sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

Canção dos maridos: o último marido

O primeiro marido possuía um belo nariz
estendia a roupa de forma conscienciosa
tinha um emprego com descontos incluídos
era especialista em carne de porco à jardineira
o segundo marido falava
para cima de cinco línguas
sendo poeta passeava ao longo da linha da praia com alguma frequência
comparava-me a estalactites pirites e outras obras imensas
o terceiro levava-me o pequeno almoço à cama
apanhava a roupa suja com os próprios dedos
perguntava-me se era feliz
o quarto marido analisava a minha vida passada
perscrutava vigorosamente erros cometidos
examinava fotografias antigas
constatava que o meu rosto não ia na melhor direção
já o quinto gostava de sardinhas, caça submarina,
nadava horas debaixo do mar
tinha a pele tostada do sol e olhar azul
o sexto passou mais depressa que um fogo fátuo nem me apercebi das suas
características
guardo um cantinho com ternura por essa estrela fugidia
que não cheguei devidamente a conhecer
depois disto fiz-me ao campo
estava a ficar velha e pensei que as plantas altas e rudes me aceitariam
sem fazer perguntas
levava comigo uma faca do mato para o desbravar
e embrenhei-me no coração da terra
por assim dizer.
Foi então que o vi:
ao cortar os pés dos bambus:
atrás dos bambus:
um raposo vestido de fato e chapéu
remexendo as folhas com uma elegante bengala
olhando para mim com olhos brilhantes de troça.

Sara Monteiro


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