segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Cansaço

Todos nós, todos temos uma hora cobarde,
uma hora de tédio ao morrer da tarde.

Quando parte o amigo que nos dá calor,
o amigo de ouro, o Mago Criador.

Quando se juntam as más impressões
e a alma é um tecido de finíssimas asas.

Quando pode dizer-se: o que foi já não será,
o que hoje não fiz nunca mais o farei.

É então, cobarde, que me acossa o desejo
de não ser e nem penso, nem trabalho, nem creio.

É uma completa nulidade de mim mesma
que me assusta e me fere, me subjuga e me espanta.

É então que eu gostaria de ser assim,
coisa nímia, fútil, banal.

Um brinquedo que se guarda no bolso,
uma jóia qualquer, um anel, um relógio...

Ser uma coisa morta que se leva às costas,
que não sabe nada, que não pensa em nada.

Todos nós, todos temos uma hora cobarde,
uma hora de tédio ao morrer da tarde.

Alfonsina Storni
(trad. de A. M.)


2 comentários:

  1. Crer é mesmo difícil, sobretudo quando se constrói em cima de demasiados pequenos nadas quase indistintos, uma sala às escuras, com o chão repleto de brinquedos partidos dos quais ali se guardam pequenos pedaços quase irreconhecíveis e que só a memória reconstrói. Sala onde de tempos a tempos uma janela se abre para logo se fechar. No escuro, as crianças debalde procuram as peças em falta no monte de cacos, seguindo a direção onde lhes parecera estar algum pedaço em falta, no breve instante em que uma das janelas se abre. Alguém tinha avisado que ali só havia brinquedos incompletos, mas eram tantos! Cansada, recordando os avisos dos adultos sábios e crescidos, a criança foi dormir. Sonhou, como todas as noites, com um jardim de grandes árvores, intactas e frondosas, cujas folhas ouvia à passagem do vento. Essas guardavam bem os segredos que lhes contava, daqueles que não ousaria revelar nunca. E não voltou à sala, de cujas paredes saía em constante murmúrio a história de cada brinquedo quebrado.
    P.

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  2. Esse cansaço é a eterna insatisfação humana alimentada pela incansável máquina de pensar que cremos representar o máximo da nossa existência. Simplesmente afasta-nos de nós, daquela parte de nós que conhecemos menos e que é a mais verdadeira, que nos leva ao que de melhor podemos ser e fazer, se a escutarmos. Só que às vezes não acreditamos nessa nossa parte, não queremos aceitar o que somos. Também tédio, também vazio, também nada. Quem se atreve a sair à rua sem as expectativas que os outros depositam em nós?
    P.

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