domingo, 21 de março de 2021

Num outro dia

Apetece-te morrer, rapariga,
mas vais varrer o chão.
Arrumas a roupa
que está nesse canto
e sorris a uma criança
porque às crianças
não se rouba o riso.
Apetece-te morrer, rapariga,
e ninguém sabe porquê,
mas tu sabes
(quem te dera não saber).
Apetece-te morrer,
mas escolhes os legumes para a sopa,
com cuidado,
e fazes uma sopa
realmente deliciosa.
Para ti, não tem sabor.
Onde está a velha alegria
de escolher legumes para a sopa?
Apetece-te morrer, rapariga,
mas caminhas à beira-mar
como se tudo te fosse estrangeiro
e tudo mudo e surdo
como se o canto das cores
para sempre tivesse parado
numa batida do teu coração.
Não podes abrir um livro.
Cada palavra
é uma guilhotina da alma.
Não podes ir buscar
as pequenas mortes,
essas mortes antigas
com que em tempos
foste buscar forças para viver.
Já as usaste todas.
Varrer o chão não está mau.
Tudo o que tenha a nulidade
do que é mecânico
não parece mau.
Mas sabes que partir
é a coisa mais suave.
Sabes que és um raio de luz.
Já experimentaste.
Estiveste lá e regressaste
e então porque não ir e não voltar?
Apetece-te morrer, rapariga,
mas vais estender a roupa.
Arranjas o teu cabelo
e pões pérolas nas orelhas.
Que lindas pérolas.
Onde estão as tuas lágrimas?
Esperas que num outro dia
a incandescência das árvores no esplendor
possa vir de novo
pegar fogo à tua alma
e, quem sabe, reduzi-la a cinzas.

Adriana Crespo


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