quinta-feira, 30 de maio de 2024

Remedia Amoris

Foi uma péssima ideia a de voltarmos a ver-nos.
Não fizemos mais do que trocar insultos
e culpar-nos de velhas e sórdidas histórias.
Depois foste embora, atirando com a porta,
e eu fiquei sozinho, tão furioso e tão só
que não soube que fazer senão exasperar-me.
Pus-me então a beber. Bebi como os escritores
malditos de há cem anos, como os marinheiros,
e bêbedo andei pela casa deserta,
cansado de viver, buscando-te na sombra
para te culpar a ti por tu ires embora.
Primeiro uma garrafa, depois duas e de repente
fiquei tão mal que consegui esquecer-te.

Luis Alberto de Cuenca


É tarde, meu amor

é tarde, meu amor
estou longe de ti com o tempo, diluíste-te nas veias das marés, na saliva de
meu corpo sofrido
agora, tuas máquinas trituraram-me, cospem-me, interrompem o sono
habito longe, no coração vivo das areias, no cuspo límpido dos corais...
no ventre impossível das cidades noturnas
a solidão tem dias mais cruéis

tentei ser teu, amar-te e amar o falso ouro... quis ser grande e morrer
contigo
enfeitar-me com as tuas luas brancas, pratear a voz em tuas águas de seda...
cantar-te os gestos com ternura
mas não

águas, águas inquinadas pulsando dentro do meu corpo, como um peixe
ferido, louco
em mim a lama... e o visco inocente dos teus náufragos sem nome-de-rua, 
nem estátua-de-jardim-público
aceito o desafio do teu desdém

na boca ficou-me um gosto a salmoura e destruição
apenas possuo o corpo magoado destas poucas palavras tristes que te cantam

Al Berto


segunda-feira, 27 de maio de 2024

M. B.

Querida, hoje saí de casa já muito ao fim da tarde
para respirar o ar fresco que vinha do oceano.
O sol fundia-se como um leque vermelho no teatro
e uma nuvem erguia a cauda enorme como um piano.

Há um quarto de século adoravas tâmaras e carne no braseiro,
tentavas o canto, fazias desenhos num bloco-notas,
divertias-te comigo, mas depois encontraste um engenheiro
e, a julgar pelas cartas, tomaste-te aflitivamente idiota.

Ultimamente têm-te visto em igrejas da capital e da província,
em missas de defuntos pelos nossos comuns amigos; agora
não param (as missas). E alegra-me que no mundo existam ainda
distâncias mais inconcebíveis que a que nos separa.

Não me interpretes mal: a tua voz, o teu corpo, o teu nome
já não mexem com nada cá dentro. Não que alguém os destruísse,
só que um homem, para esquecer uma vida, precisa pelo menos
de viver outra ainda. E eu há muito que gastei tudo isso.

Tu tiveste sorte: onde estarias para sempre – salvo talvez
numa fotografia - de sorriso trocista, sem uma ruga, jovem, alegre?
Pois o tempo, ao dar de caras com a memória, reconhece a invalidez
dos seus direitos. Fumo no escuro e respiro as algas podres.

Joseph Brodsky


[...]

Para escrever uma poesia
que não seja política
devo escutar os pássaros.
Mas para escutar os pássaros
faz falta que cesse o bombardeamento.

Marwan Makhoul
(poeta palestiniano)


Retorno

Has muerto tantas veces; nos hemos despedido
en cada muelle,
en cada andén de los desgarramientos,
amor mío, y regresas
con otra faz de flor recién abierta
que no te reconozco hasta que palpo
dentro de mí la antigua cicatriz
en la que deletreo arduamente tu nombre.

Rosario Castellanos


terça-feira, 21 de maio de 2024

[...]

o corpo onde amo é o corpo onde falto

Mar Becker


Sal

porque tantos amaram o encontro
ama tu a despedida

porque tantos vieram por terra
vem tu como se ao mar

e também porque o mar não se alcança de todo, busca-me sem
esperança

busca-me, simplesmente
busca-me como quem descobrisse que é raro
como o nácar

o sal dos meus olhos

Mar Becker


quinta-feira, 16 de maio de 2024

Cada um lê no poema

Cada um lê no poema
o poema que traz em si.

André Tecedeiro


O tempo agita-se

O tempo agita-se
mas não avança

Pendurada no sótão
desde há séculos
a roupa
ainda não secou

Anise Koltz


Quando pensares em mim

Quando pensares em mim
encontra-me nas coisas
mais simples
nessas coisas leves e profundas
encontra-me no vento
no arco celeste da tarde
e enche de estrelas as bochechas

(...)
por certo é o teu olhar
deixando-se querer como a música

Violeta Luna


sábado, 11 de maio de 2024

Retrato

A pele era o que de mais solitário havia no seu corpo.
Há quem, tendo-a metida
num cofre até às mais fundas raízes,
simule não ter pele, quando
de facto ela não está
senão um pouco atrasada em relação ao coração.
Com ele porém não era assim.
A pele ia imitando o céu como podia.
Pequena, solitária, era uma pele metida
consigo mesma e que servia
de poço, onde além de água ele procurava proteção.

Luís Miguel Nava


terça-feira, 7 de maio de 2024

Revisão ginecológica

- Gravidezes?
Duas.

- Partos?
Dois.

- Vivos?
Dois.

Penso de viés nas que devem dar
respostas menos uniformes
e humildemente dou graças.

Amalia Bautista


quinta-feira, 25 de abril de 2024

Kindergarten

Vino el patrón y nos dejó su niño
casi tres horas nos dejó su niño,
indefenso, sonriente, millonario,
un angelito gordo y sin palabras.

Lo sentamos allí, frente a la máquina
y él se puso a romper su patrimonio.
Cómo un experto desgarró la cinta
y le gustaron efes y paréntesis.

Nosotros, satisfechos como tías,
lo dejamos hacer. Después de todo,
sólo dice «papá». El año que viene
dirá está despedido y no sea idiota.

Mario Benedetti


Oração

Livra-nos, Senhor,
de nos encontrarmos,
anos depois,
com os nossos grandes amores.

Cristina Peri Rossi


Margem de certa maneira


Dentro da margem de dentro
Na raiz e no lamento
Guarda-vento e ribanceira
Margem de certa maneira
De fazer uma viagem
De ultrapassar a barreira
Fazer do vento poeira
Da ribanceira barragem

Fora da margem de dentro
Entre o caule e o rebento
Há sempre um pequeno espaço
Entre movimento e passo
Entre passo e movimento
A corda que faz o laço
A força que faz o braço
Acordar o pensamento

Escorrego na lama do meu passado
Do meu passado presente
Mas não fico na lama, desnorteado
Vou ao fundo da lama, do outro lado
Do outro lado da mente
Do outro lado da gente
Do lado da gente do outro lado
Do lado da gente que vive de frente
Da gente que vive o futuro-presente

Fora da margem de fora
Fica a sombra e a demora
A voz do vento é mudança
Muda o escudo fica a lança
Sem medida para agora
Saltam pulgas na balança
Para o vento, vira a dança
No espaço de uma hora

Dentro da margem de fora
Não há sombra na demora
Estatelada na história
Fica a margem divisória
E no meio da viagem
A voz do vento é memória
De acreditar na vitória
De rebentar a barragem

Escorregas na lama do teu passado
Do teu passado presente
Mas não ficas na lama, desnorteado
Vais ao fundo da lama, do outro lado
Do outro lado da mente
Do outro lado da gente
Do lado da gente do outro lado
Do lado da gente que vive de frente
Da gente que vive o futuro-presente

José Mário Branco


segunda-feira, 8 de abril de 2024

Durar

Eu passarei e apenas terei sido
- frágil destino de minha pobre argila -

Filho, quando eu não existir,
tu serás a minha carne, viva.
Verso, quando eu não falar,
tu, minha palavra inextinta.

Ángela Figuera Aymerich


Nas poucas vezes

Nas poucas vezes
em que fui feliz
senti um medo profundo
     como iria pagar a fatura?

     Só os insensatos
     - ou os não nascidos -
     são felizes sem temor.

Cristina Peri Rossi


Título de uma obra de Yiyun Li

 Querida amiga, desde a minha vida, escrevo à tua vida


segunda-feira, 1 de abril de 2024

Lo imprescindible

Uno aprende que lo imprescindible
no eran los libros
no eran los discos
no eran los gatos
no eran los paraísos en flor
derramándose en las aceras
ni siquiera la luna grande - blanca -
en las ventanas
no era el mar arribando
su rumia rompedora en el malecón
ni los amigos que ya no se ven
ni las calles de la infancia
ni aquel bar donde hacíamos el amor con la mirada.

Lo imprescindible era otra cosa.

Cristina Peri Rossi


quarta-feira, 27 de março de 2024

Yo vengo a ofrecer mi corazón


¿Quién dijo que todo está perdido?
Yo vengo a ofrecer mi corazón
Tanta sangre que se llevó el río
Yo vengo a ofrecer mi corazón

No será tan fácil, ya sé que pasa
No será tan simple como pensaba
Como abrir el pecho y sacar el alma
Una cuchillada del amor

Luna de los pobres siempre abierta
Yo vengo a ofrecer mi corazón
Como un documento inalterable
Yo vengo a ofrecer mi corazón

Y uniré las puntas de un mismo lazo
Y me iré tranquilo, me iré despacio
Y te daré todo y me darás algo
Algo que me alivie un poco más

Cuando no haya nadie cerca o lejos
Yo vengo a ofrecer mi corazón
Cuando los satélites no alcancen
Yo vengo a ofrecer mi corazón

Y hablo de países y de esperanzas
Hablo por la vida, hablo por la nada
Hablo de cambiar esta, nuestra casa
De cambiarla, por cambiar nomás

¿Quién dijo que todo está perdido?
Yo vengo a ofrecer mi corazón

Rodolfo Paez


segunda-feira, 25 de março de 2024

Havia uma palavra

Havia
uma palavra
no escuro. 
Minúscula. Ignorada. 
Martelava no escuro. 
Martelava no chão da água. 
Do fundo do tempo, 
martelava,
contra o muro. 
Uma palavra. 
No escuro. 
Que me chamava.

Eugénio de Andrade


Ainda te falta dizer isto

Ainda te falta
dizer isto: que nem tudo
o que veio
chegou por acaso. Que há
flores que de ti
dependem, que foste
tu que deixaste
algumas lâmpadas
acesas. Que há
na brancura
do papel alguns
sinais de tinta
indecifráveis. E
que esse
é apenas
um dos capítulos do livro
em que tudo
se lê e nada
está escrito.

Albano Martins


terça-feira, 19 de março de 2024

Nuno Júdice (1949-2024)

Um poema de amor

Não sei onde estás, se falas
ou se apenas olhas o horizonte,
que pode ser apenas o de uma
parede de quarto. Mas sei que
uma sombra se demora contigo,
quando me pergunto onde estás:
uma inquietação que atravessa
o espaço entre mim e ti, e
te rouba as certezas de hoje,
como a mim me dá este poema.

Nuno Júdice


quinta-feira, 14 de março de 2024

Emigrantes da quarta dimensão


Dá-me uma ajuda, ó médico das almas
Para escolher em que combate combater
Quem condeno eu à vida, quem condeno eu à morte
Que me podes tu dizer...?

Encostado à árvore do tempo
Folhas vivas, folhas mortas, estações
Nada disto faz sentido
E o sentido do sentido não paga as refeições

Este torpor só tem uma solução
Sejamos deuses, é meter as mãos à obra
E, no fazendo, acontecendo
Deixar ir o coração, que é o que nos sobra

Ao fazer-se o mundo nasce de si próprio
Ser avô é uma alegria atravessada
Dá para rir e para chorar, não temos nada com isso
Mas nada não é nada

Disseste um dia que tudo vale a pena
Tornar as almas mais pequenas é que não
Vamos sobre duas patas, juntar as partes da antena
Espalhadas pelo chão

Fecha a porta, que vem frio lá de fora
Diz o coxo ao despernado, 
E eu aqui

Fui à procura de mim
Encontrei-me mesmo agora
E ainda não fugi

O tempo corre por entre pívias e manhas
E tudo fica cada vez mais como está
Mas, ao correr desta pena, não fico à espera que venhas
Eu já sou o que virá
Eu já sou o que virá

José Mário Branco


sábado, 9 de março de 2024



Pelo sonho é que vamos

Pelo sonho é que vamos,

comovidos e mudos.

Chegamos? Não chegamos?
Haja ou não haja frutos,
pelo sonho é que vamos.

Basta a fé no que temos.
Basta a esperança naquilo
que talvez não teremos.
Basta que a alma demos,
com a mesma alegria,

ao que desconhecemos
e ao que é do dia a dia.

Chegamos? Não chegamos?

– Partimos. Vamos. Somos.

Sebastião da Gama


quinta-feira, 7 de março de 2024

Um lugar

Um lugar onde nos reconhecêssemos
como se chegássemos tarde
a um país estrangeiro
e não precisássemos de perguntar
onde se acendem as luzes
ou se vendem os cigarros
e a cerveja.

José Carlos Barros


Não inventes


Não venhas cá com merdas. Não inventes.
Não olhes nos meus olhos. Sai apenas.
E poupa-me aos discursos eloquentes
e às farsas do adeus. Não faças cenas.

Não digas que lamentas ou que a vida
às vezes é assim: que tudo esquece;
que o mundo e o tempo curam qualquer ferida.
Repito, meu amor: desaparece.

E leva o que quiseres de tudo quanto
um dia suspeitámos partilhar:
os livros, as esculturas em pau-santo,
os discos, os retratos, o bilhar.

Não deixes endereços. Por favor:
eu quero é que te fodas, meu amor.

José Carlos Barros


Gente que não se deixa ficar calada

A palavra nítida, precisa, sem ambiguidade, aquela que se afigura capaz de abrir novas possibilidades para, como os do Bloco dizem, com apreciável clareza, construir uma vida boa.

terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

Engodo

A poesia não pode tratar de mim, nem eu da poesia.
Estou só, o poema está só,
o resto é dos vermes.
Estava à beira das ruas onde moram as palavras,
livros, cartas, notícias,
e esperava.
Sempre esperei.

As palavras, em formas claras ou escuras,
transformaram-se em alguém escuro ou mais claro.
Poemas passam por mim
e reconheciam-se como coisa.
Via-o e via-me.

Esta escravidão não tem fim.
Esquadrões de poemas procuram os seus poetas.
Vão errando sem comando pelo grande distrito das palavras
e esperam o engodo da sua forma
feita, perfeita, fechada,
concentrada e

intangível.

Cees Nooteboom


A ciência do amor

O amor é um acordo que nos escapa
premissas traficadas sem certeza noite fora
em casas devolutas, em temporais, em corpos que não o nosso
aluviões para tentar de forma contínua
num sofrimento corrosivo que ninguém consegue
não chamar também de alegria

Pensamos que quando chegasse as nossas vidas acelerariam
mas nem sempre é assim:
há emoções que nos aceleram
outras que nos abrandam

Um mês ou um século mais tarde
movem-se ainda,
tão subtilmente que não se notam

José Tolentino de Mendonça


Tomar partido

Maldigo la poesía concebida como un lujo
cultural por los neutrales
que, lavándose las manos, se desentienden y evaden.
Maldigo la poesía de quien no toma partido hasta mancharse.

(Gabriel Celaya)




Vuelvo


Con cenizas, con desgarros
con nuestra altiva paciencia,
con una honesta conciencia,
con enfado, con sospecha,
con activa certidumbre,
Pongo el pié en mi país.
Pongo el pié en mi país,
y en lugar de sollozar,
de moler mi pena al viento,
abro el ojo y su mirar,
y contengo el descontento.

Vuelvo hermoso, vuelvo tierno,
vuelvo con mi espera dura,
vuelvo con mis armaduras,
con mi espada, mi desvelo,
mi tajante desconsuelo,
mi presagio, mi dulzura.
Vuelvo con mi amor espeso,
vuelvo en alma y vuelvo en hueso,
a encontrar la patria pura,
al fin del último beso.

Vuelvo al fin sin humillarme,
sin pedir perdón ni olvido.
Nunca el hombre esta vencido,
su derrota es siempre breve,
un estímulo que mueve,
la vocación de su guerra,
pues la raza que destierra
y la raza que recibe,
le dirán al fin que el vive,
dolores de toda tierra.

Patricio Manns


quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

Viver sempre também cansa

Viver sempre também cansa.

O sol é sempre o mesmo e o céu azul
ora é azul, nitidamente azul,
ora é cinzento, negro, quase-verde...
Mas nunca tem a cor inesperada.

O mundo não se modifica.
As árvores dão flores,
folhas, frutos e pássaros
como máquinas verdes.

As paisagens também não se transformam.
Não cai neve vermelha,
não há flores que voem,
a lua não tem olhos
e ninguém vai pintar olhos à lua.

Tudo é igual, mecânico e exato.

Ainda por cima os homens são os homens.
Soluçam, bebem, riem e digerem
sem imaginação.

José Gomes Ferreira


quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

Dogfish

[...]

You don’t want to hear the story
of my life, and anyway
I don’t want to tell it, I want to listen

to the enormous waterfalls of the sun.

And anyway it’s the same old story 
a few people just trying,
one way or another,
to survive.

Mostly, I want to be kind.
And nobody, of course, is kind,
or mean,
for a simple reason.

And nobody gets out of it, having to
swim through the fires to stay in
this world.

[...]

Mary Oliver


Afirmas que brigámos

Afirmas que brigámos. Que foi grave.
Que o que dissemos já não tem perdão.
Que vais deixar aí a tua chave
E vais à cave içar o teu malão.

Mas como destrinçar os nossos bens?
Que livro? Que lembranças? Que papel?
Os meus olhos, bem vês, és tu que os tens.
Não te devolvo – é minha – a tua pele.

Achei ali um sonho muito velho,
Não sei se o queres levar, já está no fio.
E o teu casaco roto, aquele vermelho
Que eu costumo vestir quando está frio?

E a planta que eu comprei e tu regavas?
E o sol que dá no quarto de manhã?
É meu o teu cachorro que eu tratava?
É teu o meu canteiro de hortelã?

A qual de nós pertence este destino?
Este beijo era meu? Ou já não era?
E o que faço das praias que não vimos?
Das marés que estão lá à nossa espera?

Dividimos ao meio as madrugadas?
E a falésia das tardes de Novembro?
E as sonatas que ouvimos de mãos dadas?
De quem é esta briga? Não me lembro.

Rosa Lobato de Faria


Às vezes havia vento

Daquele rio a meus pés estava dito que não conheceria senão a margem onde nenhum barco se demora. Mas era ali que a flor quente do pampilho nos dava por cima do joelho e vinha até à água. Às vezes havia vento.

Eugénio de Andrade


É triste explicar um poema

É triste explicar um poema.
E inútil também.
Um poema não se explica.
É como um soco.
E. se for perfeito,
alimenta-te para toda a vida.

Hilda Hilst


[...]

As casas abandonam-se a si mesmas
fogem de si mesmas
um dia retornas
e a casa não está lá
está apenas o seu molde
casca ou carcaça
sais então à caça
da casa
em viagem
ou ficas lá
onde já não está

Ana Maria Marques


terça-feira, 16 de janeiro de 2024

Carta a Sophia, ou O quinto poema do português errante

Querida Sophia: como os índios do seu poema
também eu procurei o país sem mal.
Em dez anos de exílio o imaginei
como os índios utópicos também eu queria
um outro Portugal em Portugal.
Mas quando regressei eu não o vi
como eles me perdi e nunca achei
o país sem mal.

Talvez a própria vida seja isto
passar montanha e mar sem se dar conta
de que o único sentido é procurar.
Como os índios do seu poema eu não desisto
sou um português errante a caminhar
em busca do país que não se encontra.

Manuel Alegre


Sobre um poema

Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.

Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
- a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.

E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.

- Em baixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.
- E o poema faz-se contra o tempo e a carne.

Herberto Helder


domingo, 7 de janeiro de 2024

Varadouro, Faial, dezembro de 2023 (vista da casa onde viveram Brell e Tordo)


 

Sou doutras coisas

https://www.youtube.com/watch?v=KmOh0L9ECgQ 

Sou doutras coisas
Pertenço ao tempo que há de vir sem ser futuro
E sou amante da profunda liberdade
Sou parte inteira duma vida vagabunda
Sou evadido da tristeza e da ansiedade.

Sou doutras coisas
Fiz o meu barco com guitarras e com folhas
E com o vento fiz a vela que me leva
Sou pescador de coisas belas, de emoções,
Sou a maré que sempre sobe e não sossega

Sou das pessoas que me querem e que eu amo
Vivo com elas por saber quanto lhes quero
A minha casa é uma ilha é uma pedra
Que me entregaram num abraço tão sincero

Sou doutras coisas
Sou de pensar que a grandeza está no homem
Porque é o homem o mais lindo continente
Tanto me faz que a terra seja longa ou curta
Tranco-me aqui por ser humano e por ser gente

Sou doutras coisas
Sou de entender a dor alheia que é a minha
Sou de quem parte com a mágoa de quem fica
Mas também sou de querer sonhar o novo dia
- sou dos lugares onde se baila a chamarrita.

Fernando Tordo
(escrito no Varadouro, Ilha do Faial)


[...]

and all I loved
I loved alone

Edgar Allan Poe


Poema LVII

No te nombro; pero estás en mí
como la música en la garganta del
ruisenor aunque no esté cantando.

Dulce María Loynaz


[...]

Há uma fenda que fende a vida para sempre. Abre-se um buraco no coração e nunca nada ninguém mudará isso.

José Amaro Dionísio


Remedia Amoris

Foi uma péssima ideia a de voltarmos a ver-nos. Não fizemos mais do que trocar insultos e culpar-nos de velhas e sórdidas histórias. Depois ...