segunda-feira, 23 de maio de 2022

Há os barcos que levam a distâncias


Há os barcos que levam a distâncias
curtas, e que dão jeito.

E há barcos que levam longe, e que
as pessoas deixam no cais.


Daniel Maia-Pinto Rodrigues


sexta-feira, 13 de maio de 2022

Silenciosamente aproximo-me do poema

silenciosamente aproximo-me do poema

circundo-o duma palavra faço nela
uma incisão deliberada

e exponho a ferida ao ar sem protegê-la
para que infecte e frutifique
de resina ainda com gosto a papel húmido

o poema cresce ramifica-se
comovidamente do cerne para a casca
inteiro liso adstringente sinuoso
mas

todo o poema é perfeitamente impuro.

Vasco Graça Moura


 


terça-feira, 10 de maio de 2022

Diamonds and rust

https://www.youtube.com/watch?v=1ST9TZBb9v8 

Well, I'll be damned
Here comes your ghost again
But that's not unusual
It's just that the moon is full
And you happened to call
And here I sit
Hand on the telephone
Hearing a voice I'd known
A couple of light years ago
Heading straight for a fall

As I remember your eyes
Were bluer than robin's eggs
My poetry was lousy you said
Where are you calling from?
A booth in the midwest
Ten years ago
I bought you some cufflinks
You brought me something
We both know what memories can bring
They bring diamonds and rust

Well, you burst on the scene
Already a legend
The unwashed phenomenon
The original vagabond
You strayed into my arms
And there you stayed
Temporarily lost at sea
The Madonna was yours for free
Yes, the girl on the half-shell
Could keep you unharmed

Now I see you standing
With brown leaves falling all around
And snow in your hair
Now you're smiling out the window
Of that crummy hotel
Over Washington Square
Our breath comes out white clouds
Mingles and hangs in the air
Speaking strictly for me
We both could have died then and there

Now you're telling me
You're not nostalgic
Then give me another word for it
You who are so good with words
And at keeping things vague
'Cause I need some of that vagueness now
It's all come back too clearly
Yes, I loved you dearly
And if you're offering me diamonds and rust
I've already paid

Joan Baez


sexta-feira, 6 de maio de 2022

Understand me

Understand me. I’m not like an ordinary world. I have my madness, I live in another dimension and I do not have time for things that have no soul.

Charles Bukowski


quarta-feira, 4 de maio de 2022

Anda cá

Anda cá
deixa-te estar neste gerúndio
já reparaste
na omnipresença dos grilos
uma frequência audível só
por certos ouvidos apurados
para o tédio
mesmo à sombra
a lentidão espessa estende-te
o sovaco por detrás dos cabelos
e agora
és tu quem chove
és tu todas as coisas

Inês Morão Dias

terça-feira, 3 de maio de 2022

Estimados compatriotas

Acerca do filho-da-puta, como acerca de muitas outras coisas, correm neste país as mais variadas lendas. Há até quem seja de opinião de que o filho-da-puta a bem-dizer nunca existiu, dado que ele é apenas um modo de mal-dizer. Nada, porém, mais falso. É certo que o filho-da-puta às vezes não passa de um modo de dizer, mas não bastará a simples existência, particular e pública, de tão variados retratos seus, para arrumar com as dúvidas acerca da sua existência real? Pois quem teria imaginação suficiente para inventar tantas e tais variedades de filho-da-puta, caso ele não existisse? Não! O filho-da-puta existe. Em todos os lugares, excepto no dicionário. No dicionário existem variados filhos, entre eles o filho-família, o filhastro e o filhote, mas não existe o filho-da-puta. Em compensação, o filho-da-puta existe em todos os outros lugares. Claro que há lugares que ele de preferência ocupa e onde por conseguinte é mais frequente encontrá-lo; no entanto, exceptuando, como ficou dito, o dicionário, não há lugar onde, procurando bem, não se encontre pelo menos um filho-da-puta.

Alberto Pimenta

Carta de amor

https://www.youtube.com/watch?v=Zi2cb9cK4M8

(...)
Eu posso engolir você
Só pra cuspir depois
A minha fome é matéria que você não alcança
Desde o leite do peito de minha mãe
Até o sem fim dos versos, versos, versos
Que brotam no poeta em toda poesia
Sob a luz da lua que deita na palma da inspiração de Caymmi
Se choro, quando choro, e minha lágrima cai
É pra regar o capim que alimenta a vida
Chorando eu refaço as nascentes que você secou
Se desejo
O meu desejo faz subir marés de sal e sortilégio
Eu ando de cara para o vento, na chuva
E quero me molhar
O terço de Fátima e o cordão de Gandhi cruzam o meu peito

Sou como a haste fina
Que qualquer brisa verga
Mas nenhuma espada corta

Não mexe comigo
Que eu não ando só
Que eu não ando só
Eu não ando só

Maria Bethânia

domingo, 1 de maio de 2022

Dia de Maio

 






Os vampiros

 https://www.youtube.com/watch?v=8ur7ne3SWwc

No céu cinzento
Sob o astro mudo
Batendo as asas
Pela noite calada
Vêm em bandos
Com pés de veludo
Chupar o sangue
Fresco da manada

Se alguém se engana
Com seu ar sisudo
E lhes franqueia
As portas à chegada

Eles comem tudo
Eles comem tudo
Eles comem tudo
E não deixam nada (2x)

A toda a parte
Chegam os vampiros
Poisam nos prédios
Poisam nas calçadas
Trazem no ventre
Despojos antigos
Mas nada os prende
Às vidas acabadas

São os mordomos
Do universo todo
Senhores à força
Mandadores sem lei
Enchem as tulhas
Bebem vinho novo
Dançam a ronda
No pinhal do rei

Eles comem tudo
Eles comem tudo
Eles comem tudo
E não deixam nada (2x)

No chão do medo
Tombam os vencidos
Ouvem-se os gritos
Na noite abafada
Jazem nos fossos
Vítimas dum credo
E não se esgota
O sangue da manada

Se alguém se engana
Com seu ar sisudo
E lhes franqueia
As portas à chegada

Eles comem tudo
Eles comem tudo
Eles comem tudo
E não deixam nada

José Afonso


Abres portas

abres portas

fechas janelas

acendes cigarros

apagas velas

chamas

por ti


Madalena Ávila


Poeta no supermercado

I
Indignar-me é o meu signo diário.
Abrir janelas. Caminhar sobre espadas.
Parar a meio de uma página,
erguer-me da cadeira, indignar-me
é o meu signo diário.
Há países em que se espera
que o homem deixe crescer as patas
da frente, e coma erva, e leve
uma canga minhota como os bois.
E há os poetas que perdoam. Desliza
o mundo, sempre estão bem com ele.
Ou não se apercebem: tanta coisa
para olhar em tão pouco tempo,
a vida tão fugaz, e tanta morte...
Mas a comida esbarra contra os dentes,
digo-vos que um dia acabareis tremendo,
teimar, correr, suar, quebrar os vidros
(indignar-me) é o meu signo diário.

II
Um homem tem que viver.
e tu vê lá não te fiques
- um homem tem que viver
com um pé na Primavera.
Tem que viver
cheio de luz. Saber
um dia com uma saudade burra
dizer adeus a tudo isto.
Um homem (um barco) até ao fim da noite
cantará coisas, irá nadando
por dentro da sua alegria.
Cheio de luz - como um sol.
Beberá na boca da amada.
Fará um filho.
Versos.
Será assaltado pelo mundo.
Caminhará no meio dos desastres,
no meio de mistérios e imprecisões.
Engolirá fogo.
Palavra,
um homem tem que ser prodigioso.
Porque é arriscado ser-se um homem.
É tão difícil, é
(com a precariedade de todos os nomes)
o começo apenas

Fernando Assis Pacheco

Remedia Amoris

Foi uma péssima ideia a de voltarmos a ver-nos. Não fizemos mais do que trocar insultos e culpar-nos de velhas e sórdidas histórias. Depois ...