Russian lessons started early,
as soon as you entered elementary school.
Zenith 5 pens were all the rage back then.
I ran to my mother to plead for one.
Afterwards I sat at my desk, indulging my penchant
for untwisting and twisting my Zenith 5.
So much that I knew its finest fiber by heart.
I could take it apart and put it back together, even under my desk.
Even with my eyes closed.
Once, through carelessness, I happened to shoot the spring,
which soared high into the air,
toward the newsletter with Dzerzhinsky on it, and it landed
in the middle of the classroom, as feebly as Gagarin,
for which I received a reprimand.
Time passed.
Even though I had a hard time with Russian.
And I even had to drop out of school.
To this day I can take a Zenith 5 apart
and put it back together with my eyes closed, rapt, like
a secret agent on a mission to kill the president.
I'm careful about the spring.
Krzysztof Jaworski
quinta-feira, 31 de julho de 2025
40 black books
Nyberg has started sticking his head into the plastic bag
I took him out of, and when did he get so old?
Farewell, Nyberg: working with you
was like sticking your head into a plastic bag,
you’ve inspired me, now go inspire yourself.
Speaking of which, we agreed we should live with each other,
but not that we should live together. Language
saved us from life; not all lovers
are so lucky. Each of us can now write
a forty-first black book
consisting of a thousand iterations of “and only.” Anyway,
a publisher is already writing that he’s curious how it will end.
It’ll end with a knock from the mailman,
who doesn’t have any letters for anyone
and, being this story’s only hero,
isn’t ashamed to say he doesn’t understand why.
Justyna Bargielska
I took him out of, and when did he get so old?
Farewell, Nyberg: working with you
was like sticking your head into a plastic bag,
you’ve inspired me, now go inspire yourself.
Speaking of which, we agreed we should live with each other,
but not that we should live together. Language
saved us from life; not all lovers
are so lucky. Each of us can now write
a forty-first black book
consisting of a thousand iterations of “and only.” Anyway,
a publisher is already writing that he’s curious how it will end.
It’ll end with a knock from the mailman,
who doesn’t have any letters for anyone
and, being this story’s only hero,
isn’t ashamed to say he doesn’t understand why.
Justyna Bargielska
terça-feira, 22 de julho de 2025
Tanto amar
https://www.youtube.com/watch?v=_QjvBOcBQBQ&list=RD_QjvBOcBQBQ&start_radio=1
Amo tanto e de tanto amarAcho que ela é bonita
Tem um olho sempre a boiar
E outro que agita
Tem um olho que não está
Meus olhares evita
E outro olho a me arregalar
Sua pepita
Meus olhares evita
E outro olho a me arregalar
Sua pepita
A metade do seu olhar
Está chamando pra luta, aflita
E metade quer madrugar
Na bodeguita
Está chamando pra luta, aflita
E metade quer madrugar
Na bodeguita
Se seus olhos eu for cantar
Um seu olho me atura
E outro olho vai desmanchar
Toda a pintura
Um seu olho me atura
E outro olho vai desmanchar
Toda a pintura
Ela pode rodopiar
E mudar de figura
A paloma do seu mirar
Virar miúra
E mudar de figura
A paloma do seu mirar
Virar miúra
É na soma do seu olhar
Que eu vou me conhecer inteiro
Se nasci pra enfrentar o mar
Ou faroleiro
Que eu vou me conhecer inteiro
Se nasci pra enfrentar o mar
Ou faroleiro
Amo tanto e de tanto amar
Acho que ela acredita
Tem um olha a pestanejar
E outro me fita
Acho que ela acredita
Tem um olha a pestanejar
E outro me fita
Suas pernas vão me enroscar
Num balé esquisito
Seus dois olhos vão se encontrar
No infinito
Num balé esquisito
Seus dois olhos vão se encontrar
No infinito
Amo tanto e de tanto amar
Em Manágua temos um chico
Já pensamos em nos casar
Em Porto Rico
Em Manágua temos um chico
Já pensamos em nos casar
Em Porto Rico
Amo tanto e de tanto amar
Em Manágua temos um chico
Já pensamos em nos casar
Em Porto Rico
Em Manágua temos um chico
Já pensamos em nos casar
Em Porto Rico
Chico Buarque, Ney Matogrosso
Tentou
Tentou
Mas não tanto
Não tudo
Não além.
Sobraram conjunções:
Entretanto, contudo, porém.
Arzírio Cardoso
Mas não tanto
Não tudo
Não além.
Sobraram conjunções:
Entretanto, contudo, porém.
Arzírio Cardoso
A adiada enchente
Velho, não.
Entardecido, talvez.
Antigo, sim.
Me tornei antigo
porque a vida,
tantas vezes, se demorou.
E eu a esperei
como um rio aguarda a cheia.
Antigo, sim.
Me tornei antigo
porque a vida,
tantas vezes, se demorou.
E eu a esperei
como um rio aguarda a cheia.
Mia Couto
quinta-feira, 3 de julho de 2025
Llegó con tres heridas
Llegó con tres heridas:
la del amor,
la de la muerte,
la de la vida.
Con tres heridas viene:
la de la vida,
la del amor,
la de la muerte.
Con tres heridas yo:
la de la vida,
la de la muerte,
la del amor.
Miguel Hernández
la del amor,
la de la muerte,
la de la vida.
Con tres heridas viene:
la de la vida,
la del amor,
la de la muerte.
Con tres heridas yo:
la de la vida,
la de la muerte,
la del amor.
Miguel Hernández
domingo, 15 de junho de 2025
The storm (Bear)
Now through the white orchard my little dog
romps, breaking the new snow
with wild feet.
Running here, running there, excited,
hardly able to stop, he leaps, he spins
until the white snow is written upon
in large, exuberant letters,
a long sentence, expressing
the pleasures of the body in this world.
Oh, I could not have said it better
myself.
romps, breaking the new snow
with wild feet.
Running here, running there, excited,
hardly able to stop, he leaps, he spins
until the white snow is written upon
in large, exuberant letters,
a long sentence, expressing
the pleasures of the body in this world.
Oh, I could not have said it better
myself.
Mary Oliver
Nesta última tarde em que respiro
Nesta última tarde em que respiro
A justa luz que nasce das palavras
E no largo horizonte se dissipa
Quantos segredos únicos, precisos,
E que altiva promessa fica ardendo
Na ausência interminável do teu rosto.
Pois não posso dizer sequer que te amei nunca
Senão em cada gesto e pensamento
E dentro destes vagos vãos poemas;
E já todos me ensinam em linguagem simples
Que somos mera fábula, obscuramente
Inventada na rima de um qualquer
Cantor sem voz batendo no teclado;
Desta falta de tempo, sorte, e jeito,
Se faz noutro futuro o nosso encontro.
António Franco Alexandre
A justa luz que nasce das palavras
E no largo horizonte se dissipa
Quantos segredos únicos, precisos,
E que altiva promessa fica ardendo
Na ausência interminável do teu rosto.
Pois não posso dizer sequer que te amei nunca
Senão em cada gesto e pensamento
E dentro destes vagos vãos poemas;
E já todos me ensinam em linguagem simples
Que somos mera fábula, obscuramente
Inventada na rima de um qualquer
Cantor sem voz batendo no teclado;
Desta falta de tempo, sorte, e jeito,
Se faz noutro futuro o nosso encontro.
António Franco Alexandre
Portugal
Ó Portugal, se fosses só três sílabas,
linda vista para o mar,
Minho verde, Algarve de cal,
jerico rapando o espinhaço da terra,
surdo e miudinho,
moinho a braços com um vento
testarudo, mas embolado e, afinal, amigo,
se fosses só o sal, o sol, o sul,
o ladino pardal,
o manso boi coloquial,
a rechinante sardinha,
a desancada varina,
o plumitivo ladrilhado de lindos adjectivos,
a muda queixa amendoada
duns olhos pestanítidos,
se fosses só a cegarrega do estio, dos estilos,
o ferrugento cão asmático das praias,
o grilo engaiolado, a grila no lábio,
o calendário na parede, o emblema na lapela,
ó Portugal, se fosses só três sílabas
de plástico, que era mais barato!
Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos,
rendeiras de Viana, toureiros da Golegã,
não há “papo-de-anjo” que seja o meu derriço,
galo que cante a cores na minha prateleira,
alvura arrendada para o meu devaneio,
bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço.
Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,
golpe até ao osso, fome sem entretém,
perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,
rocim engraxado,
feira cabisbaixa,
meu remorso,
meu remorso de todos nós…
Alexandre O'Neill
linda vista para o mar,
Minho verde, Algarve de cal,
jerico rapando o espinhaço da terra,
surdo e miudinho,
moinho a braços com um vento
testarudo, mas embolado e, afinal, amigo,
se fosses só o sal, o sol, o sul,
o ladino pardal,
o manso boi coloquial,
a rechinante sardinha,
a desancada varina,
o plumitivo ladrilhado de lindos adjectivos,
a muda queixa amendoada
duns olhos pestanítidos,
se fosses só a cegarrega do estio, dos estilos,
o ferrugento cão asmático das praias,
o grilo engaiolado, a grila no lábio,
o calendário na parede, o emblema na lapela,
ó Portugal, se fosses só três sílabas
de plástico, que era mais barato!
Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos,
rendeiras de Viana, toureiros da Golegã,
não há “papo-de-anjo” que seja o meu derriço,
galo que cante a cores na minha prateleira,
alvura arrendada para o meu devaneio,
bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço.
Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,
golpe até ao osso, fome sem entretém,
perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,
rocim engraxado,
feira cabisbaixa,
meu remorso,
meu remorso de todos nós…
Alexandre O'Neill
sexta-feira, 13 de junho de 2025
Flowers
Some men never think of it.
You did. You’d come along
And say you’d nearly brought me flowers
But something had gone wrong.
You did. You’d come along
And say you’d nearly brought me flowers
But something had gone wrong.
The shop was closed.
Or you had doubts.
The sort that minds like ours
Dream up incessantly. You thought
I might not want your flowers.
The sort that minds like ours
Dream up incessantly. You thought
I might not want your flowers.
It made me smile and hug you then.
Now I can only smile.
But, look, the flowers you nearly brought
Have lasted all this while.
Now I can only smile.
But, look, the flowers you nearly brought
Have lasted all this while.
Wendy Cope
La lenta máquina del desamor
La lenta máquina del desamor,
los engranajes del reflujo,
los cuerpos que abandonan las almohadas,
las sábanas, los besos,
y de pie ante el espejo interrogándose
cada uno a sí mismo,
ya no mirándose entre ellos,
ya no desnudos para el otro,
ya no te amo,
mi amor.
Julio Cortázar
los engranajes del reflujo,
los cuerpos que abandonan las almohadas,
las sábanas, los besos,
y de pie ante el espejo interrogándose
cada uno a sí mismo,
ya no mirándose entre ellos,
ya no desnudos para el otro,
ya no te amo,
mi amor.
Julio Cortázar
[...]
Os outros eu conheci por ocioso acaso. A ti, vim encontrar porque era preciso.
João Guimarães Rosa
João Guimarães Rosa
sexta-feira, 6 de junho de 2025
as chaves
quanto tempo é preciso
para saber [com exatidão]
que porta errada
salvou a nossa vida toda?
Renato Pessoa
para saber [com exatidão]
que porta errada
salvou a nossa vida toda?
Renato Pessoa
[...]
Soy seca, soy dura y soy cortante. El amor me hará otra contigo, pero no podrá rehacerme del todo.
Gabriela Mistral
Gabriela Mistral
La falta
Hay gente que le pone nombre
a su falta
les falta Antonio o Cecilia,
un viaje a África
o un millón de pesetas
un pisito en la playa
o una amante
un éxito en la loto
o un ascenso en el trabajo.
Los que sabemos que la falta
es lo único esencial
merodeamos las calles nocturnas
de la ciudad
sin buscar
ni un polvo
ni una diosa
ni un Dios
Sacamos a pasear la falta
como quien pasea un perro.
Cristina Peri Rossi
a su falta
les falta Antonio o Cecilia,
un viaje a África
o un millón de pesetas
un pisito en la playa
o una amante
un éxito en la loto
o un ascenso en el trabajo.
Los que sabemos que la falta
es lo único esencial
merodeamos las calles nocturnas
de la ciudad
sin buscar
ni un polvo
ni una diosa
ni un Dios
Sacamos a pasear la falta
como quien pasea un perro.
Cristina Peri Rossi
572.
Poema escrito de improviso em casa de Josui
fico em casa -
tempo de guardar
frutas e sementes
Matsuo Bashô
fico em casa -
tempo de guardar
frutas e sementes
Matsuo Bashô
segunda-feira, 26 de maio de 2025
What the silence said
Do you still believe in borders now?
Birds soar over your maps and walls, and always have.
You might have watched how the smoke from your own fires
travelled on wind you couldn’t see
wafting over the valley
and up and over the hills and over the next valley and the next hill.
Birds soar over your maps and walls, and always have.
You might have watched how the smoke from your own fires
travelled on wind you couldn’t see
wafting over the valley
and up and over the hills and over the next valley and the next hill.
Did you not hear the animals howl and sing?
Or hear the silence of the animals no longer singing?
Now you know what it is to be afraid.
You think this is a dream? It is not
a dream. You think this is a theoretical question?
Or hear the silence of the animals no longer singing?
Now you know what it is to be afraid.
You think this is a dream? It is not
a dream. You think this is a theoretical question?
What do you love more than what you imagine is your singular life?
The water grows clearer. The swans settle and float there.
Are you willing to take your place in the forest again? to become loam and bark
to be a leaf falling. from a great height. to be the worm who eats the leaf
and the bird who eats the worm? Look at the sky: are you
willing to be the sky again?
You think this lesson is
too hard for you You want the time-out to end. You want
to go to the movies as before, to sit and eat with your friends.
It can end now, but not in the way you imagine You know
the mind that has been talking to you for so long—the mind that
can explain everything? Don’t listen.
You were once a citizen of a country called I Don’t Know.
Remember the burning boat that brought you there? Climb in.
The water grows clearer. The swans settle and float there.
Are you willing to take your place in the forest again? to become loam and bark
to be a leaf falling. from a great height. to be the worm who eats the leaf
and the bird who eats the worm? Look at the sky: are you
willing to be the sky again?
You think this lesson is
too hard for you You want the time-out to end. You want
to go to the movies as before, to sit and eat with your friends.
It can end now, but not in the way you imagine You know
the mind that has been talking to you for so long—the mind that
can explain everything? Don’t listen.
You were once a citizen of a country called I Don’t Know.
Remember the burning boat that brought you there? Climb in.
Marie Howe
Era demasiado amor
Era demasiado amor. Demasiado grande, demasiado complicado, demasiado confuso, y arriesgado, y fecundo, y doloroso. Tanto como yo podía dar, más del que me convenía. Por eso se rompió. No se agotó, no se acabó, no se murió, sólo se rompió, se vino abajo como una torre demasiado alta, como una apuesta demasiado alta, como una esperanza demasiado alta.
Almudena Grandes
Lightly, my darling
It’s dark because you are trying too hard.
Lightly child, lightly. Learn to do everything lightly.
Yes, feel lightly even though you’re feeling deeply.
Just lightly let things happen and
lightly cope with them.
I was so preposterously serious in those days,
such a humorless little prig.
Lightly, lightly – it’s the best advice ever given me.
When it comes to dying even.
Nothing ponderous, or portentous, or emphatic.
No rhetoric, no tremolos, no self conscious
persona putting on its celebrated imitation
of Christ or Little Nell.
And of course, no theology, no metaphysics.
Just the fact of dying and the fact
of the clear light.
So throw away your baggage and go forward.
There are quicksands all about you,
sucking at your feet,
trying to suck you down into fear and
self-pity and despair.
That’s why you must walk so lightly.
Lightly my darling, on tiptoes and no luggage,
not even a sponge bag, completely unencumbered.
Aldous Huxley
sexta-feira, 23 de maio de 2025
Elegia azul
Clara, como talvez tu antes da última esquina da noite,
uma imagem redonda colava-se aos meus dedos por entre
as folhas de papel que lentamente ardiam. Foram sempre
mais as páginas que juntei do que aquelas de que pude
separar-me, naquele T1 pequeno com vista para Monsanto
e para o teu corpo sempre azul.
Infelizmente, não fora capaz de preparar
o silêncio que sempre se segue a tudo o que
não somos, dirias tu, o rumor de instantes que nos apanha
na canga e nos sugere o vale sem luzes e a varanda grande.
Parado sei que isso é poesia, um sonho, pequenas alucinações
de primavera sem apelo no fundo destas veias e sei também
que continuas a existir e vais ser minha muitas vezes,
como eu quero ser teu intermitentemente em cada lua nossa.
Mas tu sabes como os astros nos pregam partidas ao telefone,
como em certos dias a pique para o sol embatem nas antenas,
e este ligeiro pesadelo é apenas o desconforto baço de saber
que há coisas demasiado belas para não serem tristes.
as folhas de papel que lentamente ardiam. Foram sempre
mais as páginas que juntei do que aquelas de que pude
separar-me, naquele T1 pequeno com vista para Monsanto
e para o teu corpo sempre azul.
Infelizmente, não fora capaz de preparar
o silêncio que sempre se segue a tudo o que
não somos, dirias tu, o rumor de instantes que nos apanha
na canga e nos sugere o vale sem luzes e a varanda grande.
Parado sei que isso é poesia, um sonho, pequenas alucinações
de primavera sem apelo no fundo destas veias e sei também
que continuas a existir e vais ser minha muitas vezes,
como eu quero ser teu intermitentemente em cada lua nossa.
Mas tu sabes como os astros nos pregam partidas ao telefone,
como em certos dias a pique para o sol embatem nas antenas,
e este ligeiro pesadelo é apenas o desconforto baço de saber
que há coisas demasiado belas para não serem tristes.
Rui Costa
Bar do acaso
Escrevo, decerto, por qualquer razão inútil
que não vais nunca entender.
Surgem as frases, vês, desconhecidos
que no bar do acaso encontro e são
as tuas mãos a escrever por mim.
Minto-lhes, digo que só te amo
a ti, eles riem e pedem-me pra ficar,
que sim, que a noite ainda é uma pequena
musa no breve altar venal do coração.
Fico. Dou à boca o jeito do cigarro
e é em fumo que transformo o corredor
de imagens, metáforas, pequenos desvios de
ritmo mais pobre ou queda sempre a pique
em sentido nenhum. Às vezes, sabes, é mais
difícil descobrir que o amor, como o cigarro,
quando se acende é que começa
a iluminar o fim.
Surgem as frases, vês, desconhecidos
que no bar do acaso encontro e são
as tuas mãos a escrever por mim.
Minto-lhes, digo que só te amo
a ti, eles riem e pedem-me pra ficar,
que sim, que a noite ainda é uma pequena
musa no breve altar venal do coração.
Fico. Dou à boca o jeito do cigarro
e é em fumo que transformo o corredor
de imagens, metáforas, pequenos desvios de
ritmo mais pobre ou queda sempre a pique
em sentido nenhum. Às vezes, sabes, é mais
difícil descobrir que o amor, como o cigarro,
quando se acende é que começa
a iluminar o fim.
Rui Costa
Stopping by woods on a snowy evening
Whose woods these are I think I know.
His house is in the village though;
He will not see me stopping here
To watch his woods fill up with snow.
My little horse must think it queer
To stop without a farmhouse near
Between the woods and frozen lake
The darkest evening of the year.
He gives his harness bells a shake
To ask if there is some mistake.
The only other sound’s the sweep
Of easy wind and downy flake.
The woods are lovely, dark and deep,
But I have promises to keep,
And miles to go before I sleep,
And miles to go before I sleep.
His house is in the village though;
He will not see me stopping here
To watch his woods fill up with snow.
My little horse must think it queer
To stop without a farmhouse near
Between the woods and frozen lake
The darkest evening of the year.
He gives his harness bells a shake
To ask if there is some mistake.
The only other sound’s the sweep
Of easy wind and downy flake.
The woods are lovely, dark and deep,
But I have promises to keep,
And miles to go before I sleep,
And miles to go before I sleep.
Robert Frost
sexta-feira, 16 de maio de 2025
Viajante
https://www.youtube.com/watch?v=s0w2giDdPrg
Pássaro sem asa, rei da covardia
E se guardo tanto essas emoções nessa caldeira fria
É que arde o medo onde o amor ardia
Mansidão no peito trazendo o respeito
Que eu queria tanto derrubar de vez
Para ser seu talvez
Para ser seu talvez
Mas o viajante é talvez covarde
Ou talvez seja tarde pra gritar que arde
no maior ardor
A paixão contida, retraída e nua
Correndo na sala ao te ver deitada
Ao te ver calada, ao te ver cansada, ao te ver no ar
Talvez esperando desse viajante
Algo que ele espera também receber
E quebrar as cercas com que insistimos em nos defender
A paixão contida, retraída e nua
Correndo na sala ao te ver deitada
Ao te ver calada, ao te ver cansada, ao te ver no ar
Talvez esperando desse viajante
Algo que ele espera também receber
E quebrar as cercas com que insistimos em nos defender
Eu me sinto tolo como um viajante pela tua casa
Pássaro sem asa, rei da covardia
E se guardo tanto essas emoções nessa caldeira fria
É que arde o medo onde o amor ardia
Mansidão no peito trazendo o respeito
Que eu queria tanto derrubar de vez
Para ser seu talvez
Para ser seu talvez
Para ser seu talvez
Para ser seu
Maria Thereza De Menezes Tinoco
Love after love
The time will comewhen, with elation
you will greet yourself arriving
at your own door, in your own mirror
and each will smile at the other's welcome,
and say, sit here. Eat.
You will love again the stranger who was your self.
Give wine. Give bread. Give back your heart
to itself, to the stranger who has loved you
all your life, whom you ignored
for another, who knows you by heart.
Take down the love letters from the bookshelf,
the photographs, the desperate notes,
peel your own image from the mirror.
Sit. Feast on your life.
Derek Walcott
you will greet yourself arriving
at your own door, in your own mirror
and each will smile at the other's welcome,
and say, sit here. Eat.
You will love again the stranger who was your self.
Give wine. Give bread. Give back your heart
to itself, to the stranger who has loved you
all your life, whom you ignored
for another, who knows you by heart.
Take down the love letters from the bookshelf,
the photographs, the desperate notes,
peel your own image from the mirror.
Sit. Feast on your life.
Nada te perturbe
Nada te perturbe, Nada te espante,
Tudo passa, Deus não muda,
A paciência tudo alcança;
Quem a Deus tem, Nada lhe falta:
Só Deus basta.
Eleva o pensamento, Ao céu sobe,
Por nada te angusties, Nada te perturbe.
A Jesus Cristo segue, Com grande entrega,
E, venha o que vier, Nada te espante.
Vês a glória do mundo? É glória vã;
Nada tem de estável, Tudo passa.
A paciência tudo alcança;
Quem a Deus tem, Nada lhe falta:
Só Deus basta.
Eleva o pensamento, Ao céu sobe,
Por nada te angusties, Nada te perturbe.
A Jesus Cristo segue, Com grande entrega,
E, venha o que vier, Nada te espante.
Vês a glória do mundo? É glória vã;
Nada tem de estável, Tudo passa.
(...)
Santa Teresa d'Ávila
quarta-feira, 14 de maio de 2025
Orgulho mata
Um amigo acaba de morrer em mim.
Foi morrendo assim, devagarzinho
feito vento meliante que espreita madrugada,
quando percebi, já não respirava mais.
Não tinha percebido que a amizade estava doente,
e quando a amizade fica doente,
se você não tomar semancol, humildol ou desculpol,
o vírus da mágoa se alastra pelo corpo todo.
A mágoa é como lepra, primeiro apodrece a palavra,
o brilho nos olhos e depois o respeito,
é quando você diz olá querendo dizer adeus.
O amigo quando fina não vai para o céu,
fica vagando feito alma penada
no inferno da lembrança.
O finado amigo
é um espírito que fala através de outras pessoas,
e ainda que ele grite, você já não escuta mais.
Um amigo falece por vários motivos,
desde falta de açúcar nos olhos e
a fraqueza no abraço.
Mas o pior de tudo é o enfarte na admiração.
A admiração pelo amigo é o sangue que bombeia a amizade.
Sem esses glóbulos brancos, negros e amarelos
o amor acaba. E se você não ama teu amigo... jaz.
Amigo a gente não divide, se ele é menos a gente multiplica,
mas quando ele morre a gente já nem conta mais.
O amigo quando cessa
é o como se o passado cometesse suicídio
com um tiro na saudade, ou uma corda pendurada na lembrança.
Isso quando você mesmo não o mata,
atirando na testa um desprezo de pedregulho.
Quando a amizade começa a tossir... É bom medir a pressão.
Meu amigo está morto,
na autópsia consta que foi envenenamento: cianureto de orgulho.
O Funeral foi agora pouco, sem flores, sem lágrimas, no meu coração.
O enterro segue sem alarde em respeito aos familiares.
feito vento meliante que espreita madrugada,
quando percebi, já não respirava mais.
Não tinha percebido que a amizade estava doente,
e quando a amizade fica doente,
se você não tomar semancol, humildol ou desculpol,
o vírus da mágoa se alastra pelo corpo todo.
A mágoa é como lepra, primeiro apodrece a palavra,
o brilho nos olhos e depois o respeito,
é quando você diz olá querendo dizer adeus.
O amigo quando fina não vai para o céu,
fica vagando feito alma penada
no inferno da lembrança.
O finado amigo
é um espírito que fala através de outras pessoas,
e ainda que ele grite, você já não escuta mais.
Um amigo falece por vários motivos,
desde falta de açúcar nos olhos e
a fraqueza no abraço.
Mas o pior de tudo é o enfarte na admiração.
A admiração pelo amigo é o sangue que bombeia a amizade.
Sem esses glóbulos brancos, negros e amarelos
o amor acaba. E se você não ama teu amigo... jaz.
Amigo a gente não divide, se ele é menos a gente multiplica,
mas quando ele morre a gente já nem conta mais.
O amigo quando cessa
é o como se o passado cometesse suicídio
com um tiro na saudade, ou uma corda pendurada na lembrança.
Isso quando você mesmo não o mata,
atirando na testa um desprezo de pedregulho.
Quando a amizade começa a tossir... É bom medir a pressão.
Meu amigo está morto,
na autópsia consta que foi envenenamento: cianureto de orgulho.
O Funeral foi agora pouco, sem flores, sem lágrimas, no meu coração.
O enterro segue sem alarde em respeito aos familiares.
Sérgio Vaz
terça-feira, 22 de abril de 2025
A casa de Zeus
A casa que mais chama pelo meu nome esperou-me no final de um caminho onde desaguei por engano, já nas costuras de uma aldeia remota do sul do sul do Mediterrâneo. A casa imprevista e exata.
Quando você crescer
Quando você crescer?
Alguma coisa importante
Um cara muito brilhante
Quando você crescer
Não adianta, perguntas não valem nada
É sempre a mesma jogada
Um emprego e uma namorada
Quando você crescer
E cada vez é mais difícil
De vencer
Pra quem nasceu pra perder
Pra quem não é importante
É bem melhor
Sonhar, do que conseguir
Ficar em vez de partir
Melhor uma esposa ao invés de uma amante
Uma casinha, um carro à prestação
Saber de cor a lição
Que no bar não se gospe no chão, nêgo
Quando você crescer
Alguns amigos da mesma repartição
Durante o fim-de-semana
Se vai mais tarde pra cama
Quando você crescer
E no subúrbio, com flores na sua janela
Você sorri para ela
E dando um beijo lhe diz
Felicidades
E uma casa pequenina
É amar uma menina
E não ligar pro que se diz
Belo casal que paga as contas direito
Bem comportado no leito
Mesmo que doa no peito
Sim...
Quando você crescer
E o futebol te faz pensar que no jogo
Você é muito importante
Pois o gol é o seu grande instante
Quando você crescer
Um cafézinho mostrar o filho pra vó
Sentindo o apoio dos pais
Achando que não está, só
Quando você crescer
Quando você crescer
Quando você crescer
Tudo igual...
Vai ser exatamente o mesmo...
Raul Seixas
Canção póstuma
Fiz uma canção para dar-te;
porém tu já estavas morrendo.
A Morte é um poderoso vento.
E é um suspiro tão tímido, a Arte…
É um suspiro tímido e breve
como o da respiração diária.
Choro de pomba. E a Morte é uma águia
cujo grito ninguém descreve.
Vim cantar-te a canção do mundo,
mas estás de ouvidos fechados
para os meus lábios inexatos,
— atento a um canto mais profundo.
E estou como alguém que chegasse
ao centro do mar, comparando
aquele universo de pranto
com a lágrima da sua face.
E agora fecho grandes portas
sobre a canção que chegou tarde.
E sofro sem saber de que Arte
se ocupam as pessoas mortas.
Por isso é tão desesperada
a pequena, humana cantiga.
Talvez dure mais do que a vida.
Mas à Morte não diz mais nada.
A Morte é um poderoso vento.
E é um suspiro tão tímido, a Arte…
É um suspiro tímido e breve
como o da respiração diária.
Choro de pomba. E a Morte é uma águia
cujo grito ninguém descreve.
Vim cantar-te a canção do mundo,
mas estás de ouvidos fechados
para os meus lábios inexatos,
— atento a um canto mais profundo.
E estou como alguém que chegasse
ao centro do mar, comparando
aquele universo de pranto
com a lágrima da sua face.
E agora fecho grandes portas
sobre a canção que chegou tarde.
E sofro sem saber de que Arte
se ocupam as pessoas mortas.
Por isso é tão desesperada
a pequena, humana cantiga.
Talvez dure mais do que a vida.
Mas à Morte não diz mais nada.
Cecília Meireles
Não sei se respondo ou se pergunto
Não sei se respondo ou se pergunto.
Sou uma voz que nasceu na penumbra do vazio.
Estou um pouco ébria e estou crescendo numa pedra.
Não tenho a sabedoria do mel ou a do vinho.
De súbito, ergo-me como uma torre de sombra fulgurante.
A minha tristeza é a da sede e a da chama.
Com esta pequena centelha quero incendiar o silêncio.
O que eu amo não sei. Amo. Amo em total abandono.
Sinto a minha boca dentro das árvores e de uma oculta nascente.
Indecisa e ardente, algo ainda não é flor em mim.
Não estou perdida, estou entre o vento e o olvido.
Quero conhecer a minha nudez e ser o azul da presença.
Não sou a destruição cega nem a esperança impossível.
Sou alguém que espera ser aberto por uma palavra.
António Ramos Rosa
Sou uma voz que nasceu na penumbra do vazio.
Estou um pouco ébria e estou crescendo numa pedra.
Não tenho a sabedoria do mel ou a do vinho.
De súbito, ergo-me como uma torre de sombra fulgurante.
A minha tristeza é a da sede e a da chama.
Com esta pequena centelha quero incendiar o silêncio.
O que eu amo não sei. Amo. Amo em total abandono.
Sinto a minha boca dentro das árvores e de uma oculta nascente.
Indecisa e ardente, algo ainda não é flor em mim.
Não estou perdida, estou entre o vento e o olvido.
Quero conhecer a minha nudez e ser o azul da presença.
Não sou a destruição cega nem a esperança impossível.
Sou alguém que espera ser aberto por uma palavra.
António Ramos Rosa
O sal da língua
Escuta, escuta:
tenho ainda uma coisa a dizer.
Não é importante, eu sei, não vai
salvar o mundo, não mudará
a vida de ninguém – mas quem
é hoje capaz de salvar o mundo
ou apenas mudar o sentido
da vida de alguém?
Escuta-me, não te demoro.
É coisa pouca, como a chuvinha
que vem vindo devagar.
São três, quatro palavras, pouco
mais. Palavras que te quero confiar,
para que não se extinga o seu lume,
o seu lume breve.
Palavras que muito amei,
que talvez ame ainda.
Elas são a casa, o sal da língua.
Eugénio de Andrade
tenho ainda uma coisa a dizer.
Não é importante, eu sei, não vai
salvar o mundo, não mudará
a vida de ninguém – mas quem
é hoje capaz de salvar o mundo
ou apenas mudar o sentido
da vida de alguém?
Escuta-me, não te demoro.
É coisa pouca, como a chuvinha
que vem vindo devagar.
São três, quatro palavras, pouco
mais. Palavras que te quero confiar,
para que não se extinga o seu lume,
o seu lume breve.
Palavras que muito amei,
que talvez ame ainda.
Elas são a casa, o sal da língua.
Eugénio de Andrade
O amigo
Não voltará – o que dele me ficou
é como no inverno entre cortinas
de chuva um tímido fio de sol:
ilumina mas não aquece as mãos.
Eugénio de Andrade
é como no inverno entre cortinas
de chuva um tímido fio de sol:
ilumina mas não aquece as mãos.
Eugénio de Andrade
segunda-feira, 14 de abril de 2025
Sei que o homem lavava os cabelos como se fossem longos
Sei que o homem lavava os cabelos como se fossem longos
Porque tinha uma mulher no pensamento
Sei que os lavava como se os contasse
Sei que os enxugava com a luz da mulher
Com os seus olhos muito claros voltados para o centro
Do amor, na operação poderosa
Do amor
Sei que cortava os cabelos para procurá-la
Sei que a mulher ia perdendo os vestidos cortados
Era um homem imaginado no coração da mulher que lavava
O cabelo no seu sangue
Na água corrente
Era um homem inclinado como o pescador nas margens para ouvir
E a mulher cantava para o homem respirar.
Sei que os lavava como se os contasse
Sei que os enxugava com a luz da mulher
Com os seus olhos muito claros voltados para o centro
Do amor, na operação poderosa
Do amor
Sei que cortava os cabelos para procurá-la
Sei que a mulher ia perdendo os vestidos cortados
Era um homem imaginado no coração da mulher que lavava
O cabelo no seu sangue
Na água corrente
Era um homem inclinado como o pescador nas margens para ouvir
E a mulher cantava para o homem respirar.
Daniel Faria
domingo, 30 de março de 2025
Regras da casa
Nunca omitir os infortúnios
e contar cada história até
ao fim. Tapar com panos
os espelhos; facas debaixo
da mesa. Consolar a coruja e
trinchar o morcego.
Nunca perder a raiva, aconteça
o que acontecer. Deixar entrar
quem quer que seja.
Hans-Ulrich Treichel
e contar cada história até
ao fim. Tapar com panos
os espelhos; facas debaixo
da mesa. Consolar a coruja e
trinchar o morcego.
Nunca perder a raiva, aconteça
o que acontecer. Deixar entrar
quem quer que seja.
Hans-Ulrich Treichel
Os dias de Job
Às vezes rezo
sou um cego e vejo
as palavras o reunir
das sombras
às vezes nada digo
estendo as mãos como uma concha
puro sinal da alma
a porta
queria que batesses
tomasses um por um os meus refúgios
estes dedos
inquietos na ignorância
do fogo
pois que tempo abrigará
os anjos
e que dia erguerá todo o sol
que há nas dunas
por isso
às vezes chove quando rezo
às vezes quase neva
sobre o pão
sou um cego e vejo
as palavras o reunir
das sombras
às vezes nada digo
estendo as mãos como uma concha
puro sinal da alma
a porta
queria que batesses
tomasses um por um os meus refúgios
estes dedos
inquietos na ignorância
do fogo
pois que tempo abrigará
os anjos
e que dia erguerá todo o sol
que há nas dunas
por isso
às vezes chove quando rezo
às vezes quase neva
sobre o pão
José Tolentino de Mendonça
Quem és tu, de novo?
Ou se desfaz em estilhaços de céu azul e magenta
E o meu olhar tem razões que o coração não frequenta
Por favor diz-me quem és tu, de novo?
Quando o teu cheiro me leva as esquinas do vislumbre
E toda a verdade em ti é coisa incerta e tão vasta
Quem sou eu pra negar que a tua presença me arrasta?
Quem és tu, na imensidão do deslumbre?
E toda a verdade em ti é coisa incerta e tão vasta
Quem sou eu pra negar que a tua presença me arrasta?
Quem és tu, na imensidão do deslumbre?
As redes são passageiras, as arquiteturas da fuga
De toda a água que corre, de todo o vento que passa
Quando uma teia se rasga ergo à Lua a minha taça
E vejo nascer no espelho mais uma ruga
De toda a água que corre, de todo o vento que passa
Quando uma teia se rasga ergo à Lua a minha taça
E vejo nascer no espelho mais uma ruga
Quando o teto se escancara e se confunde com a Lua
A apontar-me o caminho melhor do que qualquer estrela
Ninguém me faz duvidar que foste sempre a mais bela
Por favor, diz-me que és alguém, de novo?
A apontar-me o caminho melhor do que qualquer estrela
Ninguém me faz duvidar que foste sempre a mais bela
Por favor, diz-me que és alguém, de novo?
Quando a janela se fecha e se transforma num ovo
Ou se desfaz em estilhaços de céu azul e magenta
E o meu olhar tem razões que o coração não frequenta
Por favor diz-me quem?
És tu,
de novo
Jorge Palma
What remained
One by one, things went on holiday.
Cars grew attached to the tarmac,
shopping centres turned empty.
The days of the week dissolved.
We lived on in months
that faded into seasons.
The garden turned a jungle
of crops we’d planted
when everything was still open.
Sometimes we were scared, but you’re not
scared a lifetime. We made space, step
after step we walked backwards to the sidelines.
What remained: a smaller world to inhabit,
a sky full of birds and stars, the bliss
of those who exist in order to exist.
Ingmar Heytze
Cars grew attached to the tarmac,
shopping centres turned empty.
The days of the week dissolved.
We lived on in months
that faded into seasons.
The garden turned a jungle
of crops we’d planted
when everything was still open.
Sometimes we were scared, but you’re not
scared a lifetime. We made space, step
after step we walked backwards to the sidelines.
What remained: a smaller world to inhabit,
a sky full of birds and stars, the bliss
of those who exist in order to exist.
Ingmar Heytze
Primeira meditação
És a única árvore no mundo que recusa crescer em direção à luz. Em vez disso enterras-te com raízes cada vez mais profundas, camada de terra após camada, tempo passado, rumo ao calor, e calculas já estar a meio caminho.
Depressa deixas de sentir as toupeiras, minhocas ou raízes de outros seres, tetra-cego das cavernas na sua noite infinita. O frio é cada vez maior.
Não sabes se consegues crescer a distância necessária para encontrares o magma. Estás só, mas a caminho.
Ingmar Heytze
Depressa deixas de sentir as toupeiras, minhocas ou raízes de outros seres, tetra-cego das cavernas na sua noite infinita. O frio é cada vez maior.
Não sabes se consegues crescer a distância necessária para encontrares o magma. Estás só, mas a caminho.
Ingmar Heytze
Uma nota de agradecimento
Há muito que devo
àqueles que eu não amo.
O alívio em aceitar
eles estão mais próximos de outro.
Alegria por não ser
o lobo para suas ovelhas.
A minha paz esteja com eles
pois com eles eu sou livre,
e isso, o amor não pode dar,
nem sei como tirá-lo.
Eu não espero por eles
da janela à porta.
Quase tão paciente
como um mostrador solar,
eu entendo
o que o amor não entende.
Eu perdoo
o que o amor nunca teria perdoado.
Entre encontro e carta
nenhuma eternidade passa,
apenas alguns dias ou semanas.
As minhas viagens com eles dão sempre certo.
Ouvem-se concertos.
As catedrais são visitadas.
As paisagens são distintas.
E quando sete rios e montanhas
fiquem entre nós,
eles são rios e montanhas
bem conhecidos de qualquer mapa.
É graças a eles
que eu vivo em três dimensões,
num espaço não lírico e não retórico,
com um horizonte mutável, portanto real.
Eles nem sabem
quanto carregam nas suas mãos vazias.
‘Eu não lhes devo nada ‘,
teria dito o amor
neste tópico aberto.
àqueles que eu não amo.
O alívio em aceitar
eles estão mais próximos de outro.
Alegria por não ser
o lobo para suas ovelhas.
A minha paz esteja com eles
pois com eles eu sou livre,
e isso, o amor não pode dar,
nem sei como tirá-lo.
Eu não espero por eles
da janela à porta.
Quase tão paciente
como um mostrador solar,
eu entendo
o que o amor não entende.
Eu perdoo
o que o amor nunca teria perdoado.
Entre encontro e carta
nenhuma eternidade passa,
apenas alguns dias ou semanas.
As minhas viagens com eles dão sempre certo.
Ouvem-se concertos.
As catedrais são visitadas.
As paisagens são distintas.
E quando sete rios e montanhas
fiquem entre nós,
eles são rios e montanhas
bem conhecidos de qualquer mapa.
É graças a eles
que eu vivo em três dimensões,
num espaço não lírico e não retórico,
com um horizonte mutável, portanto real.
Eles nem sabem
quanto carregam nas suas mãos vazias.
‘Eu não lhes devo nada ‘,
teria dito o amor
neste tópico aberto.
Wislawa Szymborska
Depois do amor
(...)
“Miguel, eu lembro-me de ti
depois do sol e do pó,
antes da própria lua,
túmulo de um sonho de amor.”
Amor: afasta o meu ser
das suas primeiras ruínas,
e construindo-me, dita
uma verdade como um sopro.
Depois do amor, a terra.
Depois da terra, tudo.
“Miguel, eu lembro-me de ti
depois do sol e do pó,
antes da própria lua,
túmulo de um sonho de amor.”
Amor: afasta o meu ser
das suas primeiras ruínas,
e construindo-me, dita
uma verdade como um sopro.
Depois do amor, a terra.
Depois da terra, tudo.
Miguel Hernández
Regras do esquecimento
Não esqueças sobretudo a armadura
da noite,
a aspereza das estrelas
quando os olhos são recentes
e a gravitação é como um poder
sucinto nas mãos.
Não esqueças sobretudo como os cereais
lavram os campos estafados, destilam
prodígio pelos sulcos da memória,
oferecem-te uma vida maior
em troca do sal
das pálpebras.
Não esqueças sobretudo de olhar devagar.
Vasco Gato
a aspereza das estrelas
quando os olhos são recentes
e a gravitação é como um poder
sucinto nas mãos.
Não esqueças sobretudo como os cereais
lavram os campos estafados, destilam
prodígio pelos sulcos da memória,
oferecem-te uma vida maior
em troca do sal
das pálpebras.
Não esqueças sobretudo de olhar devagar.
Vasco Gato
terça-feira, 18 de março de 2025
Esta obscuridade salubre
Olha peço-te não venhas assim quando eu estava tão quieta
sentada no jardim e até com óculos
não venhas peço-te
não venhas melindroso e sorrindo
com a cabeça inclinada como um particípio
não venhas
Eu estava já me aproximando
quase tocava a recorrência das coisas
nesse momento eu olhava para o chão e via mesmo cada
pequena pedra saudável
eu estava tão quieta sentada no jardim
Respirava
sentia as veias ligeiramente activas
mas tão ligeiramente
tudo corria fundo em sua sumidade
meus braços tinham apenas o seu peso
sentada no jardim e até com óculos
não venhas peço-te
não venhas melindroso e sorrindo
com a cabeça inclinada como um particípio
não venhas
Eu estava já me aproximando
quase tocava a recorrência das coisas
nesse momento eu olhava para o chão e via mesmo cada
pequena pedra saudável
eu estava tão quieta sentada no jardim
Respirava
sentia as veias ligeiramente activas
mas tão ligeiramente
tudo corria fundo em sua sumidade
meus braços tinham apenas o seu peso
sem outras asas
Quando tu vieste sorrindo melindroso e tão salubre
de repente o jardim é a dificuldade essencial da minha
botânica
a minha indústria difícil
o fim que a alma lograda obtém dos corpos
Corro agora por minha alucinação dirigível
minhas tarefas são histriónicas
Eu estava ali tão quieta
estava até com óculos
e tu inclinavas-te como um simulacro
Intui, peço-te
esta obscuridade salubre
esta consternação despenhada
tropeçando pela alma recorrente silva
Quando tu vieste sorrindo melindroso e tão salubre
de repente o jardim é a dificuldade essencial da minha
botânica
a minha indústria difícil
o fim que a alma lograda obtém dos corpos
Corro agora por minha alucinação dirigível
minhas tarefas são histriónicas
Eu estava ali tão quieta
estava até com óculos
e tu inclinavas-te como um simulacro
Intui, peço-te
esta obscuridade salubre
esta consternação despenhada
tropeçando pela alma recorrente silva
Ana Hatherly
Eu sei que foste eterna numa hora
Eu sei que foste o nada num só dia
Lá fora passa a vida sem demora
Janela duma noite tão vazia
Palavras que ficaram por dizer
Silêncios que trocámos sem olhar
Tristezas são angústia de perder
Desejos que matámos por amar
Andámos à procura, sem saber
De coisas que inventámos por acaso
Perdemo-nos os dois, quase sem querer
Num tempo que julgámos sem atraso
É estranho
Dizes tu do meu caminho
Fugaz... Diria eu... Foi sempre o nosso
Mas sabes, meu amor, quero estar sozinho
Amar-te uma vez mais eu já não posso
Duarte
sábado, 15 de março de 2025
Explicação da noite
Sobre a água estarei solto de caminhos
Dos que vierem nenhum barco é para ti
Não deixes a candeia acesa
Dorme: basta-me essa luz
Não deixes a candeia acesa
Dorme: basta-me essa luz
Daniel Faria
Let me go
When I come to the end of the road
And the sun has set for me
I want no rites in a gloom filled room
Why cry for a soul set free?
Miss me a little, but not for long
And not with your head bowed low
Remember the love that once we shared
Miss me, but let me go.
For this is a journey we all must take
And each must go alone.
It's all part of the master plan
A step on the road to home.
When you are lonely and sick at heart
Go to the friends we know.
Laugh at all the things we used to do
Miss me, but let me go.
Christina Rossetti
And the sun has set for me
I want no rites in a gloom filled room
Why cry for a soul set free?
Miss me a little, but not for long
And not with your head bowed low
Remember the love that once we shared
Miss me, but let me go.
For this is a journey we all must take
And each must go alone.
It's all part of the master plan
A step on the road to home.
When you are lonely and sick at heart
Go to the friends we know.
Laugh at all the things we used to do
Miss me, but let me go.
Christina Rossetti
À espera do fim
Sobrevivendo à bebedeira e ao comprimido
Vou dizendo sim à engrenagem
E ando muito deprimido
É difícil encontrar quem o não esteja
Quando o sistema nos consome e aleija
Trincamos sempre o caroço
Mas já não saboreamos a cereja
Já houve tempos em que eu
Tinha tudo não tendo quase nada
Quando dormia ao relento
Ouvindo o vento beijar a geada
Fazia o meu manjar com pão e uva
Fazia o meu caminho ao sol ou à chuva
Ao encontro da mão miúda
Que me assentava como uma luva
Se ainda me queres vender
Se ainda me queres negociar
Isso já pouco me interessa
Perdemos o gozo de viver
Eu a obedecer e tu a mandar
Os dois na mesma triste peça
Os dois à espera do fim
Tu tens fortuna e eu não
Podes comer salmão e eu só peixe miúdo
Mas temos em comum o facto de ambos vermos
A vida por um canudo
Invertemos a ordem dos fatores
Pusemos números à frente de amores
E vemos sempre a preto e branco o programa
Que afinal é a cores
Se ainda me queres negociar
Isso já pouco me interessa
Perdemos o gozo de viver
Eu a obedecer e tu a mandar
Os dois na mesma triste peça
Os dois à espera do fim
Tu tens fortuna e eu não
Podes comer salmão e eu só peixe miúdo
Mas temos em comum o facto de ambos vermos
A vida por um canudo
Invertemos a ordem dos fatores
Pusemos números à frente de amores
E vemos sempre a preto e branco o programa
Que afinal é a cores
Jorge Palma
quinta-feira, 13 de março de 2025
ABC
Jamais saberei
o que A. pensava de mim.
Se B. acabou por me perdoar.
Por que razão fingia C. que tudo estava bem.
Qual a quota-parte de D. no silêncio de E.
O que esperava F. se acaso algo esperava.
Por que fingia G. sabendo de tudo.
O que tinha H. a esconder.
O que queria I. acrescentar.
Se o facto de eu estar por perto,
teve algum significado
para J. e K. e para o resto do alfabeto.
o que A. pensava de mim.
Se B. acabou por me perdoar.
Por que razão fingia C. que tudo estava bem.
Qual a quota-parte de D. no silêncio de E.
O que esperava F. se acaso algo esperava.
Por que fingia G. sabendo de tudo.
O que tinha H. a esconder.
O que queria I. acrescentar.
Se o facto de eu estar por perto,
teve algum significado
para J. e K. e para o resto do alfabeto.
Wislawa Szymborska
Filme — anos sessenta
Este homem adulto. Este homem na terra.
Dez bilhões de células nervosas.
Cinco litros de sangue para trezentos gramas de coração.
Esse objeto se desenvolveu por três bilhões de anos.
No princípio apareceu na forma de um garotinho.
O garotinho colocava a cabeça nos joelhos da titia.
Onde está esse garotinho. Onde, esses joelhos.
O garotinho cresceu. Ah, já não é a mesma coisa.
Estes espelhos são cruéis e lisos como asfalto.
Ontem atropelou um gato. Esta sim foi uma ideia.
O gato foi libertado do inferno desta época.
A moça no automóvel lhe lançou um olhar.
Não, não tinha aqueles joelhos que ele buscava.
Na verdade, queria era respirar fundo deitado na areia.
Ele e o mundo nada têm em comum.
Sente-se a asa quebrada de um jarro,
embora o jarro não saiba disso e continue a levar a água.
É extraordinário. Alguém ainda labuta.
Esta casa está construída. Esta maçaneta, esculpida.
Esta árvore, enxertada. Este circo vai fazer seu show.
O todo almeja se manter inteiro embora esteja em pedaços.
Como cola, pesadas e espessas sunt lacrimae rerum.
Mas tudo isso ao fundo e só ao lado.
Nele há uma escuridão terrível e na escuridão um garotinho.
Deus do humor, faz dele alguma coisa sem falta.
Deus do humor, faz dele alguma coisa por fim.
Dez bilhões de células nervosas.
Cinco litros de sangue para trezentos gramas de coração.
Esse objeto se desenvolveu por três bilhões de anos.
No princípio apareceu na forma de um garotinho.
O garotinho colocava a cabeça nos joelhos da titia.
Onde está esse garotinho. Onde, esses joelhos.
O garotinho cresceu. Ah, já não é a mesma coisa.
Estes espelhos são cruéis e lisos como asfalto.
Ontem atropelou um gato. Esta sim foi uma ideia.
O gato foi libertado do inferno desta época.
A moça no automóvel lhe lançou um olhar.
Não, não tinha aqueles joelhos que ele buscava.
Na verdade, queria era respirar fundo deitado na areia.
Ele e o mundo nada têm em comum.
Sente-se a asa quebrada de um jarro,
embora o jarro não saiba disso e continue a levar a água.
É extraordinário. Alguém ainda labuta.
Esta casa está construída. Esta maçaneta, esculpida.
Esta árvore, enxertada. Este circo vai fazer seu show.
O todo almeja se manter inteiro embora esteja em pedaços.
Como cola, pesadas e espessas sunt lacrimae rerum.
Mas tudo isso ao fundo e só ao lado.
Nele há uma escuridão terrível e na escuridão um garotinho.
Deus do humor, faz dele alguma coisa sem falta.
Deus do humor, faz dele alguma coisa por fim.
Wislawa Szymborska
quinta-feira, 6 de março de 2025
No soy de aquí, ni soy de allá
Las golondrinas y las malas señoras
Saltar balcones y abrir las ventanas
Y las muchachas en abril
Me gusta el vino tanto como las flores
Y los amantes, pero no los señores
Me encanta ser amigo de los ladrones
Y las canciones en francés
No soy de aquí, ni soy de allá
No tengo edad, ni porvenir
Y ser feliz es mi color
De identidad
Me gusta estar tirado siempre en la arena
Y en bicicleta perseguir a manuela
Y todo el tiempo para ver las estrellas
Con la maría en el trigal
No soy de aquí, ni soy de allá
No tengo edad, ni porvenir
Y ser feliz es mi color
De identidad
Alberto Cortéz
Noite apressada
depois de um dia tão lento.
Era uma rosa encarnada
aberta nesse momento.
Era uma boca fechada
sob a mordaça de um lenço.
Era afinal quase nada
e tudo parecia imenso!
e tudo parecia imenso!
Imensa a casa perdida
no meio do vendaval,
imensa a linha da vida
no seu desenho mortal,
imensa na despedida
a certeza do final.
Era uma haste inclinada
sob o capricho do vento.
Era minh'alma, dobrada,
dentro do teu pensamento.
no meio do vendaval,
imensa a linha da vida
no seu desenho mortal,
imensa na despedida
a certeza do final.
Era uma haste inclinada
sob o capricho do vento.
Era minh'alma, dobrada,
dentro do teu pensamento.
Era uma igreja assaltada
mas que cheirava a incenso,
era afinal quase nada,
e tudo parecia imenso.
Imensa, a luz proibida
no centro da catedral,
imensa, a voz diluída
além do bem e do mal;
imensa por toda a vida,
na descrença total.
mas que cheirava a incenso,
era afinal quase nada,
e tudo parecia imenso.
Imensa, a luz proibida
no centro da catedral,
imensa, a voz diluída
além do bem e do mal;
imensa por toda a vida,
na descrença total.
David Mourão-Ferreira
É triste explicar um poema
É triste explicar um poema. É inútil também. Um poema não se explica. É como um soco. E, se for perfeito, te alimenta para toda a vida. Um soco certamente te acorda e, se for em cheio, faz cair tua máscara, essa frívola, repugnante, empolada máscara que tentamos manter para atrair ou assustar. Se pelo menos um amante da poesia foi atingido e levantou de cara limpa depois de ler minhas esbraseadas evidências líricas, escreva, apenas isso: fui atingido. E aí sim vou beber, porque há de ser festa aquilo que na Terra me pareceu exílio: o ofício de Poeta.
Hilda Hilst
quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025
Canção de madrugar
https://www.youtube.com/watch?v=S6VDxwX2dLg
De linho te vesti
de nardos te enfeitei
amor, amor que nunca vi,
mas sei.
Sei dos teus olhos acesos na noite
- sinais de bem despertar -
sei dos teus braços abertos a todos
que morrem devagar.
Sei, meu amor inventado, que um dia
teu corpo há de acender
uma fogueira de sol e de fúria
que nos verá nascer.
Irei beber em ti
o vinho que pisei
o fel, o fel do que sofri
e dei.
Dei do meu corpo um chicote de força
Rasei meus olhos com água
Dei do meu sangue uma espada de raiva
e uma lança de mágoa.
Dei do meu sonho uma corda de insónias
Cravei meus braços com setas
Descobri rosas, alarguei cidades
e construí poetas.
E nunca, nunca te encontrei
na estrada do que fiz,
amor que não logrei,
mas quis.
Sei, meu amor inventado, que um dia
teu corpo há de acender
uma fogueira de sol e de fúria
que nos verá nascer.
E então
nem choros nem medos nem uivos
nem gritos nem pedras nem facas
nem fomes nem secas nem feras
nem ferros nem farpas nem farsas
nem forcas nem cardos nem dardos
nem terras, nem mal
De linho te vesti
de nardos te enfeitei
amor, amor que nunca vi,
mas sei.
Sei dos teus olhos acesos na noite
- sinais de bem despertar -
sei dos teus braços abertos a todos
que morrem devagar.
Sei, meu amor inventado, que um dia
teu corpo há de acender
uma fogueira de sol e de fúria
que nos verá nascer.
Irei beber em ti
o vinho que pisei
o fel, o fel do que sofri
e dei.
Dei do meu corpo um chicote de força
Rasei meus olhos com água
Dei do meu sangue uma espada de raiva
e uma lança de mágoa.
Dei do meu sonho uma corda de insónias
Cravei meus braços com setas
Descobri rosas, alarguei cidades
e construí poetas.
E nunca, nunca te encontrei
na estrada do que fiz,
amor que não logrei,
mas quis.
Sei, meu amor inventado, que um dia
teu corpo há de acender
uma fogueira de sol e de fúria
que nos verá nascer.
E então
nem choros nem medos nem uivos
nem gritos nem pedras nem facas
nem fomes nem secas nem feras
nem ferros nem farpas nem farsas
nem forcas nem cardos nem dardos
nem terras, nem mal
Ary dos Santos
Como se mede uma raiz?
Ele perguntou-me:
em que medida é que isso te
marcou?
Eu pergunto-lhe:
Como se mede uma raiz?
em que medida é que isso te
marcou?
Eu pergunto-lhe:
Como se mede uma raiz?
André Tecedeiro
Mas que memória?
mas que memória
podemos ter
de nós?
e de qual tempo?
deste tempo exterior
em que
depois de criados
e decifrados
os consensuais alfabetos
da exploração
da vida
chegou o projecto Stardust
com material inalterado
desde o início
do sistema solar,
que não nos diz
se então já havia actos de amor
e portanto
não nos diz nada (?)
é preciso emparedar o demente
que propõe que podia haver
o que não há.
e outros
como ele.
acham-se todos
cada vez mais
perdidos
no meio do próprio ruído,
carregando
males
e mails
como se a diferença
entre ambos estes termos
não fosse
apenas o espaço
de uma ou outra letra,
e a ressonância
da voz do homem
que treme fora como a terra dentro.
podemos ter
de nós?
e de qual tempo?
deste tempo exterior
em que
depois de criados
e decifrados
os consensuais alfabetos
da exploração
da vida
chegou o projecto Stardust
com material inalterado
desde o início
do sistema solar,
que não nos diz
se então já havia actos de amor
e portanto
não nos diz nada (?)
é preciso emparedar o demente
que propõe que podia haver
o que não há.
e outros
como ele.
acham-se todos
cada vez mais
perdidos
no meio do próprio ruído,
carregando
males
e mails
como se a diferença
entre ambos estes termos
não fosse
apenas o espaço
de uma ou outra letra,
e a ressonância
da voz do homem
que treme fora como a terra dentro.
Alberto Pimenta
É preciso fazer um esforço
É preciso fazer um esforço
Considerar possível
Estar sempre de perfil
Ser mono-asa
Barbatana sem dorso
Branco sem luz
Ave sem cisne
Ondular no ar
Ser o remoto futuro
Relâmpago sem ser visto
Força sem motor
Buraco sem queda
Considerar possível
Eros sem frenético
Livro sem que o leiam
Poema sem que o façam
Fazer um esforço
Sentir insensível
Sem que seja possível
Sem que seja preciso
Profundamente
Tudo é tão importante
Como um olhar furtivo
Considerar possível
Estar sempre de perfil
Ser mono-asa
Barbatana sem dorso
Branco sem luz
Ave sem cisne
Ondular no ar
Ser o remoto futuro
Relâmpago sem ser visto
Força sem motor
Buraco sem queda
Considerar possível
Eros sem frenético
Livro sem que o leiam
Poema sem que o façam
Fazer um esforço
Sentir insensível
Sem que seja possível
Sem que seja preciso
Profundamente
Tudo é tão importante
Como um olhar furtivo
Ana Hatherly
terça-feira, 25 de fevereiro de 2025
Sabes que tens de mudar de vida
"Estás na tua casa e não te sentes em casa,
já não sabes como viver na tua vida,
e lembras-te de uma frase de Heidegger:
Todos são o outro e ninguém é o próprio.
Perguntas-te se isto é amor ou imitação,
perguntas-te não quem és mas quem queres ser,
e não fazes mais perguntas nem procuras as respostas,
pões um ponto final na puta da filosofia,
sabes que tens de mudar de vida,
não precisa de ser amanhã,
mas vai acontecer, no fundo já aconteceu."
Raquel Serejo Martins
e lembras-te de uma frase de Heidegger:
Todos são o outro e ninguém é o próprio.
Perguntas-te se isto é amor ou imitação,
perguntas-te não quem és mas quem queres ser,
e não fazes mais perguntas nem procuras as respostas,
pões um ponto final na puta da filosofia,
sabes que tens de mudar de vida,
não precisa de ser amanhã,
mas vai acontecer, no fundo já aconteceu."
Raquel Serejo Martins
Abundance
in memory of Mary Oliver
It’s impossible to be lonely
when you’re zesting an orange.
Scrape the soft rind once
and the whole room
fills with fruit.
Look around: you have
more than enough.
Always have.
You just didn’t notice
until now.
when you’re zesting an orange.
Scrape the soft rind once
and the whole room
fills with fruit.
Look around: you have
more than enough.
Always have.
You just didn’t notice
until now.
Amy Schmidt
Le dernier poème
J’ai rêvé tellement fort de toi,
J’ai tellement marché, tellement parlé,
Tellement aimé ton ombre,
Qu’il ne me reste plus rien de toi.
Il me reste d’être l’ombre parmi les ombres,
D’être cent fois plus ombre que l’ombre,
D’être l’ombre qui viendra et reviendra
Dans ta vie ensoleillée.
Robert Desnos
J’ai tellement marché, tellement parlé,
Tellement aimé ton ombre,
Qu’il ne me reste plus rien de toi.
Il me reste d’être l’ombre parmi les ombres,
D’être cent fois plus ombre que l’ombre,
D’être l’ombre qui viendra et reviendra
Dans ta vie ensoleillée.
Robert Desnos
Oração da mãe Menininha
https://www.youtube.com/watch?v=_x9mNq-eB6w
Ai, minha mãe
Minha mãe Menininha!
Ai, minha mãe
Menininha do Gantois!
Dorival Caymmi
Ai, minha mãe
Minha mãe Menininha!
Ai, minha mãe
Menininha do Gantois!
A estrela mais linda, hein
Tá no Gantois
O sol mais brilhante
Tá no Gantois
A beleza do mundo
Tá no Gantois
A mão da doçura, hein
Tá no Gantois
O consolo da gente, ai
Tá no Gantois
A Oxum mais bonita, hein
Tá no Gantois
Tá no Gantois
O sol mais brilhante
Tá no Gantois
A beleza do mundo
Tá no Gantois
A mão da doçura, hein
Tá no Gantois
O consolo da gente, ai
Tá no Gantois
A Oxum mais bonita, hein
Tá no Gantois
Olorum quem mandou essa filha de Oxum
Tomar conta da gente e de tudo cuidar
Olorum quem mandou eô, ora iê iê ô
Ora iê iê ô
Tomar conta da gente e de tudo cuidar
Olorum quem mandou eô, ora iê iê ô
Ora iê iê ô
Ai, minha mãe
Minha mãe Menininha!
Ai, minha mãe
Menininha do Gantois!
Minha mãe Menininha!
Ai, minha mãe
Menininha do Gantois!
Consolo na praia
A infância está perdida
A mocidade está perdida
Mas a vida não se perdeu
O primeiro amor passou
O segundo amor passou
O terceiro amor passou
Mas o coração continua
Perdeste o melhor amigo
Não tentaste qualquer viagem
Não possuis carro, navio, terra
Mas tens um cão
Algumas palavras duras
Em voz mansa, te golpearam
Nunca, nunca cicatrizam
Mas e o humor?
A injustiça não se resolve
À sombra do mundo errado
Murmuraste um protesto tímido
Mas virão outros
Tudo somado
Devias precipitar-te, de vez, nas águas
Estás nu na areia, no vento
Dorme, meu filho
Carlos Drummond de Andrade
domingo, 16 de fevereiro de 2025
Murmúrios do mar
Paga-me um café e conto-te a minha vida
O inverno avançava
nessa tarde em que te ouvi
assaltado por dores
o céu quebrava-se aos disparos
de uma criança muito assustada
que corria
o vento batia-lhe no rosto com violência
a infância inteira
disso me lembro
Outra noite cortaste o sono da casa
com frio e medo
apagavas cigarros nas palmas das mãos
e os que te viam choravam
mas tu não, tu nunca choraste
por amores que se perdem
Os naufrágios são belos
sentimo-nos tão vivos entre as ilhas, acreditas?
e temos saudades desse mar
que derruba primeiro no nosso corpo
tudo o que seremos depois
«Pago-te um café se me contares
o teu amor»
O inverno avançava
nessa tarde em que te ouvi
assaltado por dores
o céu quebrava-se aos disparos
de uma criança muito assustada
que corria
o vento batia-lhe no rosto com violência
a infância inteira
disso me lembro
Outra noite cortaste o sono da casa
com frio e medo
apagavas cigarros nas palmas das mãos
e os que te viam choravam
mas tu não, tu nunca choraste
por amores que se perdem
Os naufrágios são belos
sentimo-nos tão vivos entre as ilhas, acreditas?
e temos saudades desse mar
que derruba primeiro no nosso corpo
tudo o que seremos depois
«Pago-te um café se me contares
o teu amor»
José Tolentino de Mendonça
sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025
Is/Not
Love is not a profession
genteel or otherwise
sex is not dentistry
the slick filling of aches and cavities
you are not my doctor
you are not my cure,
nobody has that
power, you are merely a fellow/traveller
Give up this medical concern,
buttoned, attentive,
permit yourself anger
and permit me mine
which needs neither
your approval nor your suprise
which does not need to be made legal
which is not against a disease
but against you,
which does not need to be understood
or washed or cauterized,
which needs instead
to be said and said.
Permit me the present tense.
Margaret Atwood
genteel or otherwise
sex is not dentistry
the slick filling of aches and cavities
you are not my doctor
you are not my cure,
nobody has that
power, you are merely a fellow/traveller
Give up this medical concern,
buttoned, attentive,
permit yourself anger
and permit me mine
which needs neither
your approval nor your suprise
which does not need to be made legal
which is not against a disease
but against you,
which does not need to be understood
or washed or cauterized,
which needs instead
to be said and said.
Permit me the present tense.
Margaret Atwood
Hypocrite women
Hypocrite women, how seldom we speak
of our own doubts, while dubiously
we mother man in his doubt!
And if at Mill Valley perched in the trees
the sweet rain drifting through western air
a white sweating bull of a poet told us
our cunts are ugly—why didn't we
admit we have thought so too? (And
what shame? They are not for the eye!)
No, they are dark and wrinkled and hairy,
caves of the Moon ... And when a
dark humming fills us, a
coldness towards life,
we are too much women to
own to such unwomanliness.
Whorishly with the psychopomp
we play and plead—and say
nothing of this later. And our dreams,
with what frivolity we have pared them
like toenails, clipped them like ends of
split hair.
Denise Levertov
of our own doubts, while dubiously
we mother man in his doubt!
And if at Mill Valley perched in the trees
the sweet rain drifting through western air
a white sweating bull of a poet told us
our cunts are ugly—why didn't we
admit we have thought so too? (And
what shame? They are not for the eye!)
No, they are dark and wrinkled and hairy,
caves of the Moon ... And when a
dark humming fills us, a
coldness towards life,
we are too much women to
own to such unwomanliness.
Whorishly with the psychopomp
we play and plead—and say
nothing of this later. And our dreams,
with what frivolity we have pared them
like toenails, clipped them like ends of
split hair.
Denise Levertov
A poem begins
A poem begins with a lump in the throat; a homesickness or a love sickness. It is a reaching-out toward expression; an effort to find fulfillment. A complete poem is one where an emotion has found its thought and the thought has found words.
Robert Frost
Robert Frost
As vitrines
https://www.youtube.com/watch?v=x1NE3N6jcIE
Eu te vejo sumir por aí
Te avisei que a cidade era um vão
Dá tua mão, olha prá mim
Não faz assim, não vai lá, não
Os letreiros a te colorir
Embaraçam a minha visão
Eu te vi suspirar de aflição
E sair da sessão frouxa de rir
Já te vejo brincando gostando de ser
Tua sombra a se multiplicar
Nos teus olhos também posso ver
As vitrines te vendo passar
Na galeria, cada clarão
É como um dia depois de outro dia
Abrindo um salão
Passas em exposição
Passas sem ver teu vigia
Catando a poesia
Que entornas no chão
Já te vejo brincando gostando de ser
Tua sombra a se multiplicar
Nos teus olhos também posso ver
As vitrines te vendo passar
Na galeria, cada clarão
É como um dia depois de outro dia
Abrindo um salão
Passas em exposição
Passas sem ver teu vigia
Catando a poesia
Que entornas no chão
Eu te vejo sumir por aí
Te avisei que a cidade era um vão
Dá tua mão, olha prá mim
Não faz assim, não vai lá, não
Os letreiros a te colorir
Embaraçam a minha visão
Eu te vi suspirar de aflição
E sair da sessão frouxa de rir
Já te vejo brincando gostando de ser
Tua sombra a se multiplicar
Nos teus olhos também posso ver
As vitrines te vendo passar
Na galeria, cada clarão
É como um dia depois de outro dia
Abrindo um salão
Passas em exposição
Passas sem ver teu vigia
Catando a poesia
Que entornas no chão
Já te vejo brincando gostando de ser
Tua sombra a se multiplicar
Nos teus olhos também posso ver
As vitrines te vendo passar
Na galeria, cada clarão
É como um dia depois de outro dia
Abrindo um salão
Passas em exposição
Passas sem ver teu vigia
Catando a poesia
Que entornas no chão
Chico Buarque
Canção dos maridos: o último marido
O primeiro marido possuía um belo nariz
estendia a roupa de forma conscienciosa
tinha um emprego com descontos incluídos
era especialista em carne de porco à jardineira
o segundo marido falava
para cima de cinco línguas
sendo poeta passeava ao longo da linha da praia com alguma frequência
comparava-me a estalactites pirites e outras obras imensas
o terceiro levava-me o pequeno almoço à cama
apanhava a roupa suja com os próprios dedos
perguntava-me se era feliz
o quarto marido analisava a minha vida passada
perscrutava vigorosamente erros cometidos
examinava fotografias antigas
constatava que o meu rosto não ia na melhor direção
já o quinto gostava de sardinhas, caça submarina,
nadava horas debaixo do mar
tinha a pele tostada do sol e olhar azul
o sexto passou mais depressa que um fogo fátuo nem me apercebi das suas
características
guardo um cantinho com ternura por essa estrela fugidia
que não cheguei devidamente a conhecer
depois disto fiz-me ao campo
estava a ficar velha e pensei que as plantas altas e rudes me aceitariam
sem fazer perguntas
levava comigo uma faca do mato para o desbravar
e embrenhei-me no coração da terra
por assim dizer.
Foi então que o vi:
ao cortar os pés dos bambus:
atrás dos bambus:
um raposo vestido de fato e chapéu
remexendo as folhas com uma elegante bengala
olhando para mim com olhos brilhantes de troça.
estendia a roupa de forma conscienciosa
tinha um emprego com descontos incluídos
era especialista em carne de porco à jardineira
o segundo marido falava
para cima de cinco línguas
sendo poeta passeava ao longo da linha da praia com alguma frequência
comparava-me a estalactites pirites e outras obras imensas
o terceiro levava-me o pequeno almoço à cama
apanhava a roupa suja com os próprios dedos
perguntava-me se era feliz
o quarto marido analisava a minha vida passada
perscrutava vigorosamente erros cometidos
examinava fotografias antigas
constatava que o meu rosto não ia na melhor direção
já o quinto gostava de sardinhas, caça submarina,
nadava horas debaixo do mar
tinha a pele tostada do sol e olhar azul
o sexto passou mais depressa que um fogo fátuo nem me apercebi das suas
características
guardo um cantinho com ternura por essa estrela fugidia
que não cheguei devidamente a conhecer
depois disto fiz-me ao campo
estava a ficar velha e pensei que as plantas altas e rudes me aceitariam
sem fazer perguntas
levava comigo uma faca do mato para o desbravar
e embrenhei-me no coração da terra
por assim dizer.
Foi então que o vi:
ao cortar os pés dos bambus:
atrás dos bambus:
um raposo vestido de fato e chapéu
remexendo as folhas com uma elegante bengala
olhando para mim com olhos brilhantes de troça.
Sara Monteiro
terça-feira, 11 de fevereiro de 2025
Fire and ice
Some say the world will end in fire,
Some say in ice.
From what I've tasted of desire
I hold with those who favor fire.
But if it had to perish twice,
I think I know enough of hate
To know that for destruction ice
Is also great
And would suffice.
Some say in ice.
From what I've tasted of desire
I hold with those who favor fire.
But if it had to perish twice,
I think I know enough of hate
To know that for destruction ice
Is also great
And would suffice.
Robert Frost
quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025
Tu és aquela Maria
Tu és aquela Maria
De quem inventei
O corpo, o sentir
O sonho, a vida
Tão livre, tão ácida,
Tão firme
Tão corajosa e bravia
Da condição das mulheres
que voam durante as noites
e só regressam de dia.
De quem inventei
O corpo, o sentir
O sonho, a vida
Tão livre, tão ácida,
Tão firme
Tão corajosa e bravia
Da condição das mulheres
que voam durante as noites
e só regressam de dia.
Maria Teresa Horta
domingo, 2 de fevereiro de 2025
Há tanto tempo (espero por ti)
na solidão do meu lugar
vem aquecer-me a cama
traz flores para o jantar
Sempre habitaste o meu coração
és a razão do meu fervor
mas não te vejo a cara
não sinto o teu calor
Podes contar ao mundo
como eu te procurei
quando me for embora
diz que te encontrei
Mesmo que tu não sejas real
ou sejas quem eu não previ
hei-de inventar-te sempre
hei-de esperar por ti
Podes contar ao mundo
como eu te procurei
quando me for embora
diz que te encontrei
Jorge Palma
Se isto é um homem
Vós que viveis tranquilos
Nas vossas casas aquecidas,
Vós que encontrais regressando à noite
Comida quente e rostos amigos:
Considerai se isto é um homem
Quem trabalha na lama
Quem não conhece paz
Quem luta por meio pão
Quem morre por um sim ou por um não.
Nas vossas casas aquecidas,
Vós que encontrais regressando à noite
Comida quente e rostos amigos:
Considerai se isto é um homem
Quem trabalha na lama
Quem não conhece paz
Quem luta por meio pão
Quem morre por um sim ou por um não.
Considerai se isto é uma mulher,
Sem cabelos e sem nome
Sem mais forças para recordar
Vazios os olhos e frio o regaço
Como uma rã no Inverno.
Sem cabelos e sem nome
Sem mais forças para recordar
Vazios os olhos e frio o regaço
Como uma rã no Inverno.
Meditai que isto aconteceu:
Recomendo-vos estas palavras.
Esculpi-as no vosso coração
Estando em casa andando pela rua,
Ao deitar-vos e ao levantar-vos;
Repeti-as aos vossos filhos.
Ou então que desmorone a vossa casa,
Que a doença vos entreve,
Que os vossos filhos vos virem a cara.
Recomendo-vos estas palavras.
Esculpi-as no vosso coração
Estando em casa andando pela rua,
Ao deitar-vos e ao levantar-vos;
Repeti-as aos vossos filhos.
Ou então que desmorone a vossa casa,
Que a doença vos entreve,
Que os vossos filhos vos virem a cara.
Primo Levi
terça-feira, 28 de janeiro de 2025
Vida
Vida, minha vida
Olha o que é que eu fizDeixei a fatia
Mais doce da vida
Na mesa dos homens
De vida vazia
Mas, vida, ali
Quem sabe, eu fui feliz
Vida, minha vida
Olha o que é que eu fiz
Verti minha vida
Nos cantos, na pia
Na casa dos homens
De vida vadia
Mas, vida, ali
Quem sabe, eu fui feliz
Luz, quero luz,
Sei que além das cortinas
São palcos azuis
E infinitas cortinas
Com palcos atrás...
Arranca, vida
Estufa, veia
E pulsa, pulsa, pulsa,
Pulsa, pulsa mais
Mais, quero mais
Nem que todos os barcos
Recolham ao cais
Que os faróis da costeira
Me lancem sinais
Arranca, vida
Estufa, vela
Me leva, leva longe
Longe, leva mais
Vida, minha vida
Olha o que é que eu fiz
Toquei na ferida
Nos nervos, nos fios
Nos olhos dos homens
De olhos sombrios
Mas, vida, ali
Eu sei que fui feliz
Chico Buarque
Moça linda bem tratada
Moça linda bem tratada,
Três séculos de família,
Burra como uma porta:
Um amor.
Grã-fino do despudor,
Esporte, ignorância e sexo,
Burro como uma porta:
Um coió.
Mulher gordaça, filó,
De ouro por todos os poros
Burra como uma porta:
Paciência...
Plutocrata sem consciência,
Nada porta, terremoto
Que a porta de pobre arromba:
Uma bomba.
Mário de Andrade
Três séculos de família,
Burra como uma porta:
Um amor.
Grã-fino do despudor,
Esporte, ignorância e sexo,
Burro como uma porta:
Um coió.
Mulher gordaça, filó,
De ouro por todos os poros
Burra como uma porta:
Paciência...
Plutocrata sem consciência,
Nada porta, terremoto
Que a porta de pobre arromba:
Uma bomba.
Mário de Andrade
sexta-feira, 24 de janeiro de 2025
Encontro
A Carlos Queiroz
Que vens contar-me
se não sei ouvir senão o silêncio?
Estou parado no mundo.
Só sei escutar de longe
antigamente ou lá prò futuro.
É bem certo que existo:
chegou-me a vez de escutar.
Que queres que te diga
se não sei nada e desaprendo?
A minha paz é ignorar.
Aprendo a não saber:
que a ciência aprenda comigo
já que não soube ensinar.
O meu alimento é o silêncio do mundo
que fica no alto das montanhas
e não desce à cidade
e sobe às nuvens que andam à procura de forma
antes de desaparecer.
Para que queres que te apareça
se me agrada não ter horas a toda a hora?
A preguiça do céu entrou comigo
e prescindo da realidade como ela prescinde de mim.
Para que me lastimas
se este é o meu auge?!
Eu tive a dita de me terem roubado tudo
menos a minha torre de marfim.
Jamais os invasores levaram consigo as nossas torres de marfim.
Levaram-me o orgulho todo
deixaram-me a memória envenenada
e intacta a torre de marfim.
Só não sei que faça da porta da torre
que dá para donde vim.
José de Almada Negreiros
Que vens contar-me
se não sei ouvir senão o silêncio?
Estou parado no mundo.
Só sei escutar de longe
antigamente ou lá prò futuro.
É bem certo que existo:
chegou-me a vez de escutar.
Que queres que te diga
se não sei nada e desaprendo?
A minha paz é ignorar.
Aprendo a não saber:
que a ciência aprenda comigo
já que não soube ensinar.
O meu alimento é o silêncio do mundo
que fica no alto das montanhas
e não desce à cidade
e sobe às nuvens que andam à procura de forma
antes de desaparecer.
Para que queres que te apareça
se me agrada não ter horas a toda a hora?
A preguiça do céu entrou comigo
e prescindo da realidade como ela prescinde de mim.
Para que me lastimas
se este é o meu auge?!
Eu tive a dita de me terem roubado tudo
menos a minha torre de marfim.
Jamais os invasores levaram consigo as nossas torres de marfim.
Levaram-me o orgulho todo
deixaram-me a memória envenenada
e intacta a torre de marfim.
Só não sei que faça da porta da torre
que dá para donde vim.
José de Almada Negreiros
Janeiro
É esta a completude dos dias
Quando se reúnem sobre a cidade
Os sossegos da nossa idade já meiga.
São estas as palavras que ficam
Desde o interior do nosso mais antigo nome.
É o inverno aberto de janeiro
Com as árvores despidas e o frio azul,
É o ano que começa no tempo que é nada,
Os bolsos que se enchem de mãos,
As casas que parecem mais juntas.
Por esta altura estarão a nascer
As horas mais felizes das nossas vidas
- bebemos chá escutando o lume
E amanhã será um dia a menos,
Um outro som acrescentando à voz,
Um abraço fechando-se até ao amor.
Quando se reúnem sobre a cidade
Os sossegos da nossa idade já meiga.
São estas as palavras que ficam
Desde o interior do nosso mais antigo nome.
É o inverno aberto de janeiro
Com as árvores despidas e o frio azul,
É o ano que começa no tempo que é nada,
Os bolsos que se enchem de mãos,
As casas que parecem mais juntas.
Por esta altura estarão a nascer
As horas mais felizes das nossas vidas
- bebemos chá escutando o lume
E amanhã será um dia a menos,
Um outro som acrescentando à voz,
Um abraço fechando-se até ao amor.
Vasco Gato
sábado, 11 de janeiro de 2025
O Marquês de Chamilly a Mariana Alcoforado
Minha senhora deve ter
uma coisa muito urgente e capital
a dizer-me
porque me tem escrito muito
e muitas vezes
porém lamento dizer-lho
mas não percebo
a sua letra
já mostrei as suas cartas
a todas as minhas amigas
e à minha mãe
e elas também não percebem bem
não me poderia dizer
o que tem a dizer-me
em maiúsculas?
ou pedir a alguém
com uma letra mais regular
que a sua
que me escreva
por si?
como vê tenho a maior vontade
em lhe ser útil
mas a sua letra minha senhora
não a ajuda
a dizer-me
porque me tem escrito muito
e muitas vezes
porém lamento dizer-lho
mas não percebo
a sua letra
já mostrei as suas cartas
a todas as minhas amigas
e à minha mãe
e elas também não percebem bem
não me poderia dizer
o que tem a dizer-me
em maiúsculas?
ou pedir a alguém
com uma letra mais regular
que a sua
que me escreva
por si?
como vê tenho a maior vontade
em lhe ser útil
mas a sua letra minha senhora
não a ajuda
Adília Lopes
(Tantos os poetas que me vão morrendo...)
Arte Poética
Perguntam-me com insistência
Porque é que de vez em quando mudo
De linha
É por uma razão
Verdadeiramente indigna
De ser ex
pressa
Louis Aragon
Porque é que de vez em quando mudo
De linha
É por uma razão
Verdadeiramente indigna
De ser ex
pressa
Louis Aragon
[...]
Eu usava uma armadura
Que me traiu duas vezes:
foi insuficiente para defender o golpe
foi eficaz a esconder a ferida
André Tecedeiro
Que me traiu duas vezes:
foi insuficiente para defender o golpe
foi eficaz a esconder a ferida
André Tecedeiro
Entraste na minha vida
Entraste na minha vida, não como quem faz uma visita curta e improvisada, mas como quem entra num reino onde todos os rios esperaram as tuas reflexões e todas as estradas os teus passos. [...] Preciso de ti, sim, meu conto de fadas. Porque és a única pessoa com quem posso conversar, seja sobre o matiz de uma nuvem, o tilintar de um pensamento ou o facto de hoje, quando fui trabalhar, ter olhado para o rosto de um girassol alto e ele ter sorrido para mim com todas as suas sementes.
Vladimir Nabokov (Cartas a Vera)
Vladimir Nabokov (Cartas a Vera)
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