domingo, 22 de dezembro de 2024

a minha avó repete:

a minha avó repete:

o tempo cura a ferida
mas não cura a cicatriz

e nenhum outro poema
de nenhum outro poeta
me falou tão alto ao ouvido

Inês Francisco Jacob


Espero um dia

Espero um dia ter de esperar-te, com a ansiedade
dos que perderam tudo ou quase, menos talvez a memória
E espero humildemente vir a merece-te, cometer um ato heroico
e merecer-te, ser outra e a mesma pessoa – e merecer-te
Espero estar bem triste para quando enfim chegares
poder dar-te o mais autêntico: a memória, a tristeza
Espero a grande disponibilidade de poder esperar à vontade
quero o espaço, todo o espaço – e muita falta de ar
Espero a paciência de adivinhar-te e a sufocação de ver-te
ou a graça de poder continuar à espera – indefinidamente
Espero, ardentemente espero que o tempo passe e a morte não exista
e eu apenas à tua espera rodeado de livros, sem perceber nada
Espero, já agora, que no final, como quem completa um puzzle
afinal mais simples do que parecia, tu simplesmente venhas

Rui Caeiro


[...]

Y mirá que apenas nos conocíamos y ya la vida urdía lo necesario para desencontrarnos minuciosamente. Como no sabías disimular me di cuenta en seguida de que para verte como yo quería era necesario empezar por cerrar los ojos.

Julio Cortázar


segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

Canción 19 horas

Quién habla del amor? Yo tengo frío
y quiero ser diciembre.

Quiero llegar a un bosque apenas sensitivo,
hasta la maquinaria del corazón sin saldo.
Yo quiero ser diciembre.

Dormir
en la noche sin vida,
en la vida sin sueños,
en los tranquilizados sueños que desembocan
al río del olvido.

Hay ciudades que son fotografías
nocturnas de ciudades.
Yo quiero ser diciembre.

Para vivir al norte de un amor sucedido,
bajo el beso sin labios de hace ya mucho tiempo,
yo quiero ser diciembre.

Como el cadáver blanco de los ríos,
como los minerales del invierno,
yo quiero ser diciembre.

Luis García Moreno


sábado, 30 de novembro de 2024

Malditos bailarinos sem cabeça

Aqueles de nós
que sendo filhos e netos
de honestíssimos homens do campo
cem vezes
negaram as suas origens
antes e depois do canto dos galos.
Aqueles de nós
que aprenderam com os lobos
as voltas
sombrias
do uivar e do perseguir
e que às crueldades adquiridas
acrescentaram
os refinamentos da perversidade
extirpados
das cavidades dos lamentos.
E aqueles de nós
que compartilharam (e compartilham)
a mesa
e a cama
com feras peludas destrutivas geladas
da imagem da pátria, e que mentiram ou calaram
na hora da verdade, vós,
somente vós, malévolos bailarinos sem cabeça
um dia valereis menos do que uma garrafa partida
lançada
para o fundo de uma cratera da Lua.

Roberto Sosa


El sistema

Los funcionarios no funcionan.
Los políticos hablan pero no dicen.
Los votantes votan pero no eligen.
Los medios de información desinforman.
Los centros de enseñanza enseñan a ignorar.
Los jueces condenan a las víctimas.
Los militares están en guerra contra sus compatriotas.
Los policías no combaten los crímenes, porque están ocupados en cometerlos.
Las bancarrotas se socializan, las ganancias se privatizan.
Es más libre el dinero que la gente.
La gente está al servicio de las cosas.

Eduardo Galeano


Aos vindouros, se os houver...

Vós, que trabalhais só duas horas
a ver trabalhar a cibernética,
que não deixais o átomo a desoras
na gandaia, pois tendes uma ética;

que do amor sabeis o ponto e a vírgula
e vos engalfinhais livres de medo,
sem preçários, calendários, pílula,
jaculatórias fora, tarde ou cedo;

computai, computai a nossa falha
sem perfurar demais vossa memória,
que nós fomos pràqui uma gentalha
a fazer passamanes com a história;

que nós fomos (fatal necessidade!)
quadrúmanos da vossa humanidade.

Alexandre O’Neill


A Elisabeth foi-se embora

Eu que já fui do pequeno-almoço à loucura
eu que já adoeci a estudar morse
e a beber café com leite
não posso passar sem a Elisabeth
porque é que a despediu senhora doutora?
que mal me fazia a Elisabeth
a lavar-me a cabeça
não suporto que a senhora doutora me toque na cabeça
eu só venho cá senhora doutora
para a Elisabeth me lavar a cabeça
só ela sabe as cores os cheiros a viscosidade
de que eu gosto nos shampoos
só ela sabe como eu gosto da água quase fria
a escorrer-me pela cabeça abaixo
eu não posso passar sem a Elisabeth
não me venha dizer que o tempo cura tudo
contava com ela para o resto da vida
a Elisabeth era a princesa das raposas
precisava das mãos dela na minha cabeça
ah não haver facas que lhe cortem o
pescoço senhora doutora eu não volto
ao seu antiséptico túnel
já fui bela uma vez agora sou eu
não quero ser barulhenta e sozinha
outra vez no túnel o que fez à Elisabeth?
a Elisabeth era a princesa das raposas
porque me roubou a Elisabeth?
a Elisabeth foi-se embora
é só o que tem para me dizer senhora doutora
com uma frase dessas na cabeça
eu não quero voltar à minha vida

Adília Lopes



Conserve este bilhete até ao final da viagem

Devo dizer que sempre preferi
os versos feridos pela prosa
da vida, os versos turvos
que tornam mais transparentes
os negros palcos do tempo, a dor
de sermos filhos das estações
e de andarmos por aí, hora após
hora, entre tudo o que declina
e piora. Em suma, os versos
que gritam: Temos as noites
contadas. E também
os que replicam:
Valha-nos isso.

Rui Pires Cabral


domingo, 24 de novembro de 2024

Diante do teu rosto tardio

Diante do teu rosto tardio,
des-
acompanhado entre
noites que também me alteram,
veio pôr-se algo
que já um dia estivera connosco, in-
cólume de pensamentos.

Paul Celan


Ao perder-te

1
Ao perder-te a ti perdemos os dois
eu porque tu eras o que mais amava
e tu porque eu era quem mais te amava.
Mas de nós os dois és tu quem perde mais
porque eu poderei amar outras como te amava a ti
mas a ti não te hão de amar como eu te amava.

2.
Contaram-me que estavas apaixonada por outro
e então fui para o meu quarto
e escrevi um artigo contra o governo
razão pela qual estou preso.

Ernesto Cardenal


Fragmento XIX

Aqueles que são capazes da amizade são os que conseguem compreender de coração a sorte de um desconhecido. Não há outros.

Simone Weil


Oxímoro para uma ausência

1
Há tanto já explicada a tua
ausência tornou-se inexplicável.

Gastão Cruz


segunda-feira, 18 de novembro de 2024

Os poemas?

Os poemas?
Alguns funcionam,
outros não.
Se o que queres
é uma garantia,
então compra um televisor.

Roger Wolfe


Só quero um sítio onde pousar a cabeça.

Só quero um sítio onde pousar a cabeça.
Anoitece em todas as cidades do mundo,
acenderam-se as luzes de corredores sonâmbulos
onde o meu coração, falando, vagueia.

Manuel António Pina


terça-feira, 22 de outubro de 2024

Traduzindo David Berman

Uns encontram
a luz na música
outros nos livros
já outros têm certeza
que ela só brilha no coração

Uns encontram
a luz no sexo
outros na bebida
já outros não encontram
luz nenhuma e levam uma vida no escuro

Daí vem alguém e diz
que isso é meio sombrio
mas não
a luz que a gente não vê
a gente acha que não faz falta

Leonardo Gandolfi


domingo, 13 de outubro de 2024

Se me puderes ouvir

Se me puderes ouvir
O poder ainda puro das tuas mãos
é mesmo agora o que mais me comove
descobrem devagar um destino que passa
e não passa por aqui
à mesa do café trocamos palavras
que trazem harmonias
tantas vezes negadas:
aquilo que nem ao vento sequer
segredamos
mas se hoje me puderes ouvir
recomeça, medita numa viagem longa
ou num amor
talvez o mais belo

José Tolentino de Mendonça



Sempre fui miúda de sonhos descabidos

Sempre fui miúda de sonhos descabidos
miúda grotescamente poética,
chata de coisas que chateiam
de pernas fininhas que depois engrossaram
as miúdas poéticas são bobinas de filmes, riscadas
são gaitas desafinadas
onde muitos passaram os lábios
mas não ficaram
as miúdas poéticas contemplam o suicídio
mesmo depois de uma taça de Corn Flakes
olham os telhados laranja de Lisboa
e pensam noutro sítio qualquer
semeiam flores para terem perfumes
matam-nas, por amá-las de mais
as miúdas poéticas têm cabelos desmoronados
de beatas e perguntas
têm roupa de detergente barato
e as unhas roídas à la carte
tossem devagarinho com medo de
agredir alguém
têm pose de girafa mas não chegam às árvores.

Cláudia R. Sampaio


Poema

Parte: como se tivesses de ser esquecida,
deixando atrás uma imagem de sombra. Não
leves contigo as palavras que trocámos,
como cartas, num instante de despedida; mas
não te esqueças da luz da tarde que os teus
olhos abrigaram. Por vezes, lembrar-me-ei
de ti. É como se, ao voltar-me, ainda me
esperasses, sem um sorriso, para me dizeres
que o tempo tudo resolve. Não te ouço; e,
ao aproximar-me dos teus braços, vejo-te
desaparecer. Mais tarde, penso, isto fará
parte de um poema; mas tu insistes. O amor
chama-nos, de dentro da vida; obriga-nos a
renunciar à imobilidade da alma,
a sacrificar o corpo a um desejo de memória.

Nuno Júdice


segunda-feira, 23 de setembro de 2024

Invictus

Out of the night that covers me,
Black as the pit from pole to pole,
I thank whatever gods may be
For my unconquerable soul.

In the fell clutch of circumstance
I have not winced nor cried aloud.
Under the bludgeonings of chance
My head is bloody, but unbowed.

Beyond this place of wrath and tears
Looms but the Horror of the shade,
And yet the menace of the years
Finds and shall find me unafraid.

It matters not how strait the gate,
How charged with punishments the scroll,
I am the master of my fate,
I am the captain of my soul.

William Ernest Henley


So

So, if you are too tired to speak, sit next to me for I, too, am fluent in silence.

Ron Arnold


quinta-feira, 19 de setembro de 2024

Poema X

Deito fora cavalo, pó, e fumo,
e juro não comer, nem ser, ou ter
outro suor de gente no meu ventre
por cem dias ao menos; ou seja, enquanto
a voz me ouvir, no fax das alturas.
Bem sabeis que não sei amar ninguém
e trago a boca cheia de mãos turvas
e me esqueci do nome de princesa;
que nada do que sou me sabe a certo
nem mesmo a errado, injusto ou justo;
e nunca saberei teologia,
astrologia, física celeste,
o bastante que explique o nascimento
a profusão das árvores e gente
que diz bom-dia quando a gente passa
e, indiferente, segue em frente.

António Franco Alexandre


When you are old

When you are old and grey and full of sleep,
And nodding by the fire, take down this book,
And slowly read, and dream of the soft look
Your eyes had once, and of their shadows deep;

How many loved your moments of glad grace,
And loved your beauty with love false or true,
But one man loved the pilgrim soul in you,
And loved the sorrows of your changing face;

And bending down beside the glowing bars,
Murmur, a little sadly, how Love fled
And paced upon the mountains overhead
And hid his face amid a crowd of stars.

William Butler Yeats


quarta-feira, 18 de setembro de 2024

Olha, Maria


Olha, Maria
Eu bem te queria
Fazer uma presa
Da minha poesia
Mas hoje, Maria
Pra minha surpresa
Pra minha tristeza
Precisas partir

Parte, Maria
Que estás tão bonita
Que estás tão aflita
Pra me abandonar
Sinto, Maria
Que estás de visita
Teu corpo se agita
Querendo dançar

Parte, Maria
Que estás toda nua
Que a lua te chama
Que estás tão mulher
Arde, Maria
Na chama da lua
Maria cigana

Maria maré
Parte cantando
Maria fugindo
Contra a ventania
Brincando, dormindo
Num colo de serra
Num campo vazio
Num leito de rio
Nos braços do mar

Vai, alegria
Que a vida, Maria
Não passa de um dia
Não vou te prender
Corre, Maria
Que a vida não espera
É uma primavera
Não podes perder

Anda, Maria
Pois eu só teria
A minha agonia
Pra te oferecer

Chico Buarque


terça-feira, 27 de agosto de 2024

Força estranha

https://youtube.com/watch?v=jBnedtBKUso

Eu vi um menino correndo, eu vi o tempo
Brincando ao redor do caminho daquele menino
Eu pus os meus pés no riacho
E acho que nunca os tirei
O Sol ainda brilha na estrada e eu nunca passei

Eu vi a mulher preparando outra pessoa
O tempo parou pra eu olhar para aquela barriga
A vida é amiga da arte
É a parte que o Sol me ensinou
O Sol que atravessa essa estrada que nunca passou

Eu vi muitos cabelos brancos na fronte do artista
O tempo não para e, no entanto, ele nunca envelhece
Aquele que conhece o jogo
Do fogo das coisas que são
É o Sol, é a estrada, é o tempo, é o pé e é o chão

Eu vi muitos homens brigando, ouvi seus gritos
Estive no fundo de cada vontade encoberta
E a coisa mais certa de todas as coisas
Não vale um caminho sob o Sol
E o Sol sobre a estrada é o Sol sobre a estrada
É o Sol

Por isso uma força me leva a cantar
Por isso essa força estranha
Por isso é que eu canto, não posso parar
Por isso essa voz tamanha

Caetano Veloso


[...]

Vendo bem, é tudo vão
e perdoa se te digo

que eu só te fiz um favor
ao escolher a solidão
que já trazias contigo.

Rui Pires Cabral


Mote

Passado, o que fazes tu aqui?
E como sabias onde eu estava?

Vítor Nogueira


Ode a Guillaume Apollinaire

No meio dos anjos desembarcados em Marselha
nas margens do Sena, ao ouvido de Marie,
os olhos ardidos de ternura,
leio os teus versos, sem piedade de ti.
 
Leio os teus versos neste outono breve
onde passeiam lentos com água
Lou e Ottomar;
a esperança é ainda violenta,
mas estamos tão cansados de esperar.
 
Leio os teus versos no cemitério
onde as crianças indiferentes
brincam à roda da tua sepultura;
e choro, ao lado de Madeleine,
órfão de ti, órfão de aventura.
 
E tu passas, artilheiro ,
apaixonadamente como um rio
ou touro de amor até aos cornos:
Orfeu cheirando a pólvora e a cio.
 
Passas, e seguem-te saltimbancos,
galdérias, vadios, ciganos e anões;
Annie - ou Jeanne - surge da bruma,
e de longe atira-te uma rosa,
talvez de lume, talvez de espuma.
 
Passas, e entras no paraíso
no meio dos adolescentes tresmalhados;
Martin, Gertrude, Hans e Henri,
com ervas ainda nos cabelos,
cantam coplas de putas e soldados.

Oh Madeleine, não tenhas piedade:
ou mortos somos nós, aqui sentados,
Com a noite nos ombros e embalando
a angústia nos braços decepados.

Eugénio de Andrade


Na luta de classes

Na luta de classes
todas as armas
são boas:
pedras, noite e poemas.

Paulo Leminski


domingo, 21 de julho de 2024

3.

Envolvo-me no silêncio da tua
chegada. O espelho turvo
do teu nome acelera em mim
a evidência deste corpo em
que persisto.
Fazes-me espesso, orgânico,
compacto em torno do absurdo forte
de nos imaginar reciprocamente
despenhados.
Porque sinto que caminho já no ar,
cada passo mais distante,
à espera da tua levitação, que me entendas
a um palmo do peito, enfim caídos
por consequência da rendição.
Entre nós e o mundo há
quinhentos metros
de grito.

Vasco Gato


Estamos aqui para converter

Estamos aqui para converter
os mortos em vivos, buscando
o que sentimos no que a vida
nos vai dando –

a arte sucede, disse o poeta,
a arte sucede quando o poema
é sucedâneo – substância do
pensamento que ganha corpo

e vence o que nos liberta:
a morte:
amar-te será em breve
o que o vício de viver disputa –

conhecendo-te esqueço quem fui
convertendo-me ao escuro
e à profunda arte de viver
encoberto.

Ricardo Marques


Não terás aprendido nada

Não terás aprendido nada
até teres aprendido o transtorno
ou a bênção de ser dispensável.

Ricardo Marques (excerto)


Sobre um improviso de John Coltrane

Ainda espero o amor
como no ringue o lutador caído
espera a sala vazia

primeiro vive-se e não se pensa em nada
não me digam a mim
com o tempo apenas se consegue
chegar aos degraus da frente:
é difícil
é cada vez mais difícil entrar em casa

não discuto o que fizeram de nós estes anos
a verdade é de outra importância
mas hoje anuncio que me despeço
à procura de um país de árvores

e ainda se me deixo ficar
um pouco além do razoável
não ouvem? O amor é um cordeiro
que grita abraçado à minha canção

José Tolentino de Mendonça


Os amigos

Esses estranhos que nós amamos
e nos amam
olhamos para eles e são sempre
adolescentes, assustados e sós
sem nenhum sentido prático
sem grande noção da ameaça ou da renúncia
que sobre a luz incide
descuidados e intensos no seu exagero
de temporalidade pura

Um dia acordamos tristes da sua tristeza
pois o fortuito significado dos campos
explica por outras palavras
aquilo que tornava os olhos incomparáveis

Mas a impressão maior é a da alegria
de uma maneira que nem se consegue
e por isso ténue, misteriosa:
talvez seja assim todo o amor

José Tolentino de Mendonça


Europa, Querida Europa

https://www.youtube.com/watch?v=SXsXpsKBJow

Europa nascida na Ásia profunda
Ó filha do rei fenício Agenor
Que Zeus entranhado no corpo de um touro
Levou-te p'ra Creta cativo de amor

Europa é de Homero
De helénicas formas
Do fórum romano e da cruz
De tantas nações
Ariana e semita
Ventre das descobertas
Da luz
Do diverso sistema do modo diferente
Da era da guerra e agora da paz
És assim querida Europa

Vem que eu te quero toda do mar à montanha
Vem que eu te quero muito mais bela que o mar
Vem vencendo cizânias que os povos sem feudos
Sempre se amaram brilhantes em todo o lugar
O teu chão não é traste
De meros mercados
De pauta aduaneira
Ou cifrão
É um terrunho de almas
Uma ideia
Um desejo
De uma nova maneira
Em fusão
Desfazendo complexos de mapas cor-de-rosa
Sem a má consciência no verso e na prosa
Só por ti querida Europa

Para que sejas tu mesma a decidir o teu uso
Para que sejas tu mesma ainda mais natural
Não me toques o "beat" à americana
Que esse já nós conhecemos na versão original
Aguenta-te firme
Livre de imitações
Espera só mais um pouco
Já vai
O que resta e o que sobra
Aquela mesma saudade
Toda a imaginação
Ainda mais
Não sentes um vago um suave cheiro a sardinhas
A algazarra nas ruas e o troar dos tambores
Somos nós querida Europa

Fausto Bordalo Dias


segunda-feira, 1 de julho de 2024

Olha o fado

https://www.youtube.com/watch?v=G8cVqT7tSkA 

Eu cá sou dos Fonsecas
Eu cá sou dos Madureiras
De ferro o puro sangue
O que me corre nas veias

Nasci da paixão temporal
Do parto dos vendavais
Cresço no fragor da luta
Numa força bruta
P'ra além dos mortais

Mas tenho muitas saudades
Certas penas e desejos
E aquela louca ansiedade
Como um pecado
Meu amor se te não vejo
Olha o fado

Ora é tão vingativo
Ora é tão paciente
Amanhã é comedor
Hoje abstinente
Mentiroso, alcoviteiro
Doce e verdadeiro

Uma vez conquistador
Outra vez vencido
Amanhã é navegante
Hoje é desvalido
Sensual e aventureiro
Doido e bandoleiro


Somos capitães, somos Albuquerques
Nós somos leões dos lobos do mar
De olhos pregados nos céus
De cima dos chapitéus

Somos capitães, somos Albuquerques
Nós somos leões dos lobos do mares
E na verdade que vos dói
É que não queremos ser heróis


Fausto Bordalo Dias


O despertar dos alquimistas

https://www.youtube.com/watch?v=EqUH6BcEtx0

Chegam os magos no claro rasto da lua cheia
Descem duendes pelos caminhos da Cassiopeia
Gnomos e bruxos, génios e divas, tudo e ninguém
Abeiram-se os sábios, os feiticeiros que o mundo tem
Sentam-se amenas mágicas formas, sombras de alguém

Vêm do fundo da paz da terra os sonhadores
Guardam em sonhos ocultas memórias os computadores
Pedreiros-livres, santos e artistas, tudo e ninguém
Sussurram secretas vozes profetas dos temporais
Pairam nos ventos estranhos seres como cristais

Ó roda viva, ó astro grande de almas gentis
Fonte das musas, covil dos homens mais varonis
A gente luta, a gente sofre, tudo e ninguém
Redime as dores, nossos amores, ódios também
Somos teus filhos, ó mar de estrelas
Cuida-nos bem

Fausto Bordalo Dias


Fausto, meu querido Fausto.

 

quinta-feira, 27 de junho de 2024

Ave, Maria

Gosto de pensar, Maria, que também a tua fraqueza sustém a tua força, que soubeste aceitar atravessar tantas incertezas, fazendo aderir o teu coração a uma confiança que não se via. E que, por isso, não te é estranha a minha agitação confusa, a minha indecisão, os medos que em certas horas me agridem, e que tu, que tudo compreendes, sabes abraçar.

Gosto de recordar quanto foi difícil o teu caminho, repleto de obstáculos mais duros do que aqueles que eu enfrento, fustigado por sombras, derivas e dores. E que o teu olhar se tornou um imenso ventre, onde posso depor tudo aquilo que tanto me custa, e que tu, que tudo compreendes, sabes abraçar.

Gosto de contemplar essa tua capacidade de agradecer. De agradecer a anunciação luminosa e as suas ásperas consequências; essas palavras límpidas e depois uma dolorosa sucessão de momentos passados a perguntar-te como será; a brandura da brisa e a dureza do vento.

E que, por isso, tu abraças o meu cansaço de viver com esperança a minha força e a minha fragilidade; aquilo que levo ao termo e aquilo que deixarei incompleto; aquilo que depende ou não depende de mim – e tudo tu compreendes.

Gosto de saber que encontraste os planos de Deus infinitamente superiores a ti e que, mais uma vez, te sentiste pequena, só e não à altura, como tantas vezes eu me sinto. E também por isto, no fundo de mim experimento que me abraças, tu que tudo compreendes.

José Tolentino de Mendonça


A minor bird

I have wished a bird would fly away,
And not sing by my house all day;

Have clapped my hands at him from the door
When it seemed as if I could bear no more.

The fault must partly have been in me.
The bird was not to blame for his key.

And of course there must be something wrong
In wanting to silence any song.

Robert Frost


É o que me interessa

https://www.youtube.com/watch?v=G_O-8jCtSIE 

Daqui desse momento
do meu olhar pra fora
o mundo é só miragem. 
A sombra do futuro
a sobra do passado
assombram a paisagem.

Quem vai virar o jogo
e transformar a perda
em nossa recompensa? 

Quando eu olhar pro lado
eu quero estar cercado
só de quem me interessa. 

Às vezes é um instante
a tarde faz silêncio 
o vento sopra a meu favor. 
Às vezes eu pressinto
e é como uma saudade
de um tempo que ainda não passou.

Me traz o teu sossego
atrasa o meu relógio
acalma a minha pressa... 
Me dá sua palavra
sussurra em meu ouvido
só o que me interessa. 

A lógica do vento
o caos do pensamento
a paz na solidão... 
A órbita do tempo
a pausa do retrato
a voz da intuição. 
A curva do universo
a fórmula do acaso
o alcance da promessa... 
O salto do desejo
o agora e o infinito,
só o que me interessa 

Lenine


Limites

Uma noite me dei conta de que possuía uma história,
contínua, desde o meu nascimento indesligável de mim.
E de que era monótona com sua fieira de lábios, narizes,
modos de voz e gesto repetindo-se.
Até os dons, um certo comum apelo ao religioso
e que tudo pesava. E desejei ser outro.
Minha mãe não tinha letras.
Meu pai frequentou um ginásio por três dias
de proveitoso retiro espiritual.
Tive um mundo grandíssimo a explorar:
‘Demagogia, o que é mesmo que essa palavra é?’
Abismos de maravilha oferecidos em sermãos triunfantes:
‘Tota pulchra est Maria!’
Só quadros religiosos nas paredes.
Só um lugar aonde ir
— e já existiam Nova Iorque, Roma!
Tanta coisa eu julguei inventar,
minha vida e paixão,
minha própria morte,
esta tristeza endócrina resolvida a jaculatórias pungentes,
observações sobre o tempo. Aprendi a suspirar.
A poesia é tão triste! O que é bonito enche os olhos de
lágrimas.

Tenho tanta saudade dos meus mortos!
Estou tão feliz! À beira do ridículo
arde meu peito em brasas de paixão.
Vinte anos de menos, só seria mais jovem.
Nunca, mais amorável.
Já desejei ser outro.
Não desejo mais não.

Adélia Prado


quinta-feira, 30 de maio de 2024

Remedia Amoris

Foi uma péssima ideia a de voltarmos a ver-nos.
Não fizemos mais do que trocar insultos
e culpar-nos de velhas e sórdidas histórias.
Depois foste embora, atirando com a porta,
e eu fiquei sozinho, tão furioso e tão só
que não soube que fazer senão exasperar-me.
Pus-me então a beber. Bebi como os escritores
malditos de há cem anos, como os marinheiros,
e bêbedo andei pela casa deserta,
cansado de viver, buscando-te na sombra
para te culpar a ti por tu ires embora.
Primeiro uma garrafa, depois duas e de repente
fiquei tão mal que consegui esquecer-te.

Luis Alberto de Cuenca


É tarde, meu amor

é tarde, meu amor
estou longe de ti com o tempo, diluíste-te nas veias das marés, na saliva de
meu corpo sofrido
agora, tuas máquinas trituraram-me, cospem-me, interrompem o sono
habito longe, no coração vivo das areias, no cuspo límpido dos corais...
no ventre impossível das cidades noturnas
a solidão tem dias mais cruéis

tentei ser teu, amar-te e amar o falso ouro... quis ser grande e morrer
contigo
enfeitar-me com as tuas luas brancas, pratear a voz em tuas águas de seda...
cantar-te os gestos com ternura
mas não

águas, águas inquinadas pulsando dentro do meu corpo, como um peixe
ferido, louco
em mim a lama... e o visco inocente dos teus náufragos sem nome-de-rua, 
nem estátua-de-jardim-público
aceito o desafio do teu desdém

na boca ficou-me um gosto a salmoura e destruição
apenas possuo o corpo magoado destas poucas palavras tristes que te cantam

Al Berto


segunda-feira, 27 de maio de 2024

M. B.

Querida, hoje saí de casa já muito ao fim da tarde
para respirar o ar fresco que vinha do oceano.
O sol fundia-se como um leque vermelho no teatro
e uma nuvem erguia a cauda enorme como um piano.

Há um quarto de século adoravas tâmaras e carne no braseiro,
tentavas o canto, fazias desenhos num bloco-notas,
divertias-te comigo, mas depois encontraste um engenheiro
e, a julgar pelas cartas, tomaste-te aflitivamente idiota.

Ultimamente têm-te visto em igrejas da capital e da província,
em missas de defuntos pelos nossos comuns amigos; agora
não param (as missas). E alegra-me que no mundo existam ainda
distâncias mais inconcebíveis que a que nos separa.

Não me interpretes mal: a tua voz, o teu corpo, o teu nome
já não mexem com nada cá dentro. Não que alguém os destruísse,
só que um homem, para esquecer uma vida, precisa pelo menos
de viver outra ainda. E eu há muito que gastei tudo isso.

Tu tiveste sorte: onde estarias para sempre – salvo talvez
numa fotografia - de sorriso trocista, sem uma ruga, jovem, alegre?
Pois o tempo, ao dar de caras com a memória, reconhece a invalidez
dos seus direitos. Fumo no escuro e respiro as algas podres.

Joseph Brodsky


[...]

Para escrever uma poesia
que não seja política
devo escutar os pássaros.
Mas para escutar os pássaros
faz falta que cesse o bombardeamento.

Marwan Makhoul
(poeta palestiniano)


Retorno

Has muerto tantas veces; nos hemos despedido
en cada muelle,
en cada andén de los desgarramientos,
amor mío, y regresas
con otra faz de flor recién abierta
que no te reconozco hasta que palpo
dentro de mí la antigua cicatriz
en la que deletreo arduamente tu nombre.

Rosario Castellanos


terça-feira, 21 de maio de 2024

[...]

o corpo onde amo é o corpo onde falto

Mar Becker


Sal

porque tantos amaram o encontro
ama tu a despedida

porque tantos vieram por terra
vem tu como se ao mar

e também porque o mar não se alcança de todo, busca-me sem
esperança

busca-me, simplesmente
busca-me como quem descobrisse que é raro
como o nácar

o sal dos meus olhos

Mar Becker


quinta-feira, 16 de maio de 2024

Cada um lê no poema

Cada um lê no poema
o poema que traz em si.

André Tecedeiro


O tempo agita-se

O tempo agita-se
mas não avança

Pendurada no sótão
desde há séculos
a roupa
ainda não secou

Anise Koltz


Quando pensares em mim

Quando pensares em mim
encontra-me nas coisas
mais simples
nessas coisas leves e profundas
encontra-me no vento
no arco celeste da tarde
e enche de estrelas as bochechas

(...)
por certo é o teu olhar
deixando-se querer como a música

Violeta Luna


sábado, 11 de maio de 2024

Retrato

A pele era o que de mais solitário havia no seu corpo.
Há quem, tendo-a metida
num cofre até às mais fundas raízes,
simule não ter pele, quando
de facto ela não está
senão um pouco atrasada em relação ao coração.
Com ele porém não era assim.
A pele ia imitando o céu como podia.
Pequena, solitária, era uma pele metida
consigo mesma e que servia
de poço, onde além de água ele procurava proteção.

Luís Miguel Nava


terça-feira, 7 de maio de 2024

Revisão ginecológica

- Gravidezes?
Duas.

- Partos?
Dois.

- Vivos?
Dois.

Penso de viés nas que devem dar
respostas menos uniformes
e humildemente dou graças.

Amalia Bautista


quinta-feira, 25 de abril de 2024

Kindergarten

Vino el patrón y nos dejó su niño
casi tres horas nos dejó su niño,
indefenso, sonriente, millonario,
un angelito gordo y sin palabras.

Lo sentamos allí, frente a la máquina
y él se puso a romper su patrimonio.
Cómo un experto desgarró la cinta
y le gustaron efes y paréntesis.

Nosotros, satisfechos como tías,
lo dejamos hacer. Después de todo,
sólo dice «papá». El año que viene
dirá está despedido y no sea idiota.

Mario Benedetti


Oração

Livra-nos, Senhor,
de nos encontrarmos,
anos depois,
com os nossos grandes amores.

Cristina Peri Rossi


Margem de certa maneira


Dentro da margem de dentro
Na raiz e no lamento
Guarda-vento e ribanceira
Margem de certa maneira
De fazer uma viagem
De ultrapassar a barreira
Fazer do vento poeira
Da ribanceira barragem

Fora da margem de dentro
Entre o caule e o rebento
Há sempre um pequeno espaço
Entre movimento e passo
Entre passo e movimento
A corda que faz o laço
A força que faz o braço
Acordar o pensamento

Escorrego na lama do meu passado
Do meu passado presente
Mas não fico na lama, desnorteado
Vou ao fundo da lama, do outro lado
Do outro lado da mente
Do outro lado da gente
Do lado da gente do outro lado
Do lado da gente que vive de frente
Da gente que vive o futuro-presente

Fora da margem de fora
Fica a sombra e a demora
A voz do vento é mudança
Muda o escudo fica a lança
Sem medida para agora
Saltam pulgas na balança
Para o vento, vira a dança
No espaço de uma hora

Dentro da margem de fora
Não há sombra na demora
Estatelada na história
Fica a margem divisória
E no meio da viagem
A voz do vento é memória
De acreditar na vitória
De rebentar a barragem

Escorregas na lama do teu passado
Do teu passado presente
Mas não ficas na lama, desnorteado
Vais ao fundo da lama, do outro lado
Do outro lado da mente
Do outro lado da gente
Do lado da gente do outro lado
Do lado da gente que vive de frente
Da gente que vive o futuro-presente

José Mário Branco


segunda-feira, 8 de abril de 2024

Durar

Eu passarei e apenas terei sido
- frágil destino de minha pobre argila -

Filho, quando eu não existir,
tu serás a minha carne, viva.
Verso, quando eu não falar,
tu, minha palavra inextinta.

Ángela Figuera Aymerich


Nas poucas vezes

Nas poucas vezes
em que fui feliz
senti um medo profundo
     como iria pagar a fatura?

     Só os insensatos
     - ou os não nascidos -
     são felizes sem temor.

Cristina Peri Rossi


Título de uma obra de Yiyun Li

 Querida amiga, desde a minha vida, escrevo à tua vida


segunda-feira, 1 de abril de 2024

Lo imprescindible

Uno aprende que lo imprescindible
no eran los libros
no eran los discos
no eran los gatos
no eran los paraísos en flor
derramándose en las aceras
ni siquiera la luna grande - blanca -
en las ventanas
no era el mar arribando
su rumia rompedora en el malecón
ni los amigos que ya no se ven
ni las calles de la infancia
ni aquel bar donde hacíamos el amor con la mirada.

Lo imprescindible era otra cosa.

Cristina Peri Rossi


quarta-feira, 27 de março de 2024

Yo vengo a ofrecer mi corazón


¿Quién dijo que todo está perdido?
Yo vengo a ofrecer mi corazón
Tanta sangre que se llevó el río
Yo vengo a ofrecer mi corazón

No será tan fácil, ya sé que pasa
No será tan simple como pensaba
Como abrir el pecho y sacar el alma
Una cuchillada del amor

Luna de los pobres siempre abierta
Yo vengo a ofrecer mi corazón
Como un documento inalterable
Yo vengo a ofrecer mi corazón

Y uniré las puntas de un mismo lazo
Y me iré tranquilo, me iré despacio
Y te daré todo y me darás algo
Algo que me alivie un poco más

Cuando no haya nadie cerca o lejos
Yo vengo a ofrecer mi corazón
Cuando los satélites no alcancen
Yo vengo a ofrecer mi corazón

Y hablo de países y de esperanzas
Hablo por la vida, hablo por la nada
Hablo de cambiar esta, nuestra casa
De cambiarla, por cambiar nomás

¿Quién dijo que todo está perdido?
Yo vengo a ofrecer mi corazón

Rodolfo Paez


segunda-feira, 25 de março de 2024

Havia uma palavra

Havia
uma palavra
no escuro. 
Minúscula. Ignorada. 
Martelava no escuro. 
Martelava no chão da água. 
Do fundo do tempo, 
martelava,
contra o muro. 
Uma palavra. 
No escuro. 
Que me chamava.

Eugénio de Andrade


Ainda te falta dizer isto

Ainda te falta
dizer isto: que nem tudo
o que veio
chegou por acaso. Que há
flores que de ti
dependem, que foste
tu que deixaste
algumas lâmpadas
acesas. Que há
na brancura
do papel alguns
sinais de tinta
indecifráveis. E
que esse
é apenas
um dos capítulos do livro
em que tudo
se lê e nada
está escrito.

Albano Martins


terça-feira, 19 de março de 2024

Nuno Júdice (1949-2024)

Um poema de amor

Não sei onde estás, se falas
ou se apenas olhas o horizonte,
que pode ser apenas o de uma
parede de quarto. Mas sei que
uma sombra se demora contigo,
quando me pergunto onde estás:
uma inquietação que atravessa
o espaço entre mim e ti, e
te rouba as certezas de hoje,
como a mim me dá este poema.

Nuno Júdice


quinta-feira, 14 de março de 2024

Emigrantes da quarta dimensão


Dá-me uma ajuda, ó médico das almas
Para escolher em que combate combater
Quem condeno eu à vida, quem condeno eu à morte
Que me podes tu dizer...?

Encostado à árvore do tempo
Folhas vivas, folhas mortas, estações
Nada disto faz sentido
E o sentido do sentido não paga as refeições

Este torpor só tem uma solução
Sejamos deuses, é meter as mãos à obra
E, no fazendo, acontecendo
Deixar ir o coração, que é o que nos sobra

Ao fazer-se o mundo nasce de si próprio
Ser avô é uma alegria atravessada
Dá para rir e para chorar, não temos nada com isso
Mas nada não é nada

Disseste um dia que tudo vale a pena
Tornar as almas mais pequenas é que não
Vamos sobre duas patas, juntar as partes da antena
Espalhadas pelo chão

Fecha a porta, que vem frio lá de fora
Diz o coxo ao despernado, 
E eu aqui

Fui à procura de mim
Encontrei-me mesmo agora
E ainda não fugi

O tempo corre por entre pívias e manhas
E tudo fica cada vez mais como está
Mas, ao correr desta pena, não fico à espera que venhas
Eu já sou o que virá
Eu já sou o que virá

José Mário Branco


sábado, 9 de março de 2024



Pelo sonho é que vamos

Pelo sonho é que vamos,

comovidos e mudos.

Chegamos? Não chegamos?
Haja ou não haja frutos,
pelo sonho é que vamos.

Basta a fé no que temos.
Basta a esperança naquilo
que talvez não teremos.
Basta que a alma demos,
com a mesma alegria,

ao que desconhecemos
e ao que é do dia a dia.

Chegamos? Não chegamos?

– Partimos. Vamos. Somos.

Sebastião da Gama


quinta-feira, 7 de março de 2024

Um lugar

Um lugar onde nos reconhecêssemos
como se chegássemos tarde
a um país estrangeiro
e não precisássemos de perguntar
onde se acendem as luzes
ou se vendem os cigarros
e a cerveja.

José Carlos Barros


Não inventes


Não venhas cá com merdas. Não inventes.
Não olhes nos meus olhos. Sai apenas.
E poupa-me aos discursos eloquentes
e às farsas do adeus. Não faças cenas.

Não digas que lamentas ou que a vida
às vezes é assim: que tudo esquece;
que o mundo e o tempo curam qualquer ferida.
Repito, meu amor: desaparece.

E leva o que quiseres de tudo quanto
um dia suspeitámos partilhar:
os livros, as esculturas em pau-santo,
os discos, os retratos, o bilhar.

Não deixes endereços. Por favor:
eu quero é que te fodas, meu amor.

José Carlos Barros


Gente que não se deixa ficar calada

A palavra nítida, precisa, sem ambiguidade, aquela que se afigura capaz de abrir novas possibilidades para, como os do Bloco dizem, com apreciável clareza, construir uma vida boa.

terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

Engodo

A poesia não pode tratar de mim, nem eu da poesia.
Estou só, o poema está só,
o resto é dos vermes.
Estava à beira das ruas onde moram as palavras,
livros, cartas, notícias,
e esperava.
Sempre esperei.

As palavras, em formas claras ou escuras,
transformaram-se em alguém escuro ou mais claro.
Poemas passam por mim
e reconheciam-se como coisa.
Via-o e via-me.

Esta escravidão não tem fim.
Esquadrões de poemas procuram os seus poetas.
Vão errando sem comando pelo grande distrito das palavras
e esperam o engodo da sua forma
feita, perfeita, fechada,
concentrada e

intangível.

Cees Nooteboom


A ciência do amor

O amor é um acordo que nos escapa
premissas traficadas sem certeza noite fora
em casas devolutas, em temporais, em corpos que não o nosso
aluviões para tentar de forma contínua
num sofrimento corrosivo que ninguém consegue
não chamar também de alegria

Pensamos que quando chegasse as nossas vidas acelerariam
mas nem sempre é assim:
há emoções que nos aceleram
outras que nos abrandam

Um mês ou um século mais tarde
movem-se ainda,
tão subtilmente que não se notam

José Tolentino de Mendonça


Tomar partido

Maldigo la poesía concebida como un lujo
cultural por los neutrales
que, lavándose las manos, se desentienden y evaden.
Maldigo la poesía de quien no toma partido hasta mancharse.

(Gabriel Celaya)




Vuelvo


Con cenizas, con desgarros
con nuestra altiva paciencia,
con una honesta conciencia,
con enfado, con sospecha,
con activa certidumbre,
Pongo el pié en mi país.
Pongo el pié en mi país,
y en lugar de sollozar,
de moler mi pena al viento,
abro el ojo y su mirar,
y contengo el descontento.

Vuelvo hermoso, vuelvo tierno,
vuelvo con mi espera dura,
vuelvo con mis armaduras,
con mi espada, mi desvelo,
mi tajante desconsuelo,
mi presagio, mi dulzura.
Vuelvo con mi amor espeso,
vuelvo en alma y vuelvo en hueso,
a encontrar la patria pura,
al fin del último beso.

Vuelvo al fin sin humillarme,
sin pedir perdón ni olvido.
Nunca el hombre esta vencido,
su derrota es siempre breve,
un estímulo que mueve,
la vocación de su guerra,
pues la raza que destierra
y la raza que recibe,
le dirán al fin que el vive,
dolores de toda tierra.

Patricio Manns


quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

Viver sempre também cansa

Viver sempre também cansa.

O sol é sempre o mesmo e o céu azul
ora é azul, nitidamente azul,
ora é cinzento, negro, quase-verde...
Mas nunca tem a cor inesperada.

O mundo não se modifica.
As árvores dão flores,
folhas, frutos e pássaros
como máquinas verdes.

As paisagens também não se transformam.
Não cai neve vermelha,
não há flores que voem,
a lua não tem olhos
e ninguém vai pintar olhos à lua.

Tudo é igual, mecânico e exato.

Ainda por cima os homens são os homens.
Soluçam, bebem, riem e digerem
sem imaginação.

José Gomes Ferreira


quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

Dogfish

[...]

You don’t want to hear the story
of my life, and anyway
I don’t want to tell it, I want to listen

to the enormous waterfalls of the sun.

And anyway it’s the same old story 
a few people just trying,
one way or another,
to survive.

Mostly, I want to be kind.
And nobody, of course, is kind,
or mean,
for a simple reason.

And nobody gets out of it, having to
swim through the fires to stay in
this world.

[...]

Mary Oliver


Afirmas que brigámos

Afirmas que brigámos. Que foi grave.
Que o que dissemos já não tem perdão.
Que vais deixar aí a tua chave
E vais à cave içar o teu malão.

Mas como destrinçar os nossos bens?
Que livro? Que lembranças? Que papel?
Os meus olhos, bem vês, és tu que os tens.
Não te devolvo – é minha – a tua pele.

Achei ali um sonho muito velho,
Não sei se o queres levar, já está no fio.
E o teu casaco roto, aquele vermelho
Que eu costumo vestir quando está frio?

E a planta que eu comprei e tu regavas?
E o sol que dá no quarto de manhã?
É meu o teu cachorro que eu tratava?
É teu o meu canteiro de hortelã?

A qual de nós pertence este destino?
Este beijo era meu? Ou já não era?
E o que faço das praias que não vimos?
Das marés que estão lá à nossa espera?

Dividimos ao meio as madrugadas?
E a falésia das tardes de Novembro?
E as sonatas que ouvimos de mãos dadas?
De quem é esta briga? Não me lembro.

Rosa Lobato de Faria


Às vezes havia vento

Daquele rio a meus pés estava dito que não conheceria senão a margem onde nenhum barco se demora. Mas era ali que a flor quente do pampilho nos dava por cima do joelho e vinha até à água. Às vezes havia vento.

Eugénio de Andrade


É triste explicar um poema

É triste explicar um poema.
E inútil também.
Um poema não se explica.
É como um soco.
E. se for perfeito,
alimenta-te para toda a vida.

Hilda Hilst


[...]

As casas abandonam-se a si mesmas
fogem de si mesmas
um dia retornas
e a casa não está lá
está apenas o seu molde
casca ou carcaça
sais então à caça
da casa
em viagem
ou ficas lá
onde já não está

Ana Maria Marques


terça-feira, 16 de janeiro de 2024

Carta a Sophia, ou O quinto poema do português errante

Querida Sophia: como os índios do seu poema
também eu procurei o país sem mal.
Em dez anos de exílio o imaginei
como os índios utópicos também eu queria
um outro Portugal em Portugal.
Mas quando regressei eu não o vi
como eles me perdi e nunca achei
o país sem mal.

Talvez a própria vida seja isto
passar montanha e mar sem se dar conta
de que o único sentido é procurar.
Como os índios do seu poema eu não desisto
sou um português errante a caminhar
em busca do país que não se encontra.

Manuel Alegre


Sobre um poema

Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.

Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
- a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.

E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.

- Em baixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.
- E o poema faz-se contra o tempo e a carne.

Herberto Helder


domingo, 7 de janeiro de 2024

Varadouro, Faial, dezembro de 2023 (vista da casa onde viveram Brell e Tordo)


 

Sou doutras coisas

https://www.youtube.com/watch?v=KmOh0L9ECgQ 

Sou doutras coisas
Pertenço ao tempo que há de vir sem ser futuro
E sou amante da profunda liberdade
Sou parte inteira duma vida vagabunda
Sou evadido da tristeza e da ansiedade.

Sou doutras coisas
Fiz o meu barco com guitarras e com folhas
E com o vento fiz a vela que me leva
Sou pescador de coisas belas, de emoções,
Sou a maré que sempre sobe e não sossega

Sou das pessoas que me querem e que eu amo
Vivo com elas por saber quanto lhes quero
A minha casa é uma ilha é uma pedra
Que me entregaram num abraço tão sincero

Sou doutras coisas
Sou de pensar que a grandeza está no homem
Porque é o homem o mais lindo continente
Tanto me faz que a terra seja longa ou curta
Tranco-me aqui por ser humano e por ser gente

Sou doutras coisas
Sou de entender a dor alheia que é a minha
Sou de quem parte com a mágoa de quem fica
Mas também sou de querer sonhar o novo dia
- sou dos lugares onde se baila a chamarrita.

Fernando Tordo
(escrito no Varadouro, Ilha do Faial)


[...]

and all I loved
I loved alone

Edgar Allan Poe


Poema LVII

No te nombro; pero estás en mí
como la música en la garganta del
ruisenor aunque no esté cantando.

Dulce María Loynaz


[...]

Há uma fenda que fende a vida para sempre. Abre-se um buraco no coração e nunca nada ninguém mudará isso.

José Amaro Dionísio


a minha avó repete:

a minha avó repete: o tempo cura a ferida mas não cura a cicatriz e nenhum outro poema de nenhum outro poeta me falou tão alto ao ouvido Inê...