segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Elogio da mulher invisível

uma mulher pensa veste-se mal
parece uma empregada doméstica
perdeu toda a dignidade no dia-a-dia
não podia ter escolhido roupas mais feias, desirmanadas, repulsivas
vem defender a tese como se estivesse em roupão
o corpo disforme esquecido
talvez não muito limpo
mas talvez isto seja só uma ideia
por não se depilar e deixar o cabelo crescer
sem nunca lhe dar forma
esta mulher estuda pensa
acolhe os nossos filhos
acarinha-os quando não estamos
ensina-lhes o que nós sabemos
mas não somos capazes de ensinar
chamam-lhe primária
continuam a chamar-lhe primária
mas ela sabe os segredos
truques que nos escapam
nós pais e mães
nós os das profissões mais ou menos liberais
que nos libertaram da escravatura e nos voltaram
a lançar nela de formas mais perversas
nós aparentemente sensatos, requintados
cada vez mais desorbitados
ignoramos o que ela faz todos os dias
como abraça trinta crianças de uma vez só
no nevoeiro mais matinal e no coração da canícula
estrada fora pelos dias dentro
entra na cabeça e no peito dos nossos filhos
e deixa a eterna semente da confiança
como o animal prenhe
do futuro indefinido mais que perfeito descomposto

Rosa Oliveira

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