terça-feira, 3 de agosto de 2021

Ela falava só para mim


71. Ela falava só para mim. Anos e anos. Depois, ficou em silêncio. Hoje, comunica com a linguagem das pedras brilhantes. E fala com o futuro. Como se ainda esperasse um filho no ventre despedaçado pela guerra dos cleptocratas.

72. Há abismos invisíveis em caminhos distraídos. Quando damos por nós, estamos numa dimensão paralela. Não sei nada de quântica. Mas sei o que está no outro lado do que me é impossível.

73. Irreversível e desastroso. E agora tudo o que já fez parte de mim pertence ao Grande Livro do Mistério Inacessível.

74. As arrecadações são abismos de memórias. Antiguidades negociáveis e sem qualquer outro valor. Cumulação de dívidas com o passado. E ainda que não fossem, são hoje brinquedos sórdidos.

75. Objectos que criam mitos. E lá estavam escondidos os aerogramas de um soldado numa guerra que me tinham destinado enquanto brincava com espingardas de pau. Inocente como todos os outros inocentes manipulados pelos carcereiros de uma juventude proibida. Adolescente, com olhos raiados de sangue, disse que não queria matar. E na prisão fui preso. E resisti até ao tutano da lucidez.

76. Chamavam-lhe visco. Era um produto para apanhar pássaros. Uma cola assassina. Soltei pássaros. Centenas de pássaros. Condenaram-me. Mudei de bairro. E descobri a metáfora da viagem.

Luís Filipe Sarmento


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