa fria
*
Confessava o meu
mistério
de solidão reclusa
*
Dava a ver a estrela-norte
mas também a dor infusa
contida no seu desnorte
Maria Teresa Horta
eu acendia o meu brilho
dizia do sol o fio
seguindo da luz o trilho
*
Lembrava o abandonono
recriava a rebeldia
abria com o estilete
de Pandora a caixa fria
*
Confessava o meu
mistério
de solidão reclusa
*
Dava a ver a estrela-norte
mas também a dor infusa
contida no seu desnorte
Maria Teresa Horta
quarta-feira, 13 de maio de 2020
Rigor
De ti sei a raiz do sentimento
o lugar do rigor
rasgando a alma
*
Entre aquilo que és e não o sendo
no turvado olhar
jamais se acalma
*
Percorro solitária o meu invento
e se à razão sempre cedo
e tudo arrisco
*
Ao destino retiro o ferro da paixão
mas da fogueira do corpo
não desisto
Maria Teresa Horta
o lugar do rigor
rasgando a alma
*
Entre aquilo que és e não o sendo
no turvado olhar
jamais se acalma
*
Percorro solitária o meu invento
e se à razão sempre cedo
e tudo arrisco
*
Ao destino retiro o ferro da paixão
mas da fogueira do corpo
não desisto
Maria Teresa Horta
sábado, 2 de maio de 2020
Elementário
O verdadeiro sentido das palavras
é que o poema consiste
em falar do que não pode ser dito a quem
se quer dizer
ou o verdadeiro sentido das palavras
é que o poema consiste
em não falar do que pode ser dito a quem
se quer dizer
ou o verdadeiro sentido das palavras
é que o poema consiste
em não falar do que não pode ser dito a quem
se quer dizer
ou o verdadeiro sentido das palavras
é que o poema consiste
em falar do que pode ser dito a quem
se não quer dizer
isto, claro, partindo do princípio
de que há um sentido das palavras,
verdadeiro, um poema e um
a quem se queira dizer.
Daniel Jonas
versão errática:
That happy hand, wich hardly did touch
Thy tender body to my deep delight
ANON, 1560
versão errática:
mão tão feliz de ter tocado
teu corpo atento ao meu desejo
Herberto Helder
Thy tender body to my deep delight
ANON, 1560
versão errática:
mão tão feliz de ter tocado
teu corpo atento ao meu desejo
Herberto Helder
Soneto oblíquo em rima, mas, de facto,
Havia um tempo em que esperar por ti
era consulta a meteorologia:
preparar coração, achar ali,
na coluna do lado, em geografia
de página, ou écran: coisa parecida
o sol bem desenhado, os raios com
a palavra por baixo, indicativa
de que amanhã o tempo ia ser bom.
Mas não era a palavra, era o ruído,
eu sem saber o que fazer comigo,
e o sol, caracol longo a demorar-
-se - assim era ele oblíquo de rimar;
porque eu sabia que o que ali rimava
estava em saber que vinhas. E ficavas.
Ana Luísa Amaral
era consulta a meteorologia:
preparar coração, achar ali,
na coluna do lado, em geografia
de página, ou écran: coisa parecida
o sol bem desenhado, os raios com
a palavra por baixo, indicativa
de que amanhã o tempo ia ser bom.
Mas não era a palavra, era o ruído,
eu sem saber o que fazer comigo,
e o sol, caracol longo a demorar-
-se - assim era ele oblíquo de rimar;
porque eu sabia que o que ali rimava
estava em saber que vinhas. E ficavas.
Ana Luísa Amaral
Sombra de um gato
à memória de Eugénio de Andrade
Como se nota a velhice de um gato? No caso do Barnabé, a resposta, é simples: deixou praticamente de me atacar (era o seu desporto preferido, entre as seis da tarde e as duas da manhã), o pêlo foi perdendo espessura e está bastante mais magro. Os gestos, como em qualquer velhice, tornaram-se lentos e espaçados. Embaciaram ainda, numa tristeza muda, os olhos que há quinze anos me acompanham.
*
Espero, amigo gato, que não seja este o último Verão que passamos juntos. Também eu sou agora um torvelinho de cãs e de rugas breves, espalhadas sobre um rosto débil. Talvez já me pertença, de pleno direito, a hora desta terrível pergunta: «Por quanto tempo poderemos amá-los, a esses jovens, sem os ofender?». Gostava de te falar de outro assunto, de encontrar um tema diferente para a poesia de que já não sou capaz. A minha mão pousa sobre o teu dorso cansado, enquanto a noite nos cerca. Que se foda e refoda a literatura.
Manuel de Freitas
Como se nota a velhice de um gato? No caso do Barnabé, a resposta, é simples: deixou praticamente de me atacar (era o seu desporto preferido, entre as seis da tarde e as duas da manhã), o pêlo foi perdendo espessura e está bastante mais magro. Os gestos, como em qualquer velhice, tornaram-se lentos e espaçados. Embaciaram ainda, numa tristeza muda, os olhos que há quinze anos me acompanham.
*
Espero, amigo gato, que não seja este o último Verão que passamos juntos. Também eu sou agora um torvelinho de cãs e de rugas breves, espalhadas sobre um rosto débil. Talvez já me pertença, de pleno direito, a hora desta terrível pergunta: «Por quanto tempo poderemos amá-los, a esses jovens, sem os ofender?». Gostava de te falar de outro assunto, de encontrar um tema diferente para a poesia de que já não sou capaz. A minha mão pousa sobre o teu dorso cansado, enquanto a noite nos cerca. Que se foda e refoda a literatura.
Manuel de Freitas
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Hoje roubei todas as rosas dos jardins e cheguei ao pé de ti de mãos vazias. Eugénio de Andrade