quarta-feira, 31 de março de 2021

Epitáfio de domingo


Se eu desaparecer hoje

E falo mesmo do meu corpo aqui tão sentado

a escrever desde a ponta da língua

à légua mais distante da minha vida,

diz que compreendi.


Diz que sei que nada está onde é certo estar

Que o amor súbito é a escada para o entendimento

Diz que fui ar azul sobre campos de secura

estrada recta ao infinito,

um acidente ao longe

Que provei toda a sede quando engoli os homens

Que queimei alegremente no ácido das palavras

Que tombei em ricochete para que me vissem

e que, quando me viram, me ergui animal


Diz que me viste nua, sempre

Que corri por hospícios de olhos fechados

e a boca às avessas

Que vivi mais ao alto do que em mundo plano

e fui honesta na minha rente loucura


Diz que nunca esqueci a subida a um plátano

Que ninguém viveu no meu lugar, nem eu, no de ninguém

Que fui o halo frio que preenchi com esta pena

Pela minha ausência

E que tudo o que disse foi com silêncio


Diz que sei, sobretudo, que ardemos juntos como ventosas,

Que o teu corpo me serviu de andar às pernas asmáticas

Que te agradeço ter-te oferecido lírios

Que me reduziste o nojo da espécie

Diz que eu fui eu


Guarda-me este segredo que tenho largo por baixo dos cabelos:

- quanto em mim fui que não vivi

quanto em ti é que fui eu?


Mas não te preocupes, não desapareço hoje

Quando me conheceste já eu não existia

e tu sabes

que essas saudades que vais tendo

são as minhas.


Cláudia R. Sampaio


terça-feira, 30 de março de 2021

Diamonds and rust

https://www.youtube.com/watch?v=uTmO6QNTGk4 


 


Os meus olhos estavam dispostos a conhecer-te

Os meus olhos estavam dispostos a conhecer-te, e o meu coração
A amar-te. Fui teu imediatamente
Por inteiro, para sempre, teu
Honradamente, com pura intenção,
Com excessivo amor e alegre cuidado:
Assim fui, assim sou, assim serei.
Conheci a tua generosidade, a tua verdade, conheci-te
E aos piedosos companheiros: ouvi-te falar
Com adequadas palpitações. Sobre a corrente,
Profunda, rápida e clara, os lírios flutuavam; os peixes
Corriam através das sombras. Aí, tu e eu
Líamos a Bondade nos nossos olhos e assim nos unimos.

Robert Louis Stevenson


segunda-feira, 29 de março de 2021

Gîtâ

https://www.youtube.com/watch?v=PEeXPPqPfaw 


Estou sempre à espera do inesperado

Estou sempre à espera do inesperado. Assim, a dor não dói.

Mesmo quando dou a mão a alguém e esse alguém a morde.
Faço tudo para ser melhor que eu, ter uma vida intensa mesmo a dormir, 
separar o bom do bom e, com a parte que escolho, fazer melhor. 
Tudo é interessante, mesmo o que não
é interessante, e o interessante está nessa descoberta.
Esta coisa de ser mortal, de ser falível, é a minha afirmação e a minha doença. 
O que resta são paliativos e a sua busca.
Não sei mudar-me, não me quero mudar. Entre proscritos e idiotas, um proscrito. 
Odeio a subtileza dos idiotas.
Falo sempre para mim quando falo com os outros. E dos outros não falo.
Faço de conta. Para comermos todos juntos.
Como iguais.

Joaquim Pessoa


sexta-feira, 26 de março de 2021

Las ciudades

https://www.youtube.com/watch?v=6gqb3AEoq3o 

Te vi llegar
Y sentí la presencia de un ser desconocido.
Te vi llegar
Y sentí lo que nunca, jamás había sentido.
Te quisé amar
Y tu amor no era fuego, no era lumbre.
Las distancias apartan las ciudades,
Las ciudades destruyen las costumbres.
Te dije adiós
Y pediste que nunca, que nunca te olvidará.
Te dije adiós
Y sentí, de tu amor otra vez, otra vez la fuerza extraña.
Y mi alma completa se me lleno de frío
Y mi cuerpo entero se me cubrió de hielo
Y estuve a punto de cambiar tu mundo
De cambiar tu mundo...
Por el mundo mío...

(Jose A. Jimenez)


Inventário

Um dente d'ouro a rir dos panfletos
Um marido afinal ignorante
Dois corvos mesmo muito pretos
Um polícia que diz que garante

A costureira muito desgraçada
Uma máquina infernal de fazer fumo
Um professor que não sabe quase nada
Um colossalmente bom aluno

Um revolver já desiludido
Uma criança doida de alegria
Um imenso tempo perdido
Um adepto da simetria

Um conde que cora ao ser condecorado
Um homem que ri de tristeza
Um amante perdido encontrado
Um gafanhoto chamado surpresa

O desertor cantando no coreto
Um malandrão que vem pe-ante-pé
Um senhor vestidíssimo de preto
Um organista que perde a fé

Um sujeito enganando os amorosos
Um cachimbo cantando a marselhesa
Dois detidos de fato perigosos
Um instantinho de beleza

Um octogenário divertido
Um menino coleccionando estampas
Um congressista que diz Eu não prossigo
Uma velha que morre a páginas tantas

Alexandre O'Neill

quinta-feira, 25 de março de 2021

Medos

Medo do amor
quando tudo é fome.
E onde tudo é tão pouco,
medo de a carícia
despertar infinitos infernos.
Medo de sermos
só eu e tu
a humanidade.
E morrermos
de tanta eternidade.

Mia Couto


Pedaço de mim

https://www.youtube.com/watch?v=a-tOyjl6BO4 


Oh, pedaço de mim
Oh, metade afastada de mim
Leva o teu olhar
Que a saudade é o pior tormento
É pior do que o esquecimento
É pior do que se entrevar
Oh, pedaço de mim
Oh, metade exilada de mim
Leva os teus sinais
Que a saudade dói como um barco
Que aos poucos descreve um arco
E evita atracar no cais
Oh, pedaço de mim
Oh, metade arrancada de mim
Leva o vulto teu
Que a saudade é o revés de um parto
A saudade é arrumar o quarto
Do filho que já morreu
Oh, pedaço de mim
Oh, metade amputada de mim
Leva o que há de ti
Que a saudade dói latejada
É assim como uma fisgada
No membro que já perdi
Oh, pedaço de mim
Oh, metade adorada de mim
Lava os olhos meus
Que a saudade é o pior castigo
E eu não quero levar comigo
A mortalha do amor
Adeus

Chico Buarque


domingo, 21 de março de 2021

Dia Mundial da Poesia




Num outro dia

Apetece-te morrer, rapariga,
mas vais varrer o chão.
Arrumas a roupa
que está nesse canto
e sorris a uma criança
porque às crianças
não se rouba o riso.
Apetece-te morrer, rapariga,
e ninguém sabe porquê,
mas tu sabes
(quem te dera não saber).
Apetece-te morrer,
mas escolhes os legumes para a sopa,
com cuidado,
e fazes uma sopa
realmente deliciosa.
Para ti, não tem sabor.
Onde está a velha alegria
de escolher legumes para a sopa?
Apetece-te morrer, rapariga,
mas caminhas à beira-mar
como se tudo te fosse estrangeiro
e tudo mudo e surdo
como se o canto das cores
para sempre tivesse parado
numa batida do teu coração.
Não podes abrir um livro.
Cada palavra
é uma guilhotina da alma.
Não podes ir buscar
as pequenas mortes,
essas mortes antigas
com que em tempos
foste buscar forças para viver.
Já as usaste todas.
Varrer o chão não está mau.
Tudo o que tenha a nulidade
do que é mecânico
não parece mau.
Mas sabes que partir
é a coisa mais suave.
Sabes que és um raio de luz.
Já experimentaste.
Estiveste lá e regressaste
e então porque não ir e não voltar?
Apetece-te morrer, rapariga,
mas vais estender a roupa.
Arranjas o teu cabelo
e pões pérolas nas orelhas.
Que lindas pérolas.
Onde estão as tuas lágrimas?
Esperas que num outro dia
a incandescência das árvores no esplendor
possa vir de novo
pegar fogo à tua alma
e, quem sabe, reduzi-la a cinzas.

Adriana Crespo


sexta-feira, 19 de março de 2021

Cem pontas por onde se pegue


 Enfim, vou cortar o cabelo, 

com a alegria de quem doma a desordem natural da vida. 


Tem os que passam

Tem os que passam
e tudo se passa
com passos já passados

tem os que partem
da pedra ao vidro
deixam tudo partido

e tem, ainda bem,
os que deixam
a vaga impressão
de ter ficado

Alice Ruiz


Encomenda

Desejo uma fotografia
como esta — o senhor vê? — como esta:
em que para sempre me ria
como um vestido de eterna festa.

Como tenho a testa sombria,
derrame luz na minha testa.
Deixe esta ruga, que me empresta
um certo ar de sabedoria.

Não meta fundos de floresta
nem de arbitrária fantasia...
Não... Neste espaço que ainda resta,
ponha uma cadeira vazia.

Cecília Meireles


sexta-feira, 12 de março de 2021

 

Monotonia


Começar, recomeçar, interminamente repetir um
monótono romance, o romance da minha vida.
Com palavras iguais, inalteráveis, semelhantes, in-
sistir sobre o cansaço e a pobreza disto de viver…
Andar como os dementes pêlos cantos e repisar
o que já ninguém quer ouvir.
Levar o meu desprecioso tempo à deriva.
Queixar-me, castigar e lamentar sem qualquer
esperança, por desfastio.
Pôr a nu uma miséria comum e conhecida, chã-
mente, serenamente, indiferente à beleza dos temas
e das conclusões.
Monotonamente, monotonamente.


Monotonia. Arte, vida…
Não serei ainda eu que te erigirei o merecido
altar.
Que te manejarei hábil e serena.
Monotonia! Gume frio, acerado, tenaz, eloquente.
Sino de poucos tons, impressionante.
Mas se te descobri não te vou renegar.
Tu ensinas-me, tu insinuas-me a arte da verdade,
a pobreza e a constância.
Monotonia, torna-me desinteressada.

Irene Lisboa


terça-feira, 9 de março de 2021

For women who are ‘difficult’ to love


You are a horse running alone

and he tries to tame you
compares you to an impossible highway
to a burning house
says you are blinding him
that he could never leave you
forget you
want anything but you
you dizzy him, you are unbearable
every woman before or after you
is doused in your name
you fill his mouth
his teeth ache with memory of taste
his body just a long shadow seeking yours
but you are always too intense
frightening in the way you want him
unashamed and sacrificial
he tells you that no man can live up to the one who
lives in your head
and you tried to change didn’t you?
closed your mouth more
tried to be softer
prettier
less volatile, less awake
but even when sleeping you could feel
him travelling away from you in his dreams
so what did you want to do love
split his head open?
you can’t make homes out of human beings
someone should have already told you that
and if he wants to leave
then let him leave
you are terrifying
and strange and beautiful
something not everyone knows how to love.

Warsan Shire


Quando se perde o sinal


À noite, num pequeno aeroporto,

vês um avião que está a descolar.
Vai-se perdendo o sinal.
Sem nenhuma piedade pelo que foste,
pois a piedade é demasiado efémera e
não há tempo para construir nada sobre ela,
convences-te de que vives,
embora sem esperanças, uma época
que é a mais feliz de tua vida.

Há uma outra poesia, haverá sempre,
como há outra música. A de Beethoven surdo.
Quando se perde o sinal.

Joan Margarit


sexta-feira, 5 de março de 2021

Canção de madrugar

https://www.youtube.com/watch?v=XEWIPaLf2I4 

De linho te vesti
De nardos te enfeitei
Amor que nunca vi
Mas sei...

Sei dos teus olhos acesos na noite
Sinais de bem despertar
Sei dos teus braços abertos a todos
Que morrem devagar
Sei meu amor inventado que um dia
Teu corpo pode acender
Uma fogueira de sol e de fúria
Que nos verá nascer

Irei beber em ti
O vinho que pisei
O fel do que sofri
E dei... dei...

Dei do meu corpo o chicote de força
Razei meus olhos com água
Dei do meu sangue uma espada de raiva
E uma lança de mágua
Dei do meu sonho uma corda de insónias
Cravei meus braços com setas
Descubri rosas alarguei cidades
E construi poetas
E nunca, nunca te encontrei
Na estrada do que fiz
Amor que não lucrei
Mas quis... quis... quis...

Sei meu amor inventado que um dia
Teu corpo há-de acender
Uma fogueira de sol e de fúria
Que nos verá nascer

Então nem choros, nem medos, nem uivos, nem gritos, nem...
Pedras, nem facas, nem fomes, nem secas, nem...
Feras, nem ferros, nem farpas, nem farças, nem...
Forcas, nem gardos, nem dardos, nem guerras, nem...
Choros, nem medos, nem uivos, nem gritos, nem...
Pedras, nem facas, nem fomes, nem secas, nem...
Feras, nem ferros, nem farpas, nem farças, nem mal...


José Carlos Ary dos Santos


Remedia Amoris

Foi uma péssima ideia a de voltarmos a ver-nos. Não fizemos mais do que trocar insultos e culpar-nos de velhas e sórdidas histórias. Depois ...