domingo, 30 de janeiro de 2022

Do que um homem é capaz

 https://www.youtube.com/watch?v=8OIly6RxlJE


Vejo gente cuja vida
Vai sendo consumida
Por miragens de poder
Agarrados a alguns ossos
No meio dos destroços
Do que nunca vão fazer
Vão poluindo o percurso
Com as sobras do discurso
Que lhes serviu pra abrir caminho
À custa das nossas utopias
Usurpam regalias
Pra consumir sozinhos

Com políticas concretas
Impõem essas metas
Que nos entram casa adentro
Como a trilateral
Com a treta liberal
E as virtudes do centro
No lugar da consciência
A lei da concorrência
Pisando tudo pelo caminho
Pra castrar a juventude
Mascaram de virtude
O querer vencer sozinho

Ficam cínicos brutais
Descendo cada vez mais
Pra subir cada vez menos
Quanto mais o mal se expande
Mais acham que ser grande
É lixar os mais pequenos

Quem escolher ser assim
Quando chegar ao fim
Vai ver que errou o seu caminho
Quando a vida é hipotecada
No fim não sobra nada
E acaba-se sozinho
Mesmo sendo os poderosos
Tão fracos e gulosos
Que precisam do poder
Mesmo havendo tanta gente
Pra quem é indiferente
Passar a vida a morrer

Há princípios e valores
Há sonhos e amores
Que sempre irão abrir caminho
E quem viver abraçado
À vida que há ao lado
Não vai morrer sozinho
E quem morrer abraçado
À vida que há ao lado
Não vai viver sozinho

José Mário Branco


quinta-feira, 20 de janeiro de 2022


 

O cabelo

Arrancando um cabelo da dourada cabeleira,
Dóris atou as minhas mãos como um prisioneiro de guerra.
A princípio ri às gargalhadas, pensando
que sacudiria facilmente as cadeias da minha Dóris.
Mas, sem forças para as romper, comecei a gemer
como se estivesse preso por grilhetas de ferro.
E agora, três vezes infeliz, vivo suspenso de um cabelo,
seguindo amarrado para onde a minha amante me leva.

Paulo Silenciário (séc. VI)

domingo, 16 de janeiro de 2022

Testamento

Vou partir de avião
E o medo das alturas misturado comigo
Faz-me tomar calmantes
E ter sonhos confusos

Se eu morrer
Quero que a minha filha não se esqueça de mim
Que alguém lhe cante mesmo com voz desafinada
E que lhe ofereçam fantasia
Mais que um horário certo
Ou uma cama bem feita

Dêem-lhe amor e ver
Dentro das coisas
Sonhar com sóis azuis e céus brilhantes
Em vez de lhe ensinarem contas de somar
E a descascar batatas

Preparem minha filha para a vida
Se eu morrer de avião
E ficar despegada do meu corpo
E for átomo livre lá no céu

Que se lembre de mim
A minha filha
E mais tarde que diga à sua filha
Que eu voei lá no céu
E fui contentamento deslumbrado
Ao ver na sua casa as contas de somar erradas
E as batatas no saco esquecidas
E íntegras.

Ana Luísa Amaral

O pequeno golpe que me abriste

O pequeno golpe que me abriste feito de amor e abandono
entre a veia cava e a beira da estrada onde por vezes me sento sozinho
olhos fechados no meio de uma sala cheia de gente
é o caminho por onde parte e não regressa o caçador esquimó
que vi num filme ainda miúdo quando as luzes se apagavam mesmo
e então o mundo era só ali.

Miguel Martins


sábado, 15 de janeiro de 2022

Agora


Agora,

A vida cabe-te toda num saco de papel,

porque vivê-la foi só deixá-la impressa

e, para isso, é preciso não sentir,

ou apenas o estritamente necessário

para não deixar secar as bolsas lacrimais.


Contudo, a velha casa ainda está de pé

e, pelas paredes, em locais secretos,

intocados ou submersos por tintas de água,

aí permanecem, estou certo,

as mais belas inscrições do nosso amor.


E, um dia,

sob o efeito de girândola ou zootropo mágicos,

nossos olhos regressarão a esses sítios só nossos,

tão nossos como esses próprios olhos,

e de tudo o que fizemos, antes e depois,

reconheceremos neles a nossa melhor pátria.


Saberemos

que os amores adiados são vontades divinas,

porque outros merecem também as nossas mãos

e há sentimentos que quase cindem os átomos,

garatujas que são esboços, que são quadros

demasiado belos para o museu do mundo.

Miguel Martins


sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

Retrato


A pele era o que de mais solitário havia no seu corpo.
Há quem, tendo-a metida
num cofre até às mais fundas raízes,
simule não ter pele, quando
de facto ela não está
senão um pouco atrasada em relação ao coração.
Com ele porém não era assim.
A pele ia imitando o céu como podia.
Pequena, solitária, era uma pele metida
consigo mesma e que servia
de poço, onde além de água ele procurava protecção.

Luís Miguel Nava


segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

Invernal

One must have a mind of winter…
(Wallace Stevens)

El tiempo no te ha dado las respuestas,
sólo nuevas preguntas.
Declina con las horas
la luz, las calles se despueblan,
desde tu cuarto sólo ves
un futuro de ramas harapientas,
la noche agazapada en los tejados,
y crees sentir, incluso, esa quietud
que precede a la nieve
como un aliento contenido,
algo que espera a ser
y desespera.
El invierno
lo hace todo más simple,
con su buril de frío y de carencias.
Es una disciplina,
un acuerdo entre el mundo y su reverso,
el lado de penumbra en que se apoya.

El color de la tarde
se iguala al pensamiento.
Cae sobre la calle
una luz aclarada, casi exenta,
y todo se distancia y adormece
como en un objetivo,
como si el mundo fuera un diagrama del mundo,
un mapa desnutrido y eficaz
que ha dado con el hueso de las cosas.

La mente se complace en el invierno.
Le alivia su barbecho,
su rara indiferencia,
la forma en que se atiene a lo que tiene.
Todo lo simplifica,
también estas preguntas impacientes
que cambian con el tiempo,
que no cambian.

Jordi Doce


Remedia Amoris

Foi uma péssima ideia a de voltarmos a ver-nos. Não fizemos mais do que trocar insultos e culpar-nos de velhas e sórdidas histórias. Depois ...