sábado, 2 de maio de 2020

Sombra de um gato

à memória de Eugénio de Andrade

Como se nota a velhice de um gato? No caso do Barnabé, a resposta, é simples: deixou praticamente de me atacar (era o seu desporto preferido, entre as seis da tarde e as duas da manhã), o pêlo foi perdendo espessura e está bastante mais magro. Os gestos, como em qualquer velhice, tornaram-se lentos e espaçados. Embaciaram ainda, numa tristeza muda, os olhos que há quinze anos me acompanham.

*

Espero, amigo gato, que não seja este o último Verão que passamos juntos. Também eu sou agora um torvelinho de cãs e de rugas breves, espalhadas sobre um rosto débil. Talvez já me pertença, de pleno direito, a hora desta terrível pergunta: «Por quanto tempo poderemos amá-los, a esses jovens, sem os ofender?». Gostava de te falar de outro assunto, de encontrar um tema diferente para a poesia de que já não sou capaz. A minha mão pousa sobre o teu dorso cansado, enquanto a noite nos cerca. Que se foda e refoda a literatura.

Manuel de Freitas

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