sábado, 29 de fevereiro de 2020
Preciso de escrever-te do avesso para te amar em excesso
Há pessoas que conseguem virar uma ideia do avesso, tirar dela o melhor, revirar as golas ao texto, fazer-lhe bainhas, retirar os excessos, ajustar ao corpo, e pode ser um corte preciso, umas pinças, e, depois, dão-lhe um jeito para que fique graciosa a composição, um viés, uns godés, uns machos, umas aplicações singelas mas oportunas, um ar da sua graça, uma leveza.
Fica assim o palavreado com alma - uma música, uma luz, qualquer coisa muito próxima da origem, da raiz, da seiva, do sangue, da respiração.
São os poetas. Artistas, artífices, profetas, sibilas.
Abençoados poetas. Abençoadas pessoas.
Fica assim o palavreado com alma - uma música, uma luz, qualquer coisa muito próxima da origem, da raiz, da seiva, do sangue, da respiração.
São os poetas. Artistas, artífices, profetas, sibilas.
Abençoados poetas. Abençoadas pessoas.
Ana Luísa Amaral
A bela do bairro
muito puta que era sempre à espera
dos pagantes à janela do rés-do-chão
mas eu teso e pior que isso néscio desses amores
tenho o quê? Quinze anos
tenho o quê uns olhos com que a vejo
que se debruçava mostrando os peitos
que a amei como se ama unicamente
uma vez um colo branco e até as jóias
que ela punha eram luzentes semelhando estrelas
eu bato o passeio à hora certa e amo-a
de cabelo solto e tudo não parece
senão o céu afinal um pechisbeque
ainda agora as minhas narinas fremem
turva-se o coração desmantelado
amando-a amei-a tanto e sem vergonha
oh pecar assim de jaquetão sport e um cigarro
nos queixos a admiração que eu fazia
entre a malta não é para esquecer nem lá ao fundo
como então puxo as abas da farpela
lentamente caminho para ela
a chuva cai miúda
e benza-a Deus que bonita e que puta
e que desvelos a gente
gastava em frente do amor
Fernando Assis Pacheco
Não sei que horas são no teu relógio
Não sei que horas são no teu relógio.
No meu é cedo/tarde - está paradovai fazer uns vinte anos. Não importa,
pois as coisas vão e vêm, e de novo
se levanta o mês de Março nesta era
da ironia, com seus truques estafados
e promessas desfolhantes. Juntamente,
tudo passa e tudo volta, mas diverso.
Só por isso, justamente, tem piada
estar aqui, abrir os olhos, conferir
ainda e sempre, na vitrina da manhã,
a produção da Primavera.
José Miguel Silva
terça-feira, 25 de fevereiro de 2020
Domingo de manhã
Quantos homens
se apaixonam por ti ao sábado à tarde
se apaixonam por ti ao sábado à tarde
enquanto passeiam os filhos
no parque
e se distraem
do balanço
do baloiço
na adivinhação
das partes do corpo
que trazes tapadas
no parque
e se distraem
do balanço
do baloiço
na adivinhação
das partes do corpo
que trazes tapadas
Mal sabem que a tua solidão
não se preenche
com a desventura erótica
de um corpo
que te cubra
sem consolo
Não há falta
de quem se deite
contigo
sábado à noite
apenas quem acorde
ao teu lado
domingo de manhã
não se preenche
com a desventura erótica
de um corpo
que te cubra
sem consolo
Não há falta
de quem se deite
contigo
sábado à noite
apenas quem acorde
ao teu lado
domingo de manhã
Manuel Halpern
sábado, 22 de fevereiro de 2020
O que mais amo
Não sou capaz de estranhas paixões
e amo, como muitos, o vento forte
que agita a roupa estendida nas cordas,
as bicicletas ferrugentas
de pneus furados
esquecidas em garagens e arrecadações,
a água fresca que mata a sede
ao mais miserável dos homens.
Mas se, como outros, amo os dias de intensa luz
e o descuido dos pássaros no ar,
ninguém ama como eu
as estrias do teu ventre,
a primeira casa de dois filhos.
de todas as coisas prodigiosas que conheço
são elas o que mais se parece
com os rasgos abertos por um arado
na terra crua deste mundo.
Luís Filipe Parrado
e amo, como muitos, o vento forte
que agita a roupa estendida nas cordas,
as bicicletas ferrugentas
de pneus furados
esquecidas em garagens e arrecadações,
a água fresca que mata a sede
ao mais miserável dos homens.
Mas se, como outros, amo os dias de intensa luz
e o descuido dos pássaros no ar,
ninguém ama como eu
as estrias do teu ventre,
a primeira casa de dois filhos.
de todas as coisas prodigiosas que conheço
são elas o que mais se parece
com os rasgos abertos por um arado
na terra crua deste mundo.
Luís Filipe Parrado
domingo, 16 de fevereiro de 2020
He got nothing from her
He got nothing from her.
She got nothing from him,
nothing but cold air from
either of them.
Theirs was not the best
start in the harsh
light of the morning.
As reality crept around
The cracks in her curtains,
strangers arising,
false memories
pre-dawning, quickly
vertical and yawning
He picked up his adultery
from her hard
bedroom floor
the morning after the
night before
while She
kicked into the corner
behind the door the
little respect she found
left with her drawers
her chin to her chest
exagerating his flaws
feel under her thighs
squeezing tight her
black eyes, while
he tried desperately to
find the right words
with his shirt
She sat rigid in their
dirt. They were both
late for work
On the wall, literary grafiti, unknown
sábado, 15 de fevereiro de 2020
Ah, falemos da brisa
Eu dizia:«Nenhuma brisa é triste»,
e procurava água, lábios,
um corpo
onde a solidão fosse impossível.
Mas quem sabe dessa música
cativa nos meus dedos?
E depois, como guardar um beijo,
mar doirado ou sombra
desolada?
Recordava um rio,
álamos,
o sabor nupcial da chuva,
tropeçava em lágrimas e soluços
e lágrimas, e procurava.
Como quem se despe
para amar a madrugada nas areias,
eu dizia: «Nenhuma brisa é triste,
triste», e procurava.
E procurava.
Eugénio de Andrade
e procurava água, lábios,
um corpo
onde a solidão fosse impossível.
Mas quem sabe dessa música
cativa nos meus dedos?
E depois, como guardar um beijo,
mar doirado ou sombra
desolada?
Recordava um rio,
álamos,
o sabor nupcial da chuva,
tropeçava em lágrimas e soluços
e lágrimas, e procurava.
Como quem se despe
para amar a madrugada nas areias,
eu dizia: «Nenhuma brisa é triste,
triste», e procurava.
E procurava.
Eugénio de Andrade
quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020
Traduzir-se
Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.
Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.
Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.
Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.
Traduzir-se uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?
Ferreira Gullar
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.
Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.
Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.
Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.
Traduzir-se uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?
Ferreira Gullar
terça-feira, 11 de fevereiro de 2020
Tudo pode tentar-me
Tudo pode tentar-me a que me afaste deste ofício do verso:
Outrora foi o rosto de uma mulher, ou pior -
As aparentes exigências do meu país regido por tolos;
Agora nada melhor vem à minha mão
Do que este trabalho habitual. Quando jovem,
Não daria um centavo por uma canção
Que o poeta não cantasse de tal maneira
Que parecesse ter uma espada nos seus aposentos;
Mas hoje seria, cumprido fosse o meu desejo,
Mais frio e mudo que um peixe.
W. B. Yeats
Outrora foi o rosto de uma mulher, ou pior -
As aparentes exigências do meu país regido por tolos;
Agora nada melhor vem à minha mão
Do que este trabalho habitual. Quando jovem,
Não daria um centavo por uma canção
Que o poeta não cantasse de tal maneira
Que parecesse ter uma espada nos seus aposentos;
Mas hoje seria, cumprido fosse o meu desejo,
Mais frio e mudo que um peixe.
W. B. Yeats
sábado, 8 de fevereiro de 2020
Sento-me na tua ternura
Sento-me na tua ternura. A chuva cai,
olhas-me tão fundo que de repente
sou de vidro, cuidado, vou quebrar!
Acaba triste o mês de Maio, perto.
E estás no Maio triste, na chuva e no vento,
a tua ternura quer matar-me.
Quem sabe, amor, onde o amor se fere?
Fernando Assis Pacheco
quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020
Fixa um ponto na parede
Fixa um ponto na parede e foge para lá ou fecha os olhos e foge para dentro.
André Tecedeiro
domingo, 2 de fevereiro de 2020
Tríptico
Nem a água corrente torna ao seu manancial
nem a flor desprendida da haste
volta jamais à árvore que a deixou cair.
Li Tai Po
(versão de Pedro da Silveira)
nem a flor desprendida da haste
volta jamais à árvore que a deixou cair.
Li Tai Po
(versão de Pedro da Silveira)
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