terça-feira, 26 de julho de 2022

Café da manhã

Pôs café
na chávena
Pôs leite
na chávena com café
Pôs açúcar
no café com leite
Com a colherzinha
mexeu
Bebeu o café com leite
E pôs a chávena no pires
Sem me falar
acendeu
um cigarro
Fez círculos
com a fumaça
Pôs as cinzas
no cinzeiro
Sem me falar
Sem me olhar
Levantou-se
Pôs
o chapéu na cabeça
Vestiu
a capa de chuva
porque chovia
E saiu
debaixo de chuva
Sem uma palavra
Sem me olhar
Quanto a mim pus
a cabeça entre as mãos
E chorei.

Jacques Prévert


Conto sobre as mulheres velhas

Gosto das mulheres velhas
as mulheres feias
as más mulheres

são o sal da terra

não sentem aversão
pelo lixo humano

conhecem a outra face
de uma medalha
do amor
e da fé

vêm e vão
os ditadores endoidecem
têm as mãos manchadas
com sangue de seres humanos

as mulheres velhas levantam-se pela madrugada
compram carne fruta pão
limpam cozinham
permanecem na rua com os braços
cruzados calam

as mulheres velhas
são imortais

Hamlet agita-se na rede
Fausto faz um papel vil e ridículo
Raskólnikov golpeia com um machado

as mulheres velhas são
indestrutíveis
sorriem com indulgência

deus morre
as mulheres velhas levantam-se cada dia
pela madrugada compram pão vinho peixe
morre a civilização
as mulheres velhas levantam-se pela madrugada
abrem as janelas
retiram a sujidade
morre um homem
as mulheres velhas
levam os restos
enterram os mortos
plantam flores
nas tumbas

gosto de mulheres velhas
de mulheres feias
de más mulheres

crêem na vida eterna
são o sal da terra
o córtex de uma árvore
são os olhos submissos dos animais

veem na sua justa medida
a cobardia e o heroísmo
a grandeza e a insignificância
como as exigências
de um dia quotidiano
seus filhos descobrem a América
caem nas Termópilas
morrem nas cruzes
conquistam o cosmos

as mulheres velhas saem de madrugada
para a cidade compram leite pão
carne condimentam a sopa
abrem as janelas
só os idiotas se riem
das mulheres velhas
das mulheres feias
das más mulheres

porque são mulheres belas
mulheres boas
mulheres velhas
são um ovo
são um segredo
sem segredos
são uma bola que roda

as mulheres velhas
são múmias
dos gatos sagrados
são pequenos
murchos
secos
frutos mananciais
ou gordurosos
budas ovais

quando morrem
brota do olho
uma lágrima
que se une na boca
com o sorriso
de uma mulher jovem

Tadeuz Rózewicz


sábado, 23 de julho de 2022

Os paraísos artificiais

Na minha terra, não há terra, há ruas;
mesmo as colinas são de prédios altos
com renda muito mais alta.

Na minha terra, não há árvores nem flores.
As flores, tão escassas, dos jardins mudam ao mês,
e a Câmara tem máquinas especialíssimas para desenraizar as árvores.

O cântico das aves – não há cânticos,
mas só canários de 3º andar e papagaios de 5º.
E a música do vento é frio nos pardieiros.

Na minha terra, porém, não há pardieiros,
que são todos na Pérsia ou na China,
ou em países inefáveis.

A minha terra não é inefável.
A vida da minha terra é que é inefável.
Inefável é o que não pode ser dito.

Jorge de Sena (1947)


quinta-feira, 21 de julho de 2022

Love poem

Ultimately, we will lose each other
to something. I would hope for grand
circumstance — death or disaster:
But it might not be that way at all.
It might be that you walk out
one morning after making love
to buy cigarettes, and never return,
or I fall in love with another man.
It might be a slow drift into indifference.
Either way, we’ll have to learn
to bear the weight of the eventuality
that we will lose each other to something.
So why not begin now, while your head
rests like a perfect moon in my lap,
and the dogs on the beach are howling?
Why not reach for the seam in this South Indian
night and tear it, just a little, so the falling
can begin? Because later, when we cross
each other on the streets, and are forced
to look away, when we’ve thrown
the disregarded pieces of our togetherness
into bedroom drawers and the smell
of our bodies is disappearing like the sweet
decay of lilies — what will we call it,

when it’s no longer love?

Tishani Doshi


The rose

https://www.youtube.com/watch?v=f28sS_J9H5c

Some say love, it is a river
That drowns the tender reed
Some say love, it is a razor
That leaves your soul to bleed
Some say love, it is a hunger
An endless aching need
I say love, it is a flower
And you, its only seed

It's the heart, afraid of breaking
That never learns to dance
It's the dream, afraid of waking
That never takes the chance
It's the one who won't be taken
Who cannot seem to give
And the soul, afraid of dying
That never learns to live
When the night has been too lonely
And the road has been too long
And you think that love is only
For the lucky and the strong

Just remember in the winter
Far beneath the bitter snows
Lies the seed that with the sun's love
In the spring becomes the rose

Mc Broom Amanda


terça-feira, 19 de julho de 2022

[Quantas vezes te esperei à porta]

Quantas vezes te esperei à porta como se fosse entrar em casa. E como me senti em casa. Até depois de sair, quando passo a passo crescia algo de escuro e absurdamente insuportável, e crescia a cada segundo e a cada passo. Como se no dia seguinte acabasse o mundo, porque tudo o que foi iniciado ficou por acabar. Porque sair era como não ficar, podia ser para sempre.


segunda-feira, 18 de julho de 2022

O retrato fiel

Não creias nos meus retratos,
nenhum deles me revela,
ai, não me julgues assim!

Minha cara verdadeira
fugiu às penas do corpo,
ficou isenta da vida.

Toda minha faceirice
e minha vaidade toda
estão na sonora face;
naquela que não foi vista
e que paira, levitando,
em meio a um mundo de cegos.

Os meus retratos são vários
e neles não terás nunca
o meu rosto de poesia.

Não olhes os meus retratos,
nem me suponhas em mim.

Gilka Machado


domingo, 17 de julho de 2022

O silêncio

Pego num pedaço de silêncio. Parto-o ao meio,
e vejo saírem de dentro dele as palavras que
ficaram por dizer. Umas, meto-as num frasco
com o álcool da memória, para que se
transformem num licor de remorso; outras,
guardo-as na cabeça para as dizer, um dia,
a quem me perguntar o que significam.
Mas o silêncio de onde as palavras saíram
volta a espalhar-se sobre elas. Bebo o licor
do remorso; e tiro da cabeça as outras palavras
que lá ficaram, até o ruído desaparecer, e só
o silêncio ficar, inteiro, sem nada por dentro.

Nuno Júdice 

sábado, 16 de julho de 2022

Amor à primeira vista

Ambos estão convencidos
que os uniu uma paixão súbita.
É bela esta certeza,
mas a incerteza mais bela ainda.
Julgam que por não se terem encontrado antes,
nada entre eles nunca ainda se passara.
E que diriam as ruas, as escadas, os corredores
onde se podem há muito ter cruzado. 
Gostaria de lhes perguntar
se não se lembram -
talvez nas portas giratórias,
um dia, face a face?
algum “desculpe” num grande aperto de gente?
uma voz de que “é engano” ao telefone?
- mas sei o que respondem.
Não, não se lembram.
Muito os admiraria
saber que desde há muito
se divertia com eles o acaso.
Ainda não completamente preparado
para se transformar em destino para eles,
aproximou-os e afastou-os,
barrou-lhes o caminho
e, abafando as gargalhadas,
lá seguiu saltando ao lado deles.
Houve marcas, sinais,
que importa se legíveis.
Haverá talvez três anos
ou terça-feira passada,
certa folhinha esvoaçante
de um braço a outro braço.
Algo que se perdeu e encontrou?
Quem sabe se já uma bola
nos silvados da infância?
Punhos de porta e campainhas
onde a seu tempo o toque
de uma mão tocou o outro toque.
As malas lado a lado no depósito.
Talvez acaso até mesmo um sonho
que logo o acordar desvaneceu.
Porque cada início
é só continuação,
e o livro das ocorrências
está sempre aberto ao meio.
 
Wislawa Szymborska


terça-feira, 12 de julho de 2022

Children of the 80's


We're the children of the 80's, haven't we grown
We're tender as a lotus and we're tougher than stone
And the age of our innocence is somewhere in the garden


We like the music of the 60's
We think that era must have been nifty
Flower children, Woodstock and the War
Dirty scandals, cover-ups and more
Oh, but it's getting harder to deceive us
We don't care if Dylan's gone to Jesus
Jimi Hendrix is playing o
We know Janis Joplin was the rose
And we also know that that's the way it goes
With all the stuff that she put in her arm
Don't be alarmed

We are the children of the 80's, haven't we grown
We're tender as a lotus and we're tougher than stone
And the age of our innocence is somewhere in the garden

Some of us are the sisters and the brothers
Who prefer the nighttime for our cover
A leather jacket and a single golden earring
Hang out at discos, rock shows, lose our hearing
Put tattoos all up and down our thighs
Do anything our parents would despise
Take uppers, downers, blues and reds and yellows
Our brains are turning to Jello
We think that life is overrated
Loneliness was underestimated
We are looking forward to the days
When we live inside of a purple haze
Where the salvation of the soul is rock and roll

We are the children of the 80's, haven't we grown
We're tender as a lotus and we're tougher than stone
And the age of our innocence is somewhere in the garden

Some of us may offer a surprise
Recently have you looked in our eyes
Maybe we're your conscience in disguise
We're well informed and we are wise
Please stop telling us lies
We know Afghanistan's invaded
We know Bolivia's dictated
We know America's inflated
And although we do not move in masses
We have lit our candles from your ashes
We are the warriors of the sun
The golden boys and the golden girls
For a better world

We are the children of the 80's, haven't we grown
We're tender as a lotus and we're tougher than stone
And the age of our innocence is somewhere, somewhere in the garden

Joan Baez


Como conversámos aquela noite

Era o quarto de azulejo. O cheiro do tabaco.
O cão
os olhos para que visse o de fora.
Cego
conhecendo a terra sem se conhecer.
Em nós
fizemos sair a lua o sol.
Em todos
o visível o invisível.

Éramos nós e estávamos no fim do mundo.

Como conversámos aquela noite. Era o quarto de azulejo
a mesa de braseira o cheiro do tabaco.
Andara sem destino durante meses
e, aquela noite surgia com o simples virar a
página de um livro,
quando uma palavra torna claro o enredo de longos capítulos.
Assim duas vidas se revelam.

Éramos nós. Estávamos no fim do mundo, quero dizer,
encontrei-me de súbito na minha vida,
na sua vida.

João Miguel Fernandes Jorge

sexta-feira, 8 de julho de 2022

[Gravata e barba crescida, inclinação e tara perdida]

Gravata e barba crescida, inclinação e tara perdida,
outra vez achada no último terço da vida. Nem em sonhos
ou lá dentro, muito dentro da cabeça, onde um órgão
ecoa em nós como numa catedral. E fica-te bem, gola
aberta e cara rapada, boca de sino e justa camisola.

Vamos à bola ou pelo menos aos matraquilhos, sem filhos,
sem coisa nenhuma, só nós dois, piadas e anedotas.
Quando acordas todos os dias a pensar no mesmo e perguntas
se há comprimidos para apagar a memória, parece
pelos meus olhos que a resposta vai ser sim. Mas não.

Tu tens olheiras de não fazer nada, como cansa retirar
ervas do chão, como cansa lançar a confusão no meu corpo
invisível onde não me conhecem. Be my toaster!
E assim, saudando-me, quem sabe se um dia eu serei capaz
de não me enganar na transmissão de um pensamento.

Eu quero que os teus pensamentos vão passear,
fala-me dos teus desejos, das tuas ambições, faz de conta
que eu sou um terapeuta breve a fingir que ouve histórias
emocionantes. Daquelas de fazer chorar as pedras da calçada.
Em guarda! E davas um salto como um espadachim. E um abraço.

Helder Moura Pereira


quinta-feira, 7 de julho de 2022

Lola

https://www.youtube.com/watch?v=TYPrKX-atTg

Sabia
Gosto de você chegar assim
Arrancando páginas dentro de mim 
Desde o primeiro dia
Sabia
Me apagando filmes geniais 
Rebobinando o século 
Meus velhos carnavais 
Minha melancolia 
Sabia 
Que você ia trazer seus instrumentos 
E invadir minha cabeça 
Onde um dia tocava uma orquestra 
Pra companhia dançar 
Sabia
Que ia acontecer você, um dia 
E claro que já não me valeria nada 
Tudo o que eu sabia 
Um dia

Chico Buarque


De tanto perder aprendí a ganar

De tanto perder aprendí a ganar; de tanto llorar se me dibujó la sonrisa que tengo. Conozco tanto el piso que sólo miro el cielo. Toqué tantas veces fondo que, cada vez que bajo, ya sé que mañana subiré. Me asombro tanto como es el ser humano, que aprendí a ser yo mismo. Tuve que sentir la soledad para aprender a estar conmigo mismo y saber que soy buena compañía. Intenté ayudar tantas veces a los demás, que aprendí a que me pidieran ayuda. Trate siempre que todo fuese perfecto y comprendí que realmente todo es tan imperfecto como debe ser (incluyéndome).
Hago solo lo que debo, de la mejor forma que puedo y los demás que hagan lo que quieran. Vi tantos perros correr sin sentido, que aprendí a ser tortuga y apreciar el recorrido. Aprendí que en esta vida nada es seguro, solo la muerte… por eso disfruto el momento y lo que tengo. Aprendí que nadie me pertenece, y aprendí que estarán conmigo el tiempo que quieran y deban estar, y quien realmente está interesado en mi me lo hará saber a cada momento y contra lo que sea. Que la verdadera amistad si existe, pero no es fácil encontrarla. Que quien te ama te lo demostrará siempre sin necesidad de que se lo pidas. Que ser fiel no es una obligación sino un verdadero placer cuando el amor es el dueño de ti. Eso es vivir…La vida es bella con su ir y venir, con sus sabores y sin sabores… aprendí a vivir y disfrutar cada detalle, aprendí de los errores pero no vivo pensando en ellos, pues siempre suelen ser un recuerdo amargo que te impide seguir adelante, pues, hay errores irremediables. Las heridas fuertes nunca se borran de tu corazón pero siempre hay alguien realmente a dispuesto a sanarlas. Disfruta de la mano de Dios, todo mejora siempre. Y no te esfuerces demasiado que las mejores cosas de la vida suceden cuando menos te las esperas. No las busques, ellas te buscan. Lo mejor está por venir.

Jorge Luis Borges


quarta-feira, 6 de julho de 2022

Eu chegava primeiro

Eu chegava primeiro e tinha de esperar-te
e antes de chegares, já lá estavas
naquele preciso sítio combinado
onde chegavas sempre tarde
ainda que antes mesmo de chegares lá estivesses
se ausente mais presente pela expectativa
por isso mais te via do que ao ter-te à minha frente.
Mas sabia e sei que um dia não virás
que até duvidarei se tu estiveste onde estiveste
ou até se exististe ou se eu mesmo existi
pois na dúvida tenho a única certeza
Terá mesmo existido o sítio onde estivemos?

Ruy Belo


Remedia Amoris

Foi uma péssima ideia a de voltarmos a ver-nos. Não fizemos mais do que trocar insultos e culpar-nos de velhas e sórdidas histórias. Depois ...