sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

À beira

Sou alta;
na guerra
cheguei a pesar quarenta quilos.

Estive à beira da tuberculose,
à beira do cárcere,
à beira da amizade,
à beira da arte,
à beira do suicídio,
à beira da misericórdia,
à beira da inveja,
à beira da fama,
à beira do amor,
à beira da praia,
e, pouco a pouco, foi-me dando sono
e aqui estou dormindo à beira
à beira de despertar.

Gloria Fuertes


Someone I loved

Someone I loved
once gave me
a box full of
darkness.

It took me years
to understand
that this, too,
was a gift.

Mary Oliver


El amor que no me assusta

Lejos de los amores feroces del origen,
y lejos del amor que, a modo de refugio,
la mente siempre inventa, el amor
que ahora me consuela es sin urgencias.
Cálido, respetuoso: amor de sol de invierno.
Amar es descubrir
una promesa de repetición que tranquiliza.
Estos poemas hablan de esperar,
porque el amor es siempre una cuestión
de las últimas páginas.
Ningún otro final podría estar
a la altura de tanta soledad.

Joan Margarit


[...]

Estavas muito perto. Só
10 rios nos separavam,
três línguas, duas fronteiras:
quatro dias entre ti e mim.

Pedro Salinas


sábado, 2 de dezembro de 2023

[não sei]

não sei
para onde vai depois o amor com que amámos
em que matéria se dissolve
em que pedra se fecha e cala
quem recolhe a sua espuma desfeita
em que memória imprecisa permanece
onde guardei se guardei as cartas, a foto, o anel
a chave e a alegria

talvez arda em palavras assim
cinza soprada aos solavancos pelo vento
sem bilhete de regresso nem moral da história
número de telefone apagado
breve rodapé da vida

Violeta Runa


Amor à vista

A mulher que não há começa em ti
Começa em ti a sempre tão ausente
A sempre tão distante e tão aqui
Tão doente da partida e tão presente.

Começa em ti a sempre incomeçada
A que por nunca ser nunca perdi
A que era amor do amor: corpo de nada.
A mulher que não há começa em ti.

Começa em ti um tempo em que ajoelho
Tempo de amar ou templo: terra e mar.
Meus olhos deslumbrados com Açores

À vista: eu que sou Gonçalo Velho
Vivendo a glória extrema de chegar
Às tuas ilhas que direi de amores.

Manuel Alegre


Junto à água

Os homens temem as longas viagens,
os ladrões da estrada, as hospedarias,
e temem morrer em frios leitos
e ter sepultura em terra estranha.
Por isso os seus passos os levam
de regresso a casa, às veredas da infância,
ao velho portão em ruínas, à poeira
das primeiras, das únicas lágrimas.

Quantas vezes em
desolados quartos de hotel
esperei em vão que me batesses à porta,
voz de infância, que o teu silêncio me chamasse!

E perdi-vos para sempre entre prédios altos,
sonhos de beleza, e em ruas intermináveis,
e no meio das multidões dos aeroportos.
Agora só quero dormir um sono sem olhos

e sem escuridão, sob um telhado por fim.
À minha volta estilhaça-se
o meu rosto em infinitos espelhos
e desmoronam-se os meus retratos nas molduras.

Só quero um sítio onde pousar a cabeça.
Anoitece em todas as cidades do mundo,
acenderam-se as luzes de corredores sonâmbulos
onde o meu coração, falando, vagueia.

Manuel António Pina


Poetry reading

Tsvetan would moderate the event
I sat with Charles
in a little café, in silence, a bit
uneasy before a public reading
of our poems, which always seem
defenseless at such moments—you never know,
would listeners, if any came, be ready
to forget about themselves

And would we two ignite
that rivalry the ancients
so loftily called agon,
although it’s rarely noble
nowadays, in recent times
(and likely wasn’t even then)

We said nothing, glanced at our watches;
each lost in a different city,
a different childhood, a different family
Just then a speaker started playing
the songs of Billie Holiday—she sang
from immortality, without fear
But no, not quite, her fear was now
perfectly formed, refined

It’s January here, the wet snow falls
It muffles sounds and colors
It masks the imperfections
of yet another city, hides its pettiness—

Both of you are long since gone
I turn back to that moment years ago
not from nostalgia, but because
I’ve only now begun to see
that this was an instant of brotherhood
Silent brotherhood, which survives
in spite of all

As per the fixed program
and the accepted protocol
we stood before the small crowd
We started reading
and strength returned
and we became servants of poetry,
older than us and younger,
omnipotent and helpless

Adam Zagajewski
(tradução de Clare Cavanagh)


Outra vez

 https://www.youtube.com/watch?v=mwsOgtFkFtw

Você foi o maior dos meus casos
De todos os abraços, o que eu nunca esqueci
Você foi, dos amores que eu tive,
O mais complicado e o mais simples para mim
Você foi o melhor dos meus erros
A mais estranha história que alguém já escreveu
E é por essas e outras
Que a minha saudade faz lembrar de tudo
Outra vez

Você foi a mentira sincera
Brincadeira mais séria que me aconteceu
Você foi o caso mais antigo
E o amor mais amigo que me apareceu
Das lembranças que eu trago na vida,
Você é a saudade que eu gosto de ter
Só assim sinto você bem perto de mim
Outra vez

Esqueci de tentar te esquecer
Resolvi te querer por querer
Decidi te lembrar quantas vezes
Eu tenha vontade, sem nada a perder

Ah, você foi toda a felicidade
Você foi a maldade que só me fez bem
Você foi o melhor dos meus planos
E o maior dos enganos que eu pude fazer

Das lembranças que trago na vida
Você é a saudade que eu gosto de ter
Só assim sinto você bem perto de mim
Outra vez

Isolda


quarta-feira, 15 de novembro de 2023

Perto e longe

Tu
olhas para mim por um momento
olhas as nuvens por outro

Eu acho
que estás longe quando olhas para mim
e que estás perto quando olhas as nuvens

Gu Cheng


Arte poética

Não é fácil ser poeta a tempo inteiro.
Eu, por exemplo, nem cinco minutos
por dia, pois levanto-me tarde e primeiro
há que lavar os dentes, suportar os incisivos
à face do espelho, pentear a cabeça e depois,
a poeira que caminha, o massacre dos culpados,
assistir de olhos frios à refrega dos centauros.
E chegar à noite a casa para a prosa do jantar,
o estrondo das notícias, a louça por lavar.
Concluindo, só pelas duas da manhã
começo a despir o fato de macaco, a deixar
as imagens correr, simulacro do desastre.
Mas entretanto já é hora de dormir.
Mais um dia de estrume para roseira nenhuma.

José Miguel Silva


quinta-feira, 9 de novembro de 2023

[Quase no meu aniversário, suspendo a poesia por cinco linhas de outra coisa.]

Eu
queria mandar daqui um beijinho
só para aqueles que nos fazem sorrir
pra todos os que já não voltam mais
e todos os que ainda estão para vir

Olarilolé, olarilolei...

Pedro Mafama


As coisas que cessam

Tanto desprezo
pelo que é transitório e finito. Não servirei
senhor que possa morrer. Mas passamos
a vida a amar todas as fragilidades
das coisas que cessam. Há
coisa mais breve do que um sorriso?
Coisa mais curta que a alegria
de um reencontro? Tudo o que amamos
é passageiro e frágil ou
as duas coisas. Mas persegue-nos
a nostalgia do infindável
como uma tara hereditária.

Inês Lourenço


Amor à primeira vista

Ambos estão convencidos
que os uniu uma paixão súbita.
É bela esta certeza,
mas a incerteza mais bela ainda.
 
Julgam que por não se terem encontrado antes,
nada entre eles nunca ainda se passara.
E que diriam as ruas, as escadas, os corredores
onde se podem há muito ter cruzado. 

Gostaria de lhes perguntar
se não se lembram -
talvez nas portas giratórias,
um dia, face a face?
algum “desculpe” num grande aperto de gente?
uma voz de que “é engano” ao telefone?
- mas sei o que respondem.
Não, não se lembram.
 
Muito os admiraria
saber que desde há muito
se divertia com eles o acaso.
 
Ainda não completamente preparado
para se transformar em destino para eles,
aproximou-os e afastou-os,
barrou-lhes o caminho
e, abafando as gargalhadas,
lá seguiu saltando ao lado deles.

Houve marcas, sinais,
que importa se legíveis...
 
Haverá talvez três anos
ou terça-feira passada,
certa folhinha esvoaçante
de um braço a outro braço.
Algo que se perdeu e encontrou?
Quem sabe se já uma bola
nos silvados da infância?
 
Punhos de porta e campainhas
onde a seu tempo o toque
de uma mão tocou o outro toque.
As malas lado a lado no depósito.
Talvez acaso até mesmo um sonho
que logo o acordar desvaneceu.
 
Porque cada início
é só continuação,
e o livro das ocorrências
está sempre aberto ao meio.

Wislawa Szymborska


quinta-feira, 2 de novembro de 2023

O futuro

Isto vai meus amigos isto vai
um passo atrás são sempre dois em frente
e um povo verdadeiro não se trai
não quer gente mais gente que outra gente
Isto vai meus amigos isto vai
o que é preciso é ter sempre presente
que o presente é um tempo que se vai
e o futuro é o tempo resistente
Depois da tempestade há a bonança
que é verde como a cor que tem a esperança
quando a água de Abril sobre nós cai.
O que é preciso é termos confiança
se fizermos de maio a nossa lança
isto vai meus amigos isto vai.

Ary dos Santos


Receita para fazer um herói

Tome-se um homem,
Feito de nada, como nós,
E em tamanho natural.
Embeba-se-lhe a carne,
Lentamente,
Duma certeza aguda, irracional,
Intensa como o ódio ou como a fome.
Depois, perto do fim,
Agite-se um pendão
E toque-se um clarim.

Serve-se morto.


Reinaldo Ferreira


quinta-feira, 19 de outubro de 2023

Escolha

Entre vento e navalha escolho o vento
entre verde e vermelho aquele azul
que até na morte servirá de espelho
ao vento que por dentro me deslumbra
Entre ventre e cipreste escolho o Sol
Entre as mãos que se dão a que se oculta
Entre o que nunca soube o que já sobra
Entre a relva um milímetro de bruma.

David Mourão-Ferreira


Che Guevara

Contra ti se ergueu a prudência dos inteligentes e o arrojo dos patetas
A indecisão dos complicados e o primarismo
Daqueles que confundem revolução com desforra
De poster em poster a tua imagem paira na sociedade de consumo
Como o Cristo em sangue paira no alheamento ordenado das igrejas
Porém
Em frente do teu rosto
Medita o adolescente à noite no seu quarto
Quando procura emergir de um mundo que apodrece

Sophia de Mello Breyner Andresen


segunda-feira, 9 de outubro de 2023

Corpo Iluminado, XII (Infinito presente)


Irrompe do teu corpo iluminado
Toda a luz de que o mundo sente a falta
Não a que mais reluz, só a mais alta
Só a que nos faz ver o outro lado

Do bosque, onde o futuro e o passado
Defrontam o presente que os assalta
Oh, combate indeciso a que nem falta
O sabor de saber-se ilimitado

Irrompe assim a luz entre os extremos
Da mesma renovada madrugada

E vibra cada instante um novo grito
Com essa luz do grito é que nós vemos
Que passado e futuro não são nada
Apenas o presente é infinito

David Mourão-Ferreira


sexta-feira, 4 de agosto de 2023

Eu peneiro o espírito e crivo o ritmo

Eu peneiro o espírito e crivo o ritmo
Do sangue no amor, o movimento para fora
O desabrigo completo. Peneiro os múltiplos
Sentidos da palavra que sopra a sua voz
Nos pulsos. Crivo a pulsação do canto
E encontro
O silêncio inigualável de quem escuta

Eis porque as minhas entranhas vibram de modo igual
Ao da cítara

Eu peneiro as entranhas e encontro a dor
De quem toca a cítara. A frágil raiz
De quem criva horas e horas a vida e encontra
A corda mais azul, a veia inesgotável
De quem ama
Encontro o silêncio nas entranhas de quem canta

Eis porque o amor vibra no espírito de quem criva

O músico incompleto peneira a ideia das formas
Eu sopro a água viva. Crivo
O sofrimento demorado do canto
Encontro o mistério
Da cítara

Daniel Faria


Estranho é o sono que não te devolve.

Estranho é o sono que não te devolve.
Como é estrangeiro o sossego
De quem não espera recado.
Essa sombra como é a alma
De quem já só por dentro se ilumina
E surpreende
E por fora é
Apenas peso de ser tarde. Como é
Amargo não poder guardar-te
Em chão mais próximo do coração.

Daniel Faria


quarta-feira, 26 de julho de 2023

Knowledge

Now that I know
That passion warms little
Of flesh in the mold,
And treasure is brittle,

I’ll lie here and learn
How, over their ground,
Trees make a long shadow
And a light sound.

Louise Bogan


Cidade dos desaparecidos

Muitas vezes não amei Lisboa,
não soube amá-la ao anoitecer
dos dias úteis, quando era gasta,
parada e suja, e nos autocarros
quase vazios viajava de luz acesa
a entranhada tristeza do mundo
que foi a minha primeira e mais
precoce intuição. Grande cidade
dos desaparecidos, eu não tive
tantas vezes a saúde de gostar
dos teus pequenos jardins
abandonados. Quando nos cafés
já iam desligando as máquinas
e do outro lado da linha ninguém
voltava jamais a responder
como eu queria, quantas vezes
não pude achar o sítio e o sossego
para esquecer e dormir? Mesmo assim,
eu não te fiz justiça, Lisboa, quando
me deixei de ti: eu não era exemplo,
eu sempre estranhei um pouco a cama
da vida.

Rui Pires Cabral


Sinéad

https://www.youtube.com/watch?v=XehuNQXdGCU

(...)
I had to let it happen, I had to change
Couldn't stay all my life down at heel
Looking out of the window, staying out of the sun
So I chose freedom, running around, trying everything new
But nothing impressed me at all
I never expected it to
(...)

Tim Rice


terça-feira, 20 de junho de 2023

Pátria, lugar de exílio

Neste ano de 1962
não como Hâzim Hikmet no avião de pedra
mas na minha cidade
livre de ir onde quiser
e no entanto prisioneiro
neste ano de 1962
exatamente
em Lisboa
Avenida de Roma número noventa e três
às três horas da tarde

Neste ano de 1962
encostado a uma esquina da estação do Rossio
esperando talvez a carta que não chega
um amor adolescente
meu Paris tão distante
minha África inútil
aqui mesmo
aqui de mãos nos bolsos e o coração cheio de amargura
cumprindo os pequenos ritos quotidianos
cigarro após o almoço
café com pouco açúcar
má-língua e literatura

Aqui mesmo a não sei quantos graus de latitude
e de enjoo crescente
solitário e agreste
invisível aos olhos dos que amo
ignorado por ti pequeno empregado de escritório preocupado
com um erro de contas
incapaz de dizer toda a minha ternura
operária de fábrica com três filhos famintos

Aqui mesmo envolto na placidez burguesa
higienicamente limpo e com os papéis em ordem
vestido de nylon dralon leacril
com acabamentos sanitized
e lugar marcado junto ao aparelho de TV
eu
enjoado de tudo e contemporizando com tudo
eu
peça oleada do mecanismo de trituração
eu
incapaz de suicídio descerrando um sorriso-gelosia
eu
apesar de tudo vivo apesar de tudo inquieto
eu
neste ano de 1962
exatamente
não ontem mas precisamente às três horas da tarde
pela hora oficial
exilado na pátria

De ti sabes o nome
a hora exata o martelo no relógio
a escassa visão do tempo novo, a vida
sempre imatura e entanto desejada

De ti sabes a calma citadina
a distância entre a casa e o emprego o perfil
da amante
o sabor do café matinal
a maresia súbita.

De ti sabes a idade a altura o peso e o vigor
dos músculos a suave atração
da porta do cinema
a misteriosa voz lunar palavras soltas
gagarine vostok estação espacial

De ti sabes os sinais característicos
quando pode ser escrito medido registado
em fichas passaportes cartões de identidade.
Só não sabes da bala da pólvora da arma
só não sabes das mãos como as tuas plebeias
erradas mãos do povo
só não sabes do medo do ódio da terrível impotência.

Só não sabes da morte antes do tempo
exilado na pátria numa tarde de Maio.

Pergunto. poderia cantar de modo alheio
dizer outras palavras como quem diz bom dia
poderia acaso ignorar o tempo a tortura a prisão
Bernardino e a pequena rosa
vermelha e orvalhada
insólita no tablier do automóvel azul

Poderia falar dos dias impossíveis
das manhãs sem revolta. do xadrez matemático
jogado interminavelmente
das virgens, dos poentes, do mar da minha infância

Poderia escrever meu amor e pensá-lo
Sem mais nada. sem a rubra mancha de sangue na parede da cela
Sem um nome ou um grito

Daniel Filipe


Explicação

O pensamento é triste; o amor insuficiente;
e eu quero sempre mais do que vem nos milagres.
Deixo que a terra me sustente
guardo o resto para mais tarde.
Deus não fala comigo – e eu sei que me conhece.
A antigos ventos dei as lágrimas que tinha.
A estrela sobe, a estrela desce …
– espero a minha própria vinda.
(Navego pela memória
sem margens.
Alguém conta a minha história
E alguém mata os personagens.)

Cecília Meireles


segunda-feira, 22 de maio de 2023

Os primeiros encontros

cada momento passado juntos
era uma celebração, uma Epifania,
nós os dois sozinhos no mundo.
tu, tão audaz, mais leve que uma asa,
descias numa vertigem a escada
a dois e dois, arrastando-me
através de húmidos lilases, aos teus domínios
do outro lado, passando o espelho.

Arsenii Tarkovskii


Desobediência

Não me exijam
que diga
o que não digo

não queiram
que escreva
o meu avesso

não ordenem
que eu acene
o que recuso

não esperem
que me cale
e obedeça

Maria Teresa Horta


terça-feira, 16 de maio de 2023

Que este amor não me cegue nem me siga

Que este amor não me cegue nem me siga.
E de mim mesma nunca se aperceba.
Que me exclua de estar sendo perseguida
E do tormento
De só por ele me saber estar sendo.

Que o olhar não se perca nas túlipas
Pois formas tão perfeitas de beleza
Vêm do fulgor das trevas.
E o meu Senhor habita o rutilante escuro
De um suposto de heras em alto muro.

Que este amor só me faça descontente
E farta de fadigas. E de fragilidades tantas
Eu me faça mais pequena. E diminuta e tenra
Como só soem ser aranhas e formigas.

Que este amor só me veja de partida.

Hilda Hilst


terça-feira, 9 de maio de 2023

quarta-feira, 3 de maio de 2023

O teu rosto não tem nome

O teu rosto não tem nome
a tua voz não tem som
o teu comboio não tem número
a tua viagem não tem horário
mas eu sei que virás
com aquele rosto
com aquela voz
naquele comboio
no fim da tua longa viagem.

Dacia Maraini


A propósito das estrelas

Não sei se me interessei pelo rapaz
por ele se interessar por estrelas
se me interessei por estrelas por me interessar
pelo rapaz hoje quando penso no rapaz
penso em estrelas e quando penso em estrelas
penso no rapaz como me parece
que me vou ocupar com as estrelas
até ao fim dos meus dias parece-me que
não vou deixar de me interessar pelo rapaz
até ao fim dos meus dias
nunca saberei se me interesso por estrelas
se me interesso por um rapaz que se interessa
por estrelas já não me lembro
se vi primeiro as estrelas
se vi primeiro o rapaz
se quando vi o rapaz vi as estrelas

Adília Lopes


Não inventes


Não venhas cá com merdas. Não inventes.
Não olhes nos meus olhos. Sai apenas.
E poupa-me aos discursos eloquentes
e às farsas do adeus. Não faças cenas.

Não digas que lamentas ou que a vida
às vezes é assim: que tudo esquece;
que o mundo e o tempo curam qualquer ferida.
Repito, meu amor: desaparece.

E leva o que quiseres de tudo quanto
um dia suspeitámos partilhar:
os livros, as esculturas em pau-santo,
os discos, os retratos, o bilhar.

Não deixes endereços. Por favor:
eu quero é que te fodas, meu amor.

José Carlos Barros/Duarte


quinta-feira, 27 de abril de 2023

Wish you were here

https://www.youtube.com/watch?v=IXdNnw99-Ic 

So, so you think you can tell
Heaven from hell?
Blue skies from pain?
Can you tell a green field
From a cold steel rail?
A smile from a veil?
Do you think you can tell?

Did they get you to trade
Your heroes for ghosts?
Hot ashes for trees?
Hot air for a cool breeze?
Cold comfort for change?
Did you exchange
A walk on part in the war
For a lead role in a cage?

How I wish
How I wish you were here
We're just two lost souls
Swimming in a fish bowl year after year
Running over the same old ground
What have we found?
The same old fears
Wish you were here

David Gilmour e Roger Waters


Anti-Ricardo Reis

O rio
é bom
para nadar
e as flores
para dar
o resto
são cantigas
casa-te com Lídia
tem bebés
passa a lua-de-mel
na Grécia

Adília Lopes


Ausência

Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.

Carlos Drummond de Andrade


quarta-feira, 26 de abril de 2023

Elegia em forma de epístola

A circunstância de sermos homem e mulher
presos por uma aliança tácita
e secreta
do sangue
é que nos prende à vida, meu amor, e nos salva.
Nascemos sem
passaporte,
entre fronteiras
guardadas por sentinelas de sal e de silêncio.
O rio da história
corre, estrangulado, entre as pedras,
e o cascalho, e os detritos humanos,
e a alegria suicida das coisas limpas e puras
abandonadas e soltas à vertigem da morte.
Construímos
para nossa defesa
um muro de ironia e de sarcasmo
– imponderável cortina de
humana ternura envergonhada
ou, como tu dizes, perseguida.
O silêncio
é a corda
que nos prende aos mastros,
a antena vegetal por onde
a vida se insinua,
universal e atenta.
Marinheiros
duma pátria
ancorada no tempo,
bebemos o sal dos minutos que passam
e adormecemos, hirtos, de costas para o mar.

Albano Martins


quinta-feira, 20 de abril de 2023

Abril

 




Olha-me de novo. Com menos altivez

Se te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo.
Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água
Desejasse

Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem.

Te olhei. E há um tempo
Entendo que sou terra. Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta

Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento.

Hilda Hilst


A tolerância exige a reciprocidade

«Tenho tão presente
a grande dor.» (Camões)

Um celerado pénis um torso
a clavícula parva de argumento,
nele o monopólio não intimava,
voga numa carapaça de trégua e linho
fluvial, em brejo de polimento.
Inculcaria turgidez a um impotente.

Melros em voo rasante.
A ilharga na polpa de cada dedo.
O meu rancor prega nele uma herança
de alevanto. Um adeus insensato
no índice da ternura.

Joaquim Manuel Magalhães


domingo, 16 de abril de 2023

A cadência dos bichinhos de conta

os bichinhos do ouvido
fazem de conta que escutam
o que os bichinhos de conta
fazem de conta que contam

assim tudo corre bem
para uns e para outros
nem uns dizem que são mudos
nem os outros que são moucos

Alberto Pimenta


As palavras aproximam

As palavras aproximam:

prendem-soltam
são montanhas de espuma
que se faz-desfaz
na areia da fala

Soltam freios
abrem clareiras no medo
fazem pausa na aflição

Ou então não:
matam
afogam
separam definitivamente

Amando muito muito
ficamos sem palavras

Ana Hatherly


quarta-feira, 5 de abril de 2023

(para Carmen Silvia Presotto)

A matemática da morte traz
dias absurdos onde as horas
se afundam no grito rouco das ervas.

Talvez por isso esta escrita ferida
sobre ti que um dia viraste
as costas ao seu halo medonho.

Claramente era um sonho teu
reconstruir a sombra da tua casa para todos
um vislumbre delirante
mesmo que a cada dia
se deteriorasse o reboco das tuas paredes
assim dizia eu.

As casas são mistérios para os outros
e cometemos o erro de atribuir
palavras à própria ignorância.

E só agora compreendi
pela pedra da infinitude do teu silêncio
as tuas mãos louvadas
pelas manhãs limpas.

Cego
não vi que partiste os espelhos mais impuros
esse caminho fulgurante para o amor.

Eu sujo sem luz
e sem piedade.

António Amaral Tavares


Começo

Vejo-te um pouco como se já não houvesse
uma casa para nós. As grandes perguntas estão aí
por todo o lado, onde quer que se respire, dentro
dos próprios frutos. É o começo da noite
e os cinzeiros já estão cheios de meias palavras:
porque escolhemos tão pouco
aquilo que nos pertence?
Vejo-te de olhos fechados enquanto me confiavas
a tua história – à mesa da cozinha, quase um espelho,
quase uma razão. As minhas canções preferidas
pareciam convergir para ti a certa altura, dir-se-ia
que te vestias com elas. E no entanto
como se apressaram as grandes florestas a invadir
as gavetas, como misturaram as raízes
no eco que fazia o teu desejo contra mim.

Rui Pires Cabral


sábado, 1 de abril de 2023

Room with a view a sul, março de 2023

 


Não fora o mar

Não fora o mar,
e eu seria feliz na minha rua,
neste primeiro andar da minha casa
a ver, de dia, o sol, de noite a lua,
calada, quieta, sem um golpe de asa.

Não fora o mar,
e seriam contados os meus passos,
tantos para viver, para morrer,
tantos os movimentos dos meus braços,
pequena angústia, pequeno prazer.

Não fora o mar,
e os seus sonhos seriam sem violência
como irisadas bolas de sabão,
efémero cristal, branca aparência,
e o resto — pingos de água em minha mão.

Não fora o mar,
e este cruel desejo de aventura
seria vaga música ao sol pôr
nem sequer brasa viva, queimadura,
pouco mais que o perfume duma flor.

Não fora o mar
e o longo apelo, o canto da sereia,
apenas ilusão, miragem,
breve canção, passo breve na areia,
desejo balbuciante de viagem. 

Não fora o mar
e, resignada, em vez de olhar os astros
tudo o que é alto, inacessível, fundo,
cimos, castelos, torres, nuvens, mastros,
iria de olhos baixos pelo mundo.

Não fora o mar
e o meu canto seria flor e mel,
asa de borboleta, rouxinol,
e não rude halali, garra cruel,
Águia Real que desafia o sol.

Não fora o mar
e este potro selvagem, sem arção,
crinas ao vento, com arreio,
meu altivo, indomável coração,

Não fora o mar
e comeria à mão,
não fora o mar
e aceitaria o freio.

Fernanda de Castro



A estrada branca

Atravessei contigo a minuciosa tarde
deste-me a tua mão, a vida parecia
difícil de estabelecer
acima do muro alto

folhas tremiam
ao invisível peso mais forte

Podia morrer por uma só dessas coisas
que trazemos sem que possam ser ditas:
astros cruzam-se numa velocidade que apavora
inamoviveis glaciares por fim se deslocam
e na única forma que tem de acompanhar-te
o meu coração bate

José Tolentino de Mendonça


terça-feira, 14 de março de 2023

Amor

Amor, então,
também, acaba?
Não, que eu saiba.
O que eu sei
é que se transforma
numa matéria-prima
que a vida se encarrega
de transformar em raiva.
Ou em rima.

Paulo Leminski


domingo, 12 de março de 2023

Lusco-fusco em Praga, janeiro de 2023


 

Às vezes

Às vezes
perigosamente
as veias coagulam
Não percebem:
viver é uma hemorragia calculada

Ana Hatherly


Obra-prima

                               Para a minha Lorena


quando eu me for embora
há de haver um livro que, no meio,
tenha uma palavra que te dê um beijo.

Emanuel Jorge Botelho


Não entres como turista no coração de uma mulher

Não entres como turista no coração de uma mulher
a bater fotos
a deixar latas de cerveja
buscando só imensas catedrais
e estátuas transparentes

com a mochila cheia de mapas
e fazendo refeições ligeiras

há um país
sete cidades
uma cordilheira e um inverno
no coração duma mulher

não bebas aí só um copo de mar

não entres no avião
toma o comboio da meia-lua
não reveles ali tuas fotos na hora

se não fizer muito frio
entra nu

não leves chapéu-de-chuva
e sobretudo não cortes árvores
no coração duma mulher
não costumam voltar a crescer.

José María Zonta


sábado, 4 de março de 2023

Rifão quotidiano

Uma nêspera
Estava na cama
Deitada
Muito calada
A ver
O que acontecia

Chegou uma Velha
E disse
Olha uma nêspera
E zás comeu-a

É o que acontece
Às nêsperas
Que ficam deitadas
Caladas
A esperar
O que acontece.

Mário-Henrique Leiria


domingo, 26 de fevereiro de 2023

Não deites fora as cartas de amor

Elas não te abandonarão.
Passará o tempo, apagar-se-á o desejo
– essa flecha de sombra –
e os rostos sensuais, inteligentes, belíssimos
ocultar-se-ão em ti, no fundo de um espelho.
Cairão os anos. Cansar-te-ão os livros.
Decairás ainda mais
e perderás até a poesia.
O ruído frio da cidade nos vidros
acabará por ser a tua única música,
e as cartas de amor que tiveres guardado
serão a tua última literatura.

Joan Margarit
(trad. de Miguel Filipe Mochila)


Título por haver

No meu poema ficaste
de pernas para
o ar
(mas também eu
já estive tantas vezes)

Por entre versos vejo-te as mãos
no chão
do meu poema
e os pés tocando o título
(a haver quando eu
quiser)

Enquanto o meu desejo assim serás:
incómodo estatuto:
preciso de escrever-te
do avesso
para te amar em excesso

Ana Luísa Amaral

Palácio de São Bento, 25 de fevereiro


 

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

Why shines does not always need to

Because today we did not leave this world,
We now embody a prominence within it,
Even amidst its indifference to our actions,
Whether they be noiseless or not.
After all, nonsense is its own type of silence,
Lasting as long as the snow on your
Tongue. You wonder why each evening
Must be filled with a turning away, eyes to the lines
Of the hardwood floor as if to regret the lack
Of movement in a single day, our callous hope
For another wish put to bed with the others in a slow
Single-file line. I used to be amazed at the weight
An ant could carry. I used to be surprised by
Survival. But now I know the mind can carry
Itself to the infinite power. Like the way snow
Covers trauma to the land below it, we only
Believe the narrative of what the eye can see.

Adam Clay


The stranger song

Ele quis dizer-te agarra
a noite e não pudeste
contentá-lo. Agora
é tarde. Cai uma nódoa
na parede, na camisa

do poema. És acossado
pelo fim que consentiste
e pela sombra da razão
que não tiveste. Olhas
em volta

e só não vês o que aí está
se não quiseres perder de vez
a ilusão de uma saída.
Nos arredores, a luz
é torpe, o verso

inquina. Não há
comboio a estas horas
que te leve ao outro lado
onde te espera, por engano,
a tua vida.

Rui Pires Cabral


Paciência


Mesmo quando tudo pede um pouco mais
de calma
Até quando o corpo pede um pouco mais
de alma
A vida não para

Enquanto o tempo acelera e pede pressa
Eu me recuso, faço hora, vou na valsa
A vida é tão rara

Enquanto todo mundo espera a cura
do mal
E a loucura finge que isso tudo
é normal
Eu finjo ter paciência

E o mundo vai girando cada vez mais veloz
A gente espera do mundo 
e o mundo espera de nós
Um pouco mais de paciência

Será que é o tempo que lhe falta para perceber?
Será que temos esse tempo para perder?
E quem quer saber?
A vida é tão rara, tão rara

Mesmo quando tudo pede um pouco mais
de calma
Até quando o corpo pede um pouco mais
de alma
Eu sei, a vida não para
A vida não para, não

Lenine


Da falta que me fazes

São de nada
tempestades
ante a falta
que me fazes

David Mourão-Ferreira


sábado, 4 de fevereiro de 2023

Belvedere, Viena, dezembro de 2022

 




Amor à primeira vista

Ambos estão convencidos
que os uniu uma paixão súbita.
É bela esta certeza,
mas a incerteza mais bela ainda.
 
Julgam que por não se terem encontrado antes,
nada entre eles nunca ainda se passara.
E que diriam as ruas, as escadas, os corredores
onde se podem há muito ter cruzado. 

Gostaria de lhes perguntar
se não se lembram -
talvez nas portas giratórias,
um dia, face a face?
algum “desculpe” num grande aperto de gente?
uma voz de que “é engano” ao telefone?
- mas sei o que respondem.
Não, não se lembram.
 
Muito os admiraria
saber que desde há muito
se divertia com eles o acaso.
 
Ainda não completamente preparado
para se transformar em destino para eles,
aproximou-os e afastou-os,
barrou-lhes o caminho
e, abafando as gargalhadas,
lá seguiu saltando ao lado deles.

Houve marcas, sinais,
que importa se legíveis.
 
Haverá talvez três anos
ou terça-feira passada,
certa folhinha esvoaçante
de um braço a outro braço.
Algo que se perdeu e encontrou?
Quem sabe se já uma bola
nos silvados da infância?
 
Punhos de porta e campainhas
onde a seu tempo o toque
de uma mão tocou o outro toque.
As malas lado a lado no depósito.
Talvez acaso até mesmo um sonho
que logo o acordar desvaneceu.
 
Porque cada início
é só continuação,
e o livro das ocorrências
está sempre aberto ao meio.
 
Wislawa Szymborska
(tradução de Júlio Sousa Costa)


Breve

Esta manhã comecei a esquecer-me de ti.
Acordei mais cedo que nos outros dias
e com o mesmo sono.
A tua boca dizia-me “bom dia” mas não:
não o teu corpo todo como nos outros dias.
As sombras por aqui são lentas e hoje não
comprei o jornal: o mundo que se ocupe da
sua própria melancolia.
ontem. há uma semana. há muitos meses.
um ano ensina ao coração o novo ofício:
a vida toda eu hei de esquecer-me de ti.

Rui Costa


domingo, 29 de janeiro de 2023

Savage daughter

https://www.youtube.com/watch?v=wiRnVmR6fJQ 

I am my mother's savage daughter
The one who runs barefoot cursing sharp stones
I am my mother's savage daughter
I will not cut my hair
I will not lower my voice


My mother's child is a savage
She looks for her omens in the colors of stones
In the faces of cats, in the fall of feathers
In the dancing of fire and the curve of old bones

My mother's child dances in darkness
And sings heathen songs by the light of the Moon
And watches the stars and renames the planets
And dreams she can reach them with a song and a broom

We all are brought forth out of darkness
Brought into this world through blood and through pain
And deep in our bones, the old songs are wakening
So sing them with voices of thunder and rain

Wyndreth Berginsdottin


terça-feira, 24 de janeiro de 2023

A poesia não vai à missa

A poesia não vai à missa,
não obedece ao sino da paróquia,
prefere atiçar os seus cães
às pernas de deus e dos cobradores
de impostos.
Língua de fogo do não,
caminho estreito
e surdo da abdicação, a poesia
é uma espécie de animal
no escuro recusando a mão
que o chama.
Animal solitário, às vezes
irónico, às vezes amável,
quase sempre paciente e sem piedade.
A poesia adora
andar descalça nas areias do Verão.

Eugénio de Andrade


Quando aqui não estás

Quando aqui não estás
o que nos rodeou põe-se a morrer
a janela que abre para o mar
continua fechada só nos sonhos
me ergo
abro-a
deixo a frescura e a força da manhã
escorrem pelos dedos prisioneiros
da tristeza
acordo
para a cegante claridade das ondas
um rosto desenvolve-se nítido
além
rasando o sal da imensa ausência
uma voz
quero morrer
com uma overdose de beleza
e num sussurro o corpo apaziguado
perscruta esse coração
esse
solitário caçador

Al Berto


(...)

A rapariga que esperava muito
as cartas do namorado
que lhe escrevia muito pouco
casou-se com o carteiro

Adília Lopes


quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

(...)

Foi longa e fastidienta a viagem, mas chegámos a tempo de ouvir ainda, no coração quente do outono, as cigarras a cantar no cimo das oliveiras e ver na encosta dos montes os asfódelos em flor. Estávamos na Grécia, não havia dúvida. Apesar de o turismo ter transformado a mais sagrada das terras numa feira perpétua e reles, uma ou outra coisa resistia à peste: os cardos de Epidauro, as cigarras da Arcádia, os asfódelos de Egina. Algumas coisas mais: a luz sem peso das colunas, o azul espesso do golfo de Corinto. Ε Akrator, o pastor de Meteora. Entre os rochedos a prumo, assobiava às cabras, guiando-as com olhar sábio para os tufos de ervas que iam, sabe-se lá como, rompendo da rocha.

Eugénio de Andrade


terça-feira, 17 de janeiro de 2023

La maza


Si no creyera en la locura
De la garganta del sinsonte
Si no creyera que en el monte
Se esconde el trino y la pavura

Si no creyera en la balanza
En la razón del equilibrio
Si no creyera en el delirio
Si no creyera en la esperanza

Si no creyera en lo que agencio
Si no creyera en mi camino
Si no creyera en mi sonido
Si no creyera en mi silencio

Qué cosa fuera
Qué cosa fuera, la maza sin cantera
Un amasijo hecho de cuerdas y tendones
Un revoltijo de carne con madera

Un instrumento sin mejores resplandores
Que lucecitas montadas para escena
Qué cosa fuera, corazón, qué cosa fuera
Qué cosa fuera la maza sin cantera

Un testaferro del traidor de los aplausos
Un servidor de pasado en copa nueva
Un eternizador de dioses del ocaso
Júbilo hervido con trapo y lentejuela

Qué cosa fuera, corazón, que cosa fuera
Qué cosa fuera la maza sin cantera
Qué cosa fuera, corazón, que cosa fuera
Qué cosa fuera la maza sin cantera

Si no creyera en lo más duro
Si no creyera en el deseo
Si no creyera en lo que creo
Si no creyera en algo puro

Si no creyera en cada herida
Si no creyera en la que ronde
Si no creyera en lo que esconde
Hacerse hermano de la vida

Si no creyera en quien me escucha
Si no creyera en lo que duele
Si no creyera en lo que quede
Si no creyera... en lo que lucha!

Silvio Rodriguez Dominguez

Halkidiki

 


Escuta

Escuta, escuta: tenho ainda
uma coisa a dizer.
Não é importante, eu sei, não vai
salvar o mundo, não mudará
a vida de ninguém — mas quem
é hoje capaz de salvar o mundo
ou apenas mudar o sentido
da vida de alguém?
Escuta-me, não te demoro.
É coisa pouca, como a chuvinha
que vem vindo devagar.
São três, quatro palavras, pouco
mais. Palavras que te quero confiar.
Para que não se extinga o seu lume,
o seu lume breve.
Palavras que muito amei,
que talvez ame ainda.
Elas são a casa, o sal da língua.

Eugénio de Andrade


quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

Mulher de preto

Ela vinha de preto mas trazia
a noite pendurada no vestido.
Porém não era luto era alegria
ou a cor do pecado anoitecido
ou talvez fosse a lua que nascia
na parte do seu rosto mais escondido.
Ela vinha de preto e resplandecia
porque era a própria noite que a vestia.

Manuel Alegre


ars poetica

Os pequenos incidentes dos dias
não são mais do que dobras e vincos.
poema a poema, passo a alma a ferro.

João de Mancelos


Creio nos anjos que andam pelo mundo

Creio nos anjos que andam pelo mundo,
Creio na deusa com olhos de diamantes,
Creio em amores lunares com piano ao fundo,
Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes;

Creio num engenho que falta mais fecundo
De harmonizar as partes dissonantes,
Creio que tudo é eterno num segundo,
Creio num céu futuro que houve dantes,

Creio nos deuses de um astral mais puro,
Na flor humilde que se encosta ao muro,
Creio na carne que enfeitiça o além,

Creio no incrível, nas coisas assombrosas,
Na ocupação do mundo pelas rosas,
Creio que o amor tem asas de ouro. amém.

Natália Correia


Amor e seu tempo

Amor é privilégio de maduros
Estendidos na mais estreita cama,
Que se torna a mais larga e mais relvosa,
Roçando, em cada poro, o céu do corpo.

É isto, amor: o ganho não previsto,
O prêmio subterrâneo e coruscante,
Leitura de relâmpago cifrado,
Que, decifrado, nada mais existe.

Valendo a pena e o preço do terrestre,
Salvo o minuto de ouro no relógio
Minúsculo, vibrando no crepúsculo.

Amor é o que se aprende no limite,
Depois de se arquivar toda a ciência
Herdada, ouvida. Amor começa tarde.

Carlos Drummond de Andrade


Remedia Amoris

Foi uma péssima ideia a de voltarmos a ver-nos. Não fizemos mais do que trocar insultos e culpar-nos de velhas e sórdidas histórias. Depois ...