sábado, 15 de janeiro de 2022

Agora


Agora,

A vida cabe-te toda num saco de papel,

porque vivê-la foi só deixá-la impressa

e, para isso, é preciso não sentir,

ou apenas o estritamente necessário

para não deixar secar as bolsas lacrimais.


Contudo, a velha casa ainda está de pé

e, pelas paredes, em locais secretos,

intocados ou submersos por tintas de água,

aí permanecem, estou certo,

as mais belas inscrições do nosso amor.


E, um dia,

sob o efeito de girândola ou zootropo mágicos,

nossos olhos regressarão a esses sítios só nossos,

tão nossos como esses próprios olhos,

e de tudo o que fizemos, antes e depois,

reconheceremos neles a nossa melhor pátria.


Saberemos

que os amores adiados são vontades divinas,

porque outros merecem também as nossas mãos

e há sentimentos que quase cindem os átomos,

garatujas que são esboços, que são quadros

demasiado belos para o museu do mundo.

Miguel Martins


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