domingo, 26 de abril de 2020

Onde quer que o encontres

Onde quer que o encontres -
escrito, rasgado ou desenhado:
na areia, no papel, na casca de
uma árvore, na pele de um muro,
no ar que atravessar de repente
a tua voz, na terra apodrecida
sobre o meu corpo - é teu,

para sempre, o meu nome.

Maria do Rosário Pedreira


sábado, 25 de abril de 2020

O poema ensina a cair

O poema ensina a cair
sobre os vários solos
desde perder o chão repentino sob os pés
como se perde os sentidos numa
queda de amor, ao encontro
do cabo onde a terra abate e
a fecunda ausência excede

até à queda vinda
da lenta volúpia de cair,
quando a face atinge o solo
numa curva delgada subtil
uma vénia a ninguém de especial
ou especialmente a nós uma homenagem
póstuma.

Luiza Neto Jorge


quinta-feira, 23 de abril de 2020

Para um amigo tenho sempre um relógio

Para um amigo tenho sempre um relógio
esquecido em qualquer fundo de algibeira.
Mas esse relógio não marca o tempo inútil.
São restos de tabaco e de ternura rápida.
É um arco-íris de sombra, quente e trémulo.
É um copo de vinho com o meu sangue e o sol.

António Ramos Rosa


Assalto

Quando decidimos tomar o mundo de assalto
não sabíamos nada um do outro
e as ramagens das árvores
quase tocavam a tua janela.

Quando desistimos de tomar o mundo de assalto
não falámos disso
e ouvimos discos de 33 rotações.

Nunca começámos do chão
e agora é tarde.
A erva cresce depressa
e em breve
é muito alta.

Pedro Mexia

Aos 50 anos sou um ser perplexo

Aos cinquenta anos sou um ser perplexo,
não como aos vinte, aos trinta, ou aos quarenta,
mas radicalmente perplexo. Não sei
se amo a vida ou a detesto. Se desejo
ou não desejo continuar vivendo.
Se amo ou não amo aqueles que amo,
se odeio ou não odeio os que detesto.
Se me quero patriarca, pai de família, como acabei sendo,
ou se me quero livre pelas ruas nocturnas
como quando não acabei de descobri-las
em décadas de andá-las, perseguindo
sequer o amor mas corpos, corpos, corpos.
Sou de Europa ou de América? De Portugal
ou Brasil? Desejo que toda a humanidade
seja feliz como queira, ou quero que ela morra
do cogumelo atómico prometido e possível?
Não sei. Definitivamente, não sei.
Julgas que estou deitado num leito de rosas?
— perguntava ao companheiro de tortura Cuauhtemoc.
Mas, mesmo destituído, preso e torturado,
ele era o Imperador, descendente dos deuses.
Eu não descendo dos deuses. O corpo dói-me,
que envelhece. O espírito dói-me de um cansaço físico.
As belezas de alma, seja de quem forem, deixaram de interessar-me.
Resta a poesia que me enoja nos outros
a não ser antigos, limpos agora do esterco
de terem vivido. E eu vivi tanto
que me parece tão pouco. E hei-de morrer
desesperado por não ter vivido. Aos 50 anos
nem sequer a raiva dos outros ainda me sustenta
o gosto e a paciência de estar vivo.
Outros que tentem e descubram:
que digam ou não digam é-me indiferente.

Jorge de Sena


domingo, 19 de abril de 2020

José Oliveira


Viola partida

Conheces a angústia, amigo, o modo como vagarosamente se infiltra até doer nos ossos como se o frio pela janela aberta do coração vazio. Conheces essa viagem que desemboca em portos de países longínquos, cidades de pedra sob céus sem fim, ruas de solidão e morte que o sol nunca visita. E mesmo ao lado, os tubos recurvos da loucura, o labirinto transparente por onde te moves sem peso, longe, muito longe, dos pés. Quando dói demais endoidece-se, é uma forma de desviar a dor para olhos que não nos pertencem. Como se num filme em que fossemos o lado de fora e por dentro a dor a cansar. Não sei se sabes do que falo (receio mesmo tê-lo complicado). Tão pouco sei se existes (o mais que recebi de ti foi um silêncio em que acreditei que me ouvisses). Escrevo dirigindo-me a ti. Escrevo depondo nas tuas mãos o último grão de vida que resta nesta terra triste.

Jorge Roque


Bolor


Os versos
que te digam
a pobreza que somos,
o bolor nas paredes
deste quarto deserto,
o orvalho da amargura
na flor
de cada sonho
e o leito desmanchado
o peito aberto
a que chamaste
amor.

Carlos de Oliveira

Se eu pudesse

Se eu pudesse
ter-te em vez dos versos,
ou ter um verso
em vez de ti,
ou ter os olhos
como os de um gato
para perscrutar a noite
onde isso se decide.

Pedro Mexia

sexta-feira, 17 de abril de 2020

Lentas, Creta




Paixão

De súbito entendemos
como somos vulneráveis
diante da paixão
*
tentamos então recuar
ainda
um tudo nada

A olharmos a nossa
própria imagem
tentando adiar sem pressa
*
o coração

Maria Teresa Horta


Sabes que um papel pode...?

Sabes que um papel pode cortar mais do que uma navalha?

Simples papel em branco,
carta não escrita

que hoje me faz sangrar.

Ángel González

sábado, 11 de abril de 2020

Não te chamo para te conhecer

Não te chamo para te conhecer
Eu quero abrir os braços e sentir-te
Como a vela de um barco sente o vento

Não te chamo para te conhecer
Conheço tudo à força de não ser

Peço-te que venhas e me dês
Um pouco de ti mesmo onde eu habite

Sophia de Mello Breyner Andresen

Homens que são como lugares mal situados

Homens que são como lugares mal situados
Homens que são como casas saqueadas
Que são como sítios fora dos mapas
Como pedras fora do chão
Como crianças órfãs
Homens sem fuso horário
Homens agitados sem bússola onde repousem

Homens que são como fronteiras invadidas
Que são como caminhos barricados
Homens que querem passar pelos atalhos sufocados
Homens sulfatados por todos os destinos
Desempregados das suas vidas

Homens que são como a negação das estratégias
Que são como os esconderijos dos contrabandistas
Homens encarcerados abrindo-se com facas
Homens que são como danos irreparáveis
Homens que são sobreviventes vivos
Homens que são como sítios desviados
Do lugar

Daniel Faria

segunda-feira, 6 de abril de 2020

Monsanto, Lisboa, 2019


Posso estar aqui

Posso estar aqui
eu posso estar aqui perfeitamente pobre
um círio me acendi espora aguda
o vento ritmo negro assassinou-o
posso estar aqui
– o musgo é lento como a sombra –
e sei de cor a voz cega das canções
(viola de silêncio acorda-me)
que eu posso estar aqui perfeitamente pedra
insone
e um longo segredo impessoal
bordando a minha solidão

Luiza Neto Jorge


Obrigado

Escuta
enquanto a noite cai dizemos obrigado
parados nas pontes curvados sobre as grades de proteção
nos terraços de vidro
com a boca cheia de comida a olhar para o céu
dizemos obrigado
de pé junto à água agradecemos
de pé à janela olhando lá para fora
na nossa direção

de regresso de uma série de hospitais de regresso de um assalto
depois dos funerais dizemos obrigado
depois das notícias dos mortos
quer os conhecêssemos ou não dizemos obrigado

pelo telefone dizemos obrigado
nos vãos das portas e nos bancos de trás dos automóveis e nos elevadores
com a memória das guerras e a polícia à porta
e as pancadas nas escadas dizemos obrigado
nos bancos dizemos obrigado
nos rostos dos funcionários e dos ricos
e de todos aqueles que nunca mudarão
continuamos a dizer obrigado obrigado

enquanto os animais morrem à nossa volta
os sentimentos perdidos dizemos obrigado
enquanto as florestas desaparecem com mais rapidez que os minutos
dizemos obrigado
enquanto as palavras caem como células do cérebro
enquanto as cidades crescem sobre nós
cada vez mais rápido dizemos obrigado
embora ninguém escute dizemos obrigado
dizemos obrigado e acenamos
no escuro

W. S. Merwin 

Remedia Amoris

Foi uma péssima ideia a de voltarmos a ver-nos. Não fizemos mais do que trocar insultos e culpar-nos de velhas e sórdidas histórias. Depois ...