segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Tratado geral das grandezas do ínfimo

A poesia está guardada nas palavras — é tudo que eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado.
Sou fraco para elogios.

Manuel de Barros


Cansaço

Todos nós, todos temos uma hora cobarde,
uma hora de tédio ao morrer da tarde.

Quando parte o amigo que nos dá calor,
o amigo de ouro, o Mago Criador.

Quando se juntam as más impressões
e a alma é um tecido de finíssimas asas.

Quando pode dizer-se: o que foi já não será,
o que hoje não fiz nunca mais o farei.

É então, cobarde, que me acossa o desejo
de não ser e nem penso, nem trabalho, nem creio.

É uma completa nulidade de mim mesma
que me assusta e me fere, me subjuga e me espanta.

É então que eu gostaria de ser assim,
coisa nímia, fútil, banal.

Um brinquedo que se guarda no bolso,
uma jóia qualquer, um anel, um relógio...

Ser uma coisa morta que se leva às costas,
que não sabe nada, que não pensa em nada.

Todos nós, todos temos uma hora cobarde,
uma hora de tédio ao morrer da tarde.

Alfonsina Storni
(trad. de A. M.)


...

que horas são, meu amor?
a que horas chega a hora certa?

Emanuel Jorge Botelho


domingo, 30 de outubro de 2022

Poema

Alguma coisa onde tu parada
fosses depois das lágrimas uma ilha,
e eu chegasse para dizer-te adeus
de repente na curva duma estrada

alguma coisa onde a tua mão
escrevesse cartas para chover
e eu partisse a fumar
e o fumo fosse para se ler

alguma coisa onde tu ao norte
beijasses nos olhos os navios
e eu rasgasse o teu retrato
para vê-lo passar na direcção dos rios

alguma coisa onde tu corresses
numa rua com portas para o mar
e eu morresse
para ouvir-te sonhar

António José Forte

Há mensagens cujo destino é perder-se

Há mensagens cujo destino é perder-se,
palavras anteriores ou posteriores ao destinatário,
imagens que saltam do outro lado da visão,
signos que apontam para cima
ou para baixo do alvo,
sinais sem código,
- mensagens embrulhadas em outras mensagens,
gestos que chocam com a parede,
um perfume que retrocede
sem achar a sua origem,
uma música que se derrama sobre si mesma
como um caracol definitivamente abandonado.

Mas toda a perda é o pretexto de um achado.
As mensagens perdidas
inventam sempre quem deve encontrá-las.

Roberto Juarroz


sábado, 29 de outubro de 2022

Podres poderes (Vai, Brasil!)

 https://www.youtube.com/watch?v=MyCmneajBZo

Enquanto os homens exercem
Seus podres poderes
Motos e fuscas avançam
Os sinais vermelhos
E perdem os verdes
Somos uns boçais...
Queria querer gritar
Setecentas mil vezes
Como são lindos
Como são lindos os burgueses
E os japoneses
Mas tudo é muito mais...

Será que nunca faremos
Senão confirmar
A incompetência
Da América católica
Que sempre precisará
De ridículos tiranos?

Será, será, que será?
Que será, que será?
Será que esta
Minha estúpida retórica
Terá que soar
Terá que se ouvir
Por mais zil anos...

Enquanto os homens exercem
Seus podres poderes
Índios e padres e bichas
Negros e mulheres
E adolescentes
Fazem o carnaval...
Queria querer cantar
Afinado com eles
Silenciar em respeito
Ao seu transe num êxtase
Ser indecente
Mas tudo é muito mau...

Ou então cada paisano
E cada capataz
Com sua burrice fará
Jorrar sangue demais
Nos pantanais, nas cidades
Caatingas e nos gerais
Será que apenas
Os hermetismos pascoais
E os tons, os mil tons
Seus sons e seus dons geniais
Nos salvam, nos salvarão
Dessas trevas e nada mais...

Enquanto os homens exercem
Seus podres poderes
Morrer e matar de fome
De raiva e de sede
São tantas vezes
Gestos naturais...
Eu quero aproximar
O meu cantar vagabundo
Daqueles que velam
Pela alegria do mundo
Indo e mais fundo
Tins e bens e tais...

Caetano Veloso


Lisboa, junto ao Tejo


 

terça-feira, 25 de outubro de 2022

Subindo o Monte Olimpo, agosto de 2022


 

Retalhos

https://www.youtube.com/watch?v=hpMVGWej7Ew

Serras, veredas, atalhos,
Estradas e fragas de vento,
Onde se encontram retalhos
De vidas em sofrimento

Retalhos fundos nos rostos,
Mãos duras e retalhadas
Pelo suor do desgosto,
Retalha as caras fechadas

O caminho que seguiste,
Entre gente pobre e rude,
Muitas vezes tu abriste
Uma rosa de saúde

Cada história é um retalho
Cortado no coração
De um homem que no trabalho
Reparte a vida e o pão

As vidas que defendeste,
E o pão que repartiste,
São água que tu bebeste
Dos olhos de um povo triste

E depois de tanto mundo,
Retalhado de verdade,
Também tu chegaste ao fundo
Da doença da cidade

Da que não vem na sebenta,
Daquela que não se ensina,
Da pobreza que afugenta
Os barões da medicina

Tu sabes quanto fizeste,
A miséria não segura,
Nem mesmo quando lhe deste
A receita da ternura

José Carlos Ary dos Santos


domingo, 23 de outubro de 2022

The laughing heart

Your life is your life
Don’t let it be clubbed into dank submission.
Be on the watch.
There are ways out.
There is a light somewhere.
It may not be much light but
It beats the darkness.
Be on the watch.
The gods will offer you chances.
Know them.
Take them.
You can’t beat death but
You can beat death in life, sometimes.
And the more often you learn to do it,
The more light there will be.
Your life is your life.
Know it while you have it.
You are marvelous
The gods wait to delight
In you.

Charles Bukowski


sábado, 22 de outubro de 2022

Regresso devagar ao teu sorriso

Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa. Faço de conta que
não é nada comigo. Distraído percorro
o caminho familiar da saudade,
pequeninas coisas me prendem,
uma tarde num café, um livro. Devagar
te amo e às vezes depressa,
meu amor, e às vezes faço coisas que não devo,
regresso devagar a tua casa,
compro um livro, entro no
amor como em casa.

Manuel António Pina

Novo tempo

https://www.youtube.com/watch?v=jHEfuVacAeU 

No novo tempo
Apesar dos castigos
Estamos crescidos
Estamos atentos
Estamos mais vivos
Pra nos socorrer
Pra nos socorrer
Pra nos socorrer

No novo tempo
Apesar dos perigos
Da força mais bruta
Da noite que assusta
Estamos na luta
Pra sobreviver
Pra sobreviver
Pra sobreviver

Pra que a nossa esperança
Seja mais que a vingança
Seja sempre um caminho
Que se deixa de herança

No novo tempo
Apesar dos castigos
De toda a fadiga
De toda a injustiça
Estamos na briga
Pra nos socorrer
Pra nos socorrer
Pra nos socorrer

No novo tempo
Apesar dos perigos
De todos os pecados
De todos os enganos
Estamos marcados
Pra sobreviver
Pra sobreviver
Pra sobreviver

Pra que a nossa esperança
Seja mais que a vingança
Seja sempre um caminho
Que se deixa de herança...

No novo tempo
Apesar dos castigos
Estamos em cena
Estamos nas ruas
Quebrando as algemas
Pra nos socorrer
Pra nos socorrer
Pra nos socorrer

No novo tempo
Apesar dos perigos
A gente se encontra
Cantando na praça
Fazendo pirraça
Pra sobreviver
Pra sobreviver
Pra sobreviver

Pra que nossa esperança
Seja mais que a vingança
Seja sempre um caminho
Que se deixa de herança...

Ivan Lins


É apenas um pouco tarde

Ainda não é o fim
nem o princípio do mundo
calma
é apenas um pouco tarde

Manuel António Pina


Proclamação

A natureza não desce
a contratos. Nem a vida
se mede pela razão.

A vida é toda mistério.

Quem largamente se deu
não ofendeu a justiça
mas viveu do coração.

Ruy Cinatti

Remedia Amoris

Foi uma péssima ideia a de voltarmos a ver-nos. Não fizemos mais do que trocar insultos e culpar-nos de velhas e sórdidas histórias. Depois ...