sábado, 19 de dezembro de 2020
sexta-feira, 18 de dezembro de 2020
Por isso
é simplesmente
deitares-te no chão
e olhar o céu
podes crer
também isso é poesia
e basta.
domingo, 6 de dezembro de 2020
Composição de lugar
Não caibo nesta tarde que me desfolhas
sobre o coração. Renovam-se-me sob os passos
todos os caminhos e o dia é uma página que lida
e soletrada descubro inatingível como o vento a rua e a vida
As mesmas mãos que antes desfraldavam
domésticas insígnias abaixo dos beirais
emprestam novos pássaros às árvores
Pétala a pétala chego à corola desta minha hora
Roubo o meu ser a qualquer outro tempo
não há em mim memória de alguma morte
em nenhum outro lugar me edifiquei
Arredondas à minha volta os lábios para me dizer
Recuo de repente àquele princípio que em tua boca tive
Eu sei que só tu sabes o meu nome
tentar sabê-lo foi afinal o único
esforço importante da minha vida
Sinto-me olhado e não tenho mais ser
que ser visto ti. Há no meu ombro lugar
para o teu cansaço e a minha altura é para ser medida
palmo a palmo pela tua mão ferida
Ruy Belo
segunda-feira, 30 de novembro de 2020
Enganam-se
José Tolentino de Mendonça
Nada sabemos
são os sentidos ou os sentimentos,
se viaja o comboio ou a nossa ânsia,
se as cidades mudam de lugar
ou se todas as casas são a mesma.
Nunca saberemos se quem nos espera
é quem deve esperar-nos, nem sequer
quem temos de esperar no meio de uma
plataforma fria. Nada sabemos.
Avançamos às cegas, perguntando
se isto que se parece com a alegria
é apenas o sinal inequívoco
de que nos enganamos novamente.
Outono
cavam fundo no corpo,
instalam-se nas fendas; às vezes
por aí ficam com a chuva
apodrecendo;
ou então deixam marcas; as putas,
difíceis de apagar, de tão negras,
duras.
Eugénio de Andrade
domingo, 29 de novembro de 2020
Já me esqueci da água agora só vigio
os aviões que chegam ou levantam
na pista paralela ao horizonte,
pilotos sonolentos, embrulhados no frio,
a voz no microfone destrocada
por transparentes rotas rente às nuvens.
bem decifrar o rosto, os gestos lentos,
a boca, que beijaram os segredos.
vou ver se nesta tarde me despenho,
onde é mais fácil enganar o tempo,
onde a rocha da água se separa.
o vago comité a que pertence
a sábia ciência de contar os vivos,
talvez passe a manhã ouvindo a rádio
em vastas ambições e pensamentos;
vou ver se nesta tarde me desenho.
sexta-feira, 27 de novembro de 2020
Chet Baker, 1988
o fizera. E foi, também na voz,
verdade (a verdade é sempre
uma coisa muito triste;
faltavam-lhe duas semanas para morrer).
Comprei o disco quase vinte anos
depois, e só por difícil acaso
o fiz naquela cidade, com a
mesma ou nenhuma vontade de morrer,
agora que volta a dizer stay
little valentine e a chuva torna
as bicicletas uma metáfora evitável,
contrária à ferrugem do que sinto.
Sim, é isso: ninguém nos espera
- e nem todos sabemos voar, sofrer,
cantar assim o desconforto.
Nada deveria ser tão triste,
até porque nada deveria ser.
Mas não me roubem, por favor, esta canção.
domingo, 22 de novembro de 2020
Penso que neste momento
Penso que neste momento
que só eu me penso
e se agora morresse
ninguém, nem eu, me pensaria.
E aqui começa o abismo,
como quando adormeço.
Sou o meu próprio apoio e tiro-mo.
Contribuo para forrar tudo de ausência.
Será talvez por isto
que pensar num homem
é assim como salvá-lo.
(Trad. A.M.)
Roberto Juarroz
sábado, 21 de novembro de 2020
sexta-feira, 20 de novembro de 2020
Ele pode comparar-te
fiquei a pé toda a noite para o ver.
Billy Collins
Convida-me só para jantar
Convida-me só para jantar
num restaurante sossegado
numa mesa de canto
e fala devagar
e fala devagar
eu quero comer uma sopa quente
não quero comer mariscos
os mariscos atravancam-me o prato
e estou cansada para os afastar
fala assim devagar
devagar
não é preciso dizeres que sou bonita
mas não me fales de economia e de política
fala assim devagar
devagar
deita-me o vinho devagar
quando o meu copo estiver vazio.
Estou convalescente
sou convalescente
não é preciso que o percebas
mas por favor não faças força em mim.
Fala, estás-me a dar de jantar
estás-me a pôr recostada à almofada
estás-me a fazer sorrir ao longe
fala assim devagar
devagar
devagar.
sexta-feira, 30 de outubro de 2020
Adoro o som da tua voz
como um pequeno saxofone
que me diz o que eu nunca poderia saber
a não ser que cavasse um buraco bem fundo
até ao centro de mim mesmo.
Billy Collins
sábado, 24 de outubro de 2020
Dissesse eu, de outra maneira
Dissesse eu, de outra maneira,
que as cerejeiras tardam mil luas a florir,
haveria palavras doces que o dissessem?
Toda a tarde te esperei e não vieste.
A semana, o mês, o inverno, o meu aniversário,
as últimas chuvas antes do verão,
e não vieste.
Conto os teus passos ausentes no pensamento
para entreter a espera.
Há uma pedra solta no passeio.
Um vento súbito atravessa as copas do arvoredo.
Saberás que te espero fielmente,
um chá quente sobre a mesa posta
e uma lâmina gasta no lugar do coração?
Como os anónimos do vício permaneço
vigilante:
só hoje, esperei por ti e não vieste.
Violeta Runa
quarta-feira, 14 de outubro de 2020
A recusa do amor
Não temos uma arma apontada à cabeça,dizias-me.
impossível. Eu ao teu lado com aquela dor
no pescoço, imóvel, cuidadosa, o cano frio
na minha testa, a vida a estoirar-me
a qualquer momento. Era impossível que não visses
o revólver que levava sempre comigo. Por isso dormia
virada para o outro lado, não era por me dar mais jeito
aquele lado, era por me dar mais jeito
não morrer quando nos víamos,
era para dormir contigo só mais esta vez,
sempre só mais esta vez,
sempre com o meu amor a virar-se de costas,
sempre com o teu amor apontado à cabeça.
segunda-feira, 12 de outubro de 2020
domingo, 11 de outubro de 2020
E é nisto que se resume o sofrimento
cai a flor, — e deixa o perfume
no vento!
sábado, 10 de outubro de 2020
sexta-feira, 9 de outubro de 2020
Eu não sei o que se passa contigo...
e abre; só alguma coisa dentro de mim compreende
a voz dos teus olhos é mais profunda do que todas as rosas)
E. E. Cummings
quinta-feira, 8 de outubro de 2020
O poder de Circe
Nunca transformei ninguém em porco.
Algumas pessoas são porcos; faço-os
parecerem-se a porcos.
Estou farta do vosso mundo
que permite que o exterior disfarce o interior.
Os teus homens não eram maus;
uma vida indisciplinada
fez-lhes isso. Como porcos,
sob o meu cuidado
e das minhas ajudantes,
tornaram-se mais dóceis.
Depois reverti o encanto,
mostrando-te a minha boa vontade
e o meu poder. Eu vi
que poderíamos ser aqui felizes,
como o são os homens e as mulheres
de exigências simples. Ao mesmo tempo,
previ a tua partida,
os teus homens, com a minha ajuda, sujeitando
o mar ruidoso e sobressaltado. Pensas
que algumas lágrimas me perturbam? Meu amigo,
toda a feiticeira tem
um coração pragmático; ninguém
vê o essencial que não possa
enfrentar os limites. Se apenas te quisesse ter
podia ter-te aprisionado.
quarta-feira, 7 de outubro de 2020
Os milagres acontecem
e nunca estou em casa
quando o carteiro passa.
Hoje, abriu a primeira flor
e eu disse é um sinal.
Olho em volta: estou só
trago esta sombra comigo.
segunda-feira, 5 de outubro de 2020
Mar
Amo com um amor mais forte e mais profundo
Aquela praia extasiada e nua,
Onde me uni ao mar, ao vento e à lua.
Cheiro a terra as árvores e o vento
Que a Primavera enche de perfumes
Mas neles só quero e só procuro
A selvagem exalação das ondas
Subindo para os astros como um grito puro.
domingo, 4 de outubro de 2020
sábado, 3 de outubro de 2020
Um anjo diz que sim, o outro diz que não.
O poeta diz talvez. E tu que dizes? Tu que vives
a vida de fora para dentro, comandado
por estímulos que entram maquilhados no teu sono e no teu sonho
e que acordam contigo sem alguma vez terem despertado.
Sofres porque habitas um palácio imaginário.
Sofres porque sabes como te chamas mas ignoras quem és.
Sofres porque fechas as janelas da tua casa e as janelas do teu espírito
mas a vida não pára de preparar surpresas
para quando abrires a porta na manhã seguinte
Sofres porque cada orgasmo é uma festa maravilhosa que te estremece apenas o corpo.
Sofres porque cada satisfação tua foi atingida com um imenso rol de profundas insatisfações.
Sofres porque quase sempre o que tu desejas não é o que tu queres.
Sofres porque não vais além do coração e porque o coração não vai além de ti. E porque ambos se atrapalham.
Sofres porque tens medo e porque tens medo de ter medo.
Sofres porque tens dificuldade em olhar para a frente, partir de ti para um outro tu,
e porque olhar fixamente para trás te pode transformar numa estátua de sal.
Sofres porque a tua honestidade é desonesta e a tua consciência é um juiz
que tu mesmo te encarregas de corromper. Sofres
porque a tua infâmia pode preencher a primeira página
e porque a primeira página nunca fala de ti nem que seja para mostrar a tua infâmia.
Sofres porque é grande a sensação de ameaça
e porque enorme é o tédio e porque é fundo o desespero.
Sofres porque as razões porque és feliz são as mesmas razões da tua infelicidade.
Sofres porque é amarga a vida e doce a ilusão e insonsa a esperança.
Sofres porque sabes tudo isto e desconheces tudo isto
e porque o conhecimento das coisas e o desconhecimento das coisas
são sempre a primeira e a última das razões
para invocares o teu inútil sofrimento.
sexta-feira, 2 de outubro de 2020
quarta-feira, 30 de setembro de 2020
Elementário
é que o poema consiste
em falar do que não pode ser dito a quem
se quer dizer
ou o verdadeiro sentido das palavras
é que o poema consiste
em não falar do que pode ser dito a quem
se quer dizer
ou o verdadeiro sentido das palavras
é que o poema consiste
em não falar do que não pode ser dito a quem
se quer dizer
ou o verdadeiro sentido das palavras
é que o poema consiste
em falar do que pode ser dito a quem
se não quer dizer
isto, claro, partindo do princípio
de que há um sentido das palavras,
verdadeiro, um poema e um
a quem se queira dizer.
domingo, 27 de setembro de 2020
Houvesse um sinal a conduzir-nos
Houvesse um sinal a conduzir-nos.
E unicamente ao movimento de crescer nos guiasse. Termos das árvoresA incomparável paciência de procurar o alto
A verde bondade de permanecer
E orientar os pássaros.
Daniel Faria
sexta-feira, 25 de setembro de 2020
segunda-feira, 21 de setembro de 2020
Elogio da mulher invisível
parece uma empregada doméstica
perdeu toda a dignidade no dia-a-dia
não podia ter escolhido roupas mais feias, desirmanadas, repulsivas
vem defender a tese como se estivesse em roupão
o corpo disforme esquecido
talvez não muito limpo
mas talvez isto seja só uma ideia
por não se depilar e deixar o cabelo crescer
sem nunca lhe dar forma
esta mulher estuda pensa
acolhe os nossos filhos
acarinha-os quando não estamos
ensina-lhes o que nós sabemos
mas não somos capazes de ensinar
chamam-lhe primária
continuam a chamar-lhe primária
mas ela sabe os segredos
truques que nos escapam
nós pais e mães
nós os das profissões mais ou menos liberais
que nos libertaram da escravatura e nos voltaram
a lançar nela de formas mais perversas
nós aparentemente sensatos, requintados
cada vez mais desorbitados
ignoramos o que ela faz todos os dias
como abraça trinta crianças de uma vez só
no nevoeiro mais matinal e no coração da canícula
estrada fora pelos dias dentro
entra na cabeça e no peito dos nossos filhos
e deixa a eterna semente da confiança
como o animal prenhe
do futuro indefinido mais que perfeito descomposto
Rosa Oliveira
terça-feira, 8 de setembro de 2020
segunda-feira, 24 de agosto de 2020
Bolor
Os versos
que te digam
a pobreza que somos,
o bolor nas paredes
deste quarto deserto,
o orvalho da amargura
na flor
de cada sonho
e o leito desmanchado
o peito aberto
a que chamaste
amor.
Carlos de Oliveira
As coisas deste mundo?
do precipício concreto
de um abraço.
Manuel de Freitas
sexta-feira, 14 de agosto de 2020
sexta-feira, 31 de julho de 2020
quinta-feira, 30 de julho de 2020
Primeiro encontro
praias da marginal
pelas noites de inverno,
a indiferença das coisas
em que um dia fomos grandes.
Não exijo agora que te molhes,
- a água está tão fria - ou que me
dês uma das tuas mãos. Gostava,
por uma vez, que este mar
sossegasse connosco dentro.
Rema, temos tempo.
Ainda que seja sempre tarde
para irmos mais longe,
podemos seguir
o balanço que nos separa.
sábado, 25 de julho de 2020
Ao fim
as que conseguem alegrar a alma.
São também muito poucas as pessoas
que tocam nosso coração e menos
ainda as que o tocam muito tempo.
E ao fim são pouquíssimas as coisas
que em nossa vida a sério nos importam:
poder amar alguém, sermos amados
e não morrer depois dos nossos filhos.
Amalia Bautista
terça-feira, 23 de junho de 2020
domingo, 14 de junho de 2020
Contra a poesia pura
e de pássaros
Falemos antes de gaiolas
que é tempo de conquistar o céu
quinta-feira, 11 de junho de 2020
Uma vez quiseram-me louca, a arder
Uma vez quiseram-me louca, a arder
e eu ardi com a discrição de
um fogo posto
porque a cura vai na mesma direcção
que a nossa febre
Ateei-me como um relâmpago inesperado
à luz do dia
Eu parecia uma basílica em chamas
de altar por estrear, a arder sozinha
Sempre me recusei a arder como os outros
Ardam-se mais à esquerda ou mais à direita
mais a vento de sul ou de norte,
mas labaredem-se, sejam fogos que ardem!
Porque pior que a desdita loucura
é toda a gente andar em brasa
mas ninguém chegar a incêndio
E no fim são todos cinza
terça-feira, 2 de junho de 2020
Pensei
depois pensei
que a liberdade vinha com o tempo
depois pensei
que a liberdade vinha com o dinheiro
depois pensei
que a liberdade vinha com o poder
depois percebi
que a liberdade não vem
não é coisa que lhe aconteça
terei sempre de ir eu.
sexta-feira, 29 de maio de 2020
Z
e um pequeno pássaro
e depois longo tempo eu te perdi de vista
meus braços são dois espaços enormes
os meus olhos são duas garrafas de vento
e depois eu te conheço de novo numa rua isolada
minhas pernas são duas árvores floridas
os meus dedos uma plantação de sargaços
da cor do jardim.
António Maria Lisboa
quarta-feira, 27 de maio de 2020
Trilho de luz
eu acendia o meu brilho
dizia do sol o fio
seguindo da luz o trilho
*
Lembrava o abandonono
recriava a rebeldia
abria com o estilete
de Pandora a caixa fria
*
Confessava o meu
mistério
de solidão reclusa
*
Dava a ver a estrela-norte
mas também a dor infusa
contida no seu desnorte
Maria Teresa Horta
quarta-feira, 13 de maio de 2020
Rigor
o lugar do rigor
rasgando a alma
*
Entre aquilo que és e não o sendo
no turvado olhar
jamais se acalma
*
Percorro solitária o meu invento
e se à razão sempre cedo
e tudo arrisco
*
Ao destino retiro o ferro da paixão
mas da fogueira do corpo
não desisto
Maria Teresa Horta
sábado, 2 de maio de 2020
Elementário
O verdadeiro sentido das palavras
é que o poema consiste
em falar do que não pode ser dito a quem
se quer dizer
ou o verdadeiro sentido das palavras
é que o poema consiste
em não falar do que pode ser dito a quem
se quer dizer
ou o verdadeiro sentido das palavras
é que o poema consiste
em não falar do que não pode ser dito a quem
se quer dizer
ou o verdadeiro sentido das palavras
é que o poema consiste
em falar do que pode ser dito a quem
se não quer dizer
isto, claro, partindo do princípio
de que há um sentido das palavras,
verdadeiro, um poema e um
a quem se queira dizer.
Daniel Jonas
versão errática:
Thy tender body to my deep delight
ANON, 1560
versão errática:
mão tão feliz de ter tocado
teu corpo atento ao meu desejo
Herberto Helder
Soneto oblíquo em rima, mas, de facto,
era consulta a meteorologia:
preparar coração, achar ali,
na coluna do lado, em geografia
de página, ou écran: coisa parecida
o sol bem desenhado, os raios com
a palavra por baixo, indicativa
de que amanhã o tempo ia ser bom.
Mas não era a palavra, era o ruído,
eu sem saber o que fazer comigo,
e o sol, caracol longo a demorar-
-se - assim era ele oblíquo de rimar;
porque eu sabia que o que ali rimava
estava em saber que vinhas. E ficavas.
Ana Luísa Amaral
Sombra de um gato
Como se nota a velhice de um gato? No caso do Barnabé, a resposta, é simples: deixou praticamente de me atacar (era o seu desporto preferido, entre as seis da tarde e as duas da manhã), o pêlo foi perdendo espessura e está bastante mais magro. Os gestos, como em qualquer velhice, tornaram-se lentos e espaçados. Embaciaram ainda, numa tristeza muda, os olhos que há quinze anos me acompanham.
*
Espero, amigo gato, que não seja este o último Verão que passamos juntos. Também eu sou agora um torvelinho de cãs e de rugas breves, espalhadas sobre um rosto débil. Talvez já me pertença, de pleno direito, a hora desta terrível pergunta: «Por quanto tempo poderemos amá-los, a esses jovens, sem os ofender?». Gostava de te falar de outro assunto, de encontrar um tema diferente para a poesia de que já não sou capaz. A minha mão pousa sobre o teu dorso cansado, enquanto a noite nos cerca. Que se foda e refoda a literatura.
Manuel de Freitas
domingo, 26 de abril de 2020
Onde quer que o encontres
escrito, rasgado ou desenhado:
na areia, no papel, na casca de
uma árvore, na pele de um muro,
no ar que atravessar de repente
a tua voz, na terra apodrecida
sobre o meu corpo - é teu,
para sempre, o meu nome.
Maria do Rosário Pedreira
sábado, 25 de abril de 2020
O poema ensina a cair
desde perder o chão repentino sob os pés
como se perde os sentidos numa
queda de amor, ao encontro
do cabo onde a terra abate e
a fecunda ausência excede
até à queda vinda
da lenta volúpia de cair,
quando a face atinge o solo
numa curva delgada subtil
uma vénia a ninguém de especial
ou especialmente a nós uma homenagem
póstuma.
quinta-feira, 23 de abril de 2020
Para um amigo tenho sempre um relógio
esquecido em qualquer fundo de algibeira.
Mas esse relógio não marca o tempo inútil.
São restos de tabaco e de ternura rápida.
É um arco-íris de sombra, quente e trémulo.
É um copo de vinho com o meu sangue e o sol.
Assalto
não sabíamos nada um do outro
e as ramagens das árvores
quase tocavam a tua janela.
Quando desistimos de tomar o mundo de assalto
não falámos disso
e ouvimos discos de 33 rotações.
Nunca começámos do chão
e agora é tarde.
A erva cresce depressa
e em breve
é muito alta.
Aos 50 anos sou um ser perplexo
mas radicalmente perplexo. Não sei
se amo a vida ou a detesto. Se desejo
ou não desejo continuar vivendo.
Se amo ou não amo aqueles que amo,
se odeio ou não odeio os que detesto.
Se me quero patriarca, pai de família, como acabei sendo,
ou se me quero livre pelas ruas nocturnas
como quando não acabei de descobri-las
em décadas de andá-las, perseguindo
sequer o amor mas corpos, corpos, corpos.
Sou de Europa ou de América? De Portugal
ou Brasil? Desejo que toda a humanidade
seja feliz como queira, ou quero que ela morra
do cogumelo atómico prometido e possível?
Não sei. Definitivamente, não sei.
Julgas que estou deitado num leito de rosas?
— perguntava ao companheiro de tortura Cuauhtemoc.
Mas, mesmo destituído, preso e torturado,
ele era o Imperador, descendente dos deuses.
Eu não descendo dos deuses. O corpo dói-me,
que envelhece. O espírito dói-me de um cansaço físico.
As belezas de alma, seja de quem forem, deixaram de interessar-me.
Resta a poesia que me enoja nos outros
a não ser antigos, limpos agora do esterco
de terem vivido. E eu vivi tanto
que me parece tão pouco. E hei-de morrer
desesperado por não ter vivido. Aos 50 anos
nem sequer a raiva dos outros ainda me sustenta
o gosto e a paciência de estar vivo.
Outros que tentem e descubram:
que digam ou não digam é-me indiferente.
domingo, 19 de abril de 2020
Viola partida
Bolor
que te digam
a pobreza que somos,
o bolor nas paredes
deste quarto deserto,
o orvalho da amargura
na flor
de cada sonho
e o leito desmanchado
o peito aberto
a que chamaste
amor.
Carlos de Oliveira
Se eu pudesse
ter-te em vez dos versos,
ou ter um verso
em vez de ti,
ou ter os olhos
como os de um gato
para perscrutar a noite
onde isso se decide.
Pedro Mexia
sexta-feira, 17 de abril de 2020
Paixão
como somos vulneráveis
diante da paixão
*
tentamos então recuar
ainda
um tudo nada
A olharmos a nossa
própria imagem
tentando adiar sem pressa
*
o coração
Maria Teresa Horta
Sabes que um papel pode...?
Simples papel em branco,
carta não escrita
que hoje me faz sangrar.
sábado, 11 de abril de 2020
Não te chamo para te conhecer
Eu quero abrir os braços e sentir-te
Como a vela de um barco sente o vento
Não te chamo para te conhecer
Conheço tudo à força de não ser
Peço-te que venhas e me dês
Um pouco de ti mesmo onde eu habite
Homens que são como lugares mal situados
Que são como sítios fora dos mapas
Como pedras fora do chão
Como crianças órfãs
Homens sem fuso horário
Homens agitados sem bússola onde repousem
Homens que são como fronteiras invadidas
Que são como caminhos barricados
Homens que querem passar pelos atalhos sufocados
Homens sulfatados por todos os destinos
Desempregados das suas vidas
Homens que são como a negação das estratégias
Que são como os esconderijos dos contrabandistas
Homens encarcerados abrindo-se com facas
Homens que são como danos irreparáveis
Homens que são sobreviventes vivos
Homens que são como sítios desviados
Do lugar
segunda-feira, 6 de abril de 2020
Posso estar aqui
eu posso estar aqui perfeitamente pobre
um círio me acendi espora aguda
o vento ritmo negro assassinou-o
posso estar aqui
– o musgo é lento como a sombra –
e sei de cor a voz cega das canções
(viola de silêncio acorda-me)
que eu posso estar aqui perfeitamente pedra
insone
e um longo segredo impessoal
bordando a minha solidão
Obrigado
enquanto a noite cai dizemos obrigado
parados nas pontes curvados sobre as grades de proteção
nos terraços de vidro
com a boca cheia de comida a olhar para o céu
dizemos obrigado
de pé junto à água agradecemos
de pé à janela olhando lá para fora
na nossa direção
de regresso de uma série de hospitais de regresso de um assalto
depois dos funerais dizemos obrigado
depois das notícias dos mortos
quer os conhecêssemos ou não dizemos obrigado
pelo telefone dizemos obrigado
nos vãos das portas e nos bancos de trás dos automóveis e nos elevadores
com a memória das guerras e a polícia à porta
e as pancadas nas escadas dizemos obrigado
nos bancos dizemos obrigado
nos rostos dos funcionários e dos ricos
e de todos aqueles que nunca mudarão
continuamos a dizer obrigado obrigado
enquanto os animais morrem à nossa volta
os sentimentos perdidos dizemos obrigado
enquanto as florestas desaparecem com mais rapidez que os minutos
dizemos obrigado
enquanto as palavras caem como células do cérebro
enquanto as cidades crescem sobre nós
cada vez mais rápido dizemos obrigado
embora ninguém escute dizemos obrigado
dizemos obrigado e acenamos
no escuro
W. S. Merwin
segunda-feira, 30 de março de 2020
Alfarrabista
Os poetas, regra geral, sempre foram pobres,
mas a sua poesia vale muito mais do que
o peso de mil resmas de rouxinol em oiro.
Isto, evidentemente, pouca gente sabe.
Se muita gente soubesse
os poetas seriam todos ricos.
O objeto
o somenos que elas são.
Se for um copo é um copo
se for um cão é um cão.
Mas quando o copo se parte
e quando o cão faz ão ão?
Então o copo é um caco
e um cão não passa dum cão.
Quatro cacos são um copo
quatro latidos um cão.
Mas se forem de vidraça
e logo foram janela?
Mas se forem de pirraça
e logo forem cadela?
E se o copo for rachado?
E se o cão não tiver dono?
Não é um copo é um gato
não é um cão é um chato
que nos interrompe o sono.
E se o chato não for chato
e apenas cão sem coleira?
E se o copo for de sopa?
Não é um copo é um prato
não é um cão é literato
que anda sem eira nem beira
e não ganha para a roupa.
E se o prato for de merda
e o literato de esquerda?
Parte-se o prato que é caco
mata-se o vate que é cão
e escreveremos então
parte prato sape gato
vai-te vate foge cão
Assim se chamam as coisas
pelos nomes que elas são.
Ary dos Santos
XXVIII
um canal de sangue e virtude. Ligar o mundo pela fronteira incendiada,
destruída até ao raso chão. Escutar. Rente ao chão depositar o rosto,
depois seguir caminho, como quem do chãopede um segredo, uma verdade
num corpo e numa alma, como nos disse o vidente.
Assim deposito o rosto nesse chão
e escuto atentamente a anónima violência,
o metálico som da cidade.
terça-feira, 24 de março de 2020
Ausência
Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto.
No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida
E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz.
Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado
Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados
Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada
Que ficou sobre a minha carne como uma nódoa do passado.
Eu deixarei... tu irás e encostarás a tua face em outra face
Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noite
Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa
Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço
E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado.
Eu ficarei só como os veleiros nos portos silenciosos
Mas eu te possuirei mais que ninguém porque poderei partir
E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas
Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.
Vinícios de Moraes
O corpo não espera
tão reticente e que interroga a sós
a tépida secura acetinada,
a que palpita por adivinhada
em solitários movimentos vãos;
este pousar em que não estamos nós,
mas uma sêde, uma memória, tudo
o que sabemos de tocar desnudo
o corpo que não espera; este pousar
que não conhece, nada vê, nem nada
ousa temer no seu temor agudo...
Tem tanta pressa o corpo! E já passou,
quando um de nós ou quando o amor chegou.
Preso político
Não há papel que conte a minha vida
mais que estes versos de punhal à cinta.
A barba cresce, e cresce a voz armada
descendo pelos muros tão tranquila;
tão tranquila que já nem desespera
de ser apenas voz, não uma guerra.
Quiseram pôr-me inteiro numa ficha.
Não há papel que conte a minha vida.
Mais que estes versos, esta mão estendida
por sobre os muros só de medo e pedra.
2
Quando saíres, amigo, não me esqueças.
Fico à espera da tua novidade.
Olha bem que farás da liberdade:
quando saíres, amigo, não me esqueças.
Quero mais fazimento que promessas.
São de prata os enganos da cidade
com que outros sujeitam a vontade.
Não me esqueças, amigo, não me esqueças.
domingo, 22 de março de 2020
À espera dos bárbaros
Por que assentam os Senadores? Por que não ditam normas?
Que normas vão editar os Senadores?
Quando chegarem, os bárbaros ditarão as normas.
e está sentado frente à Porta Nobre da cidade
posto em seu trono, portanto insígnias e coroa?
E o Autocrátor espera receber
o seu chefe. Mais do que isto, predispôs
para ele o dom de um pergaminho. Ali
fez inscrever profusos títulos e nomes sonoros.
esta manhã com togas rubras, com finos bordados de agulha?
Por que essas braçadeiras que portam, pesadas de ametistas,
e os anéis dactílicos lampejando reflexos de esmeralda?
Por que ostentam hoje os cetros preciosos,
esplêndido lavor de cinzel, amálgama de ouro e prata?
e toda essa parafernália deslumbra os bárbaros.
como sempre, a blasonar seu verbo, a perorar os seus temas?
e eles desprezam a oratória e a logorreia.
esse atropelo? (Todos os rostos de súbito sérios!)
Por que rápidas se esvaziam ruas e praças
e os antes reunidos retornam atónitos às casas?
E pessoas recém-vindas da zona fronteiriça
murmuram que não há mais bárbaros.
Essa gente não rimava conosco, mas já era uma solução.
Seria o amor português
longas manhãs te esperei tremendo
no patamar dos olhos. Que me importa
que batam à porta, façam chegar
jornais, ou cartas, de amizade um pouco
— tanto pó sobre os móveis tua ausência.
Se não és tu, que me pode importar?
Alguém bate, insiste através da madeira,
que me importa que batam à porta,
a solidão é uma espinha
insidiosamente alojada na garganta.
Um pássaro morto no jardim com neve.
Nada me importa; mas tu enfim me importas.
Importa, por exemplo, no sedoso
cabelo poisar estes lábios aflitos.
Por exemplo: destruir o silêncio.
Abrir certas eclusas, chover em certos campos.
Importa saber da importância
que há na simplicidade final do amor.
Comunicar esse amor. Fertilizá-lo.
«Que me importa que batam à porta...»
Sair de trás da própria porta, buscar
no amor a reconciliação com o mundo.
Longas manhãs te esperei, perdi a conta.
Ainda bem que esperei longas manhãs
e lhes perdi a conta, pois é como se
no dia em que eu abrir a porta
do teu amor tudo seja novo,
um homem uma mulher juntos pelas formosas
inexplicáveis circunstâncias da vida.
Que me importa, agora que me importas,
que batam, se não és tu, à porta?
sábado, 21 de março de 2020
Bate-me à porta, em mim
Sempre devagar, desde o começo, mas ressoando depois,
ressoando violentamente pelos corredores
e paredes e pátios desta própria casa
que eu sou. Que eu serei até não sei quando.
É uma doce pancada à porta, alguma coisa
que desfaz e refaz um homem. Uma pancada
breve, breve -
e eu estremeço como um archote. Eu diria
que cantam, depois de baterem, que a noite
se move um pouco para a frente, para a eternidade.
Eu diria que sangra um ponto secreto
do meu corpo, e a noite estala imperceptivelmente
ou se queima como uma face. Escuta:
que a noite vagarosamente se queima
como a minha face.
(...)
Herberto Helder
terça-feira, 17 de março de 2020
Vens da pobreza das casas do sul
Vens da pobreza das casas do Sul,
das regiões duras do frio e terremotos
que, mesmo quando os seus deuses rolaram para a morte,
nos deram a lição da vida na argila.
Tu és um cavalinho de argila preta, um beijo
de barro escuro, amor, papoila de argila,
pomba do crepúsculo que voou nos caminhos,
mealheiro de lágrimas da nossa pobre infância.
Moça, tu conservaste o coração de pobre,
os pés de pobre acostumados às pedras,
a boca que nem sempre teve pão ou delícia.
Tu és do Sul pobre, donde minha alma vem:
no seu céu a tua mãe continua a lavar roupa
com a minha. Por isso te escolhi, companheira.
sábado, 14 de março de 2020
Segue o teu destino
quinta-feira, 12 de março de 2020
Se eu pudesse dar-te aquilo que não tenho
Se eu pudesse dar-te aquilo com que sonhas
e o que só por mim poderá ter sonhado
Se eu pudesse dar-te o sopro que me foge
e que fora de mim jamais se encontra
Se eu pudesse dar-te aquilo que descubro
e descobrir-te o que de mim se esconde
Então serias aquele que existe
e o que só por mim poderá ter sonhado
sábado, 29 de fevereiro de 2020
Preciso de escrever-te do avesso para te amar em excesso
Fica assim o palavreado com alma - uma música, uma luz, qualquer coisa muito próxima da origem, da raiz, da seiva, do sangue, da respiração.
São os poetas. Artistas, artífices, profetas, sibilas.
Abençoados poetas. Abençoadas pessoas.
A bela do bairro
muito puta que era sempre à espera
dos pagantes à janela do rés-do-chão
mas eu teso e pior que isso néscio desses amores
tenho o quê? Quinze anos
tenho o quê uns olhos com que a vejo
que se debruçava mostrando os peitos
que a amei como se ama unicamente
uma vez um colo branco e até as jóias
que ela punha eram luzentes semelhando estrelas
eu bato o passeio à hora certa e amo-a
de cabelo solto e tudo não parece
senão o céu afinal um pechisbeque
ainda agora as minhas narinas fremem
turva-se o coração desmantelado
amando-a amei-a tanto e sem vergonha
oh pecar assim de jaquetão sport e um cigarro
nos queixos a admiração que eu fazia
entre a malta não é para esquecer nem lá ao fundo
como então puxo as abas da farpela
lentamente caminho para ela
a chuva cai miúda
e benza-a Deus que bonita e que puta
e que desvelos a gente
gastava em frente do amor
Não sei que horas são no teu relógio
vai fazer uns vinte anos. Não importa,
pois as coisas vão e vêm, e de novo
se levanta o mês de Março nesta era
da ironia, com seus truques estafados
e promessas desfolhantes. Juntamente,
tudo passa e tudo volta, mas diverso.
Só por isso, justamente, tem piada
estar aqui, abrir os olhos, conferir
ainda e sempre, na vitrina da manhã,
terça-feira, 25 de fevereiro de 2020
Domingo de manhã
se apaixonam por ti ao sábado à tarde
no parque
e se distraem
do balanço
do baloiço
na adivinhação
das partes do corpo
que trazes tapadas
não se preenche
com a desventura erótica
de um corpo
que te cubra
sem consolo
Não há falta
de quem se deite
contigo
sábado à noite
apenas quem acorde
ao teu lado
domingo de manhã
sábado, 22 de fevereiro de 2020
O que mais amo
e amo, como muitos, o vento forte
que agita a roupa estendida nas cordas,
as bicicletas ferrugentas
de pneus furados
esquecidas em garagens e arrecadações,
a água fresca que mata a sede
ao mais miserável dos homens.
Mas se, como outros, amo os dias de intensa luz
e o descuido dos pássaros no ar,
ninguém ama como eu
as estrias do teu ventre,
a primeira casa de dois filhos.
de todas as coisas prodigiosas que conheço
são elas o que mais se parece
com os rasgos abertos por um arado
na terra crua deste mundo.
Luís Filipe Parrado
domingo, 16 de fevereiro de 2020
He got nothing from her
He got nothing from her.
She got nothing from him,
nothing but cold air from
either of them.
Theirs was not the best
start in the harsh
light of the morning.
As reality crept around
The cracks in her curtains,
strangers arising,
false memories
pre-dawning, quickly
vertical and yawning
He picked up his adultery
from her hard
bedroom floor
the morning after the
night before
while She
kicked into the corner
behind the door the
little respect she found
left with her drawers
her chin to her chest
exagerating his flaws
feel under her thighs
squeezing tight her
black eyes, while
he tried desperately to
find the right words
with his shirt
She sat rigid in their
dirt. They were both
late for work
On the wall, literary grafiti, unknown
sábado, 15 de fevereiro de 2020
Ah, falemos da brisa
e procurava água, lábios,
um corpo
onde a solidão fosse impossível.
Mas quem sabe dessa música
cativa nos meus dedos?
E depois, como guardar um beijo,
mar doirado ou sombra
desolada?
Recordava um rio,
álamos,
o sabor nupcial da chuva,
tropeçava em lágrimas e soluços
e lágrimas, e procurava.
Como quem se despe
para amar a madrugada nas areias,
eu dizia: «Nenhuma brisa é triste,
triste», e procurava.
E procurava.
Eugénio de Andrade
quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020
Traduzir-se
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.
Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.
Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.
Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.
Traduzir-se uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?
Ferreira Gullar
terça-feira, 11 de fevereiro de 2020
Tudo pode tentar-me
Outrora foi o rosto de uma mulher, ou pior -
As aparentes exigências do meu país regido por tolos;
Agora nada melhor vem à minha mão
Do que este trabalho habitual. Quando jovem,
Não daria um centavo por uma canção
Que o poeta não cantasse de tal maneira
Que parecesse ter uma espada nos seus aposentos;
Mas hoje seria, cumprido fosse o meu desejo,
Mais frio e mudo que um peixe.
W. B. Yeats
sábado, 8 de fevereiro de 2020
Sento-me na tua ternura
Sento-me na tua ternura. A chuva cai,
olhas-me tão fundo que de repente
sou de vidro, cuidado, vou quebrar!
Acaba triste o mês de Maio, perto.
E estás no Maio triste, na chuva e no vento,
a tua ternura quer matar-me.
Quem sabe, amor, onde o amor se fere?
Fernando Assis Pacheco
quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020
Fixa um ponto na parede
Fixa um ponto na parede e foge para lá ou fecha os olhos e foge para dentro.
André Tecedeiro
domingo, 2 de fevereiro de 2020
Tríptico
nem a flor desprendida da haste
volta jamais à árvore que a deixou cair.
Li Tai Po
(versão de Pedro da Silveira)
sexta-feira, 31 de janeiro de 2020
Sai de casa
E depois espalha os bocados
Pelo vasto mundo
Ou então na tua rua, vai à aldeia, à praia,
Atira-o ao mar, deita-o ao lixo,
Para que venha o vento, o sol, a chuva, os homens do lixo,
Acabar com ele de vez.
Passado um dia,
Sai de casa e procura
Encontrá-lo de novo.
quarta-feira, 29 de janeiro de 2020
A zona de pausa
cercar-te-ão.
tens de desistir de tudo, deitar
fora, deitar tudo fora.
tens de olhar para o que estás a olhar
ou pensar no que estás a pensar
ou fazer o que estás a fazer
ou
a não fazer
sem considerar proveito
pessoal
sem aceitar orientação.
as pessoas estão consumidas com
o esforço,
escondem-se em hábitos
comuns.
as suas preocupações são preocupações de
manada.
poucos têm capacidade de olhar
para um sapato velho durante
dez minutos
ou de pensar em coisas estranhas
como: quem é que inventou
a maçaneta?
tornam-se desvivas
por serem incapazes de fazer
uma pausa
de se desarmarem
de se desdobrarem
de desverem
de desaprenderem
de se exporem.
escuta o seu riso
falso, depois
vai-te
embora.
Charles Bukowski
(trad. de Rosalina Marshall)
terça-feira, 28 de janeiro de 2020
Não haver palavras és tu a desaparecer
como estou triste? Mas se a tristeza vem
de tu não estares, como ta direi, como hei-
de juntar o que me está doendo ao ven-
to que não bate mais à tua porta? Eu sei
que a tristeza é só isto, é só isto,
o descoincidir consigo mesmo, eu sei,
descoincidir com os outros, estava previsto
porque dentro de si o mundo não coincide e
não há senão tristeza. Em cada um está Cristo
sempre abandonado, cada um abandonado
a si mesmo, sem princípio e sem fim,
pois no princípio o amor era dado
promessa de te ter sempre junto a mim
não ausência, nem dor, nem habitado
ser por todo este absurdo. Morrer
um pouco, disse, sem saber o que dizia
pois eram só palavras, como se a prometer
tudo aquilo que havia e não havia.
Não haver palavras és tu a desaparecer.
Bernardo Pinto de Almeida
segunda-feira, 27 de janeiro de 2020
Um pingo de tinta
António Barahona
sábado, 25 de janeiro de 2020
Não entres como turista no coração de uma mulher
a tirar fotos,
a deixar latas de cerveja,
procurando apenas catedrais imensas
e estátuas transparentes,
e fazendo refeições rápidas;
sete cidades
uma cordilheira e um inverno
no coração de uma mulher.
apanha o comboio da meia lua;
não reveles lá as tuas fotos numa hora;
entra nu,
no coração de uma mulher
não costumam voltar a crescer.
Aqui, onde agora habito
o vazio não para de se queixar.
Não arranja nada para fazer
e não tem casa.
Adonis (trad.: Nuno Júdice)
quarta-feira, 22 de janeiro de 2020
Estrela
Legenda
para aquela estrela
azul
e fria
que me apontaste
já de madrugada:
amar
é entristecer
sem corrompermos
nada.
Carlos de Oliveira
(Prefiro o Inácio)
Prefiro o Inácio,
a quase todos os poetas que conheço.
Não sei se morreu ou se já não vive
- pois foi proibido de beber
e de fumar, e o Inácio era
essencialmente isso: um grande bêbado
e um fumador diligente, que ensinara
o cão a ir junto da taberneira buscar-lhe
novo maço de tabaco. Quem viu, acredita.
Quem não viu, falhou o milagre.
Manuel de Freitas
As armas
Muitos armam-se para a guerra.
É necessário.
Outros armam-se para o mundo.
É preciso.
Alguns armam-se para a morte.
É natural.
Tu armas-te para o amor
e estás tão indefeso
para a guerra,
para o mundo,
para a morte.
Luz Helena Cordero
quinta-feira, 16 de janeiro de 2020
Quem vive para o amor está lixado
vazio sem cor nem forma e um silêncio
tumular por dentro. Mau, muito mau
para se levar alguém. Mas tu vieste
e de imediato tudo fôra já decidido
como quando alguém nasce e olha em torno
– pouco importa se estranha ou não a paisagem.
Tínhamos o nosso espaço e tínhamo-nos
a nós, um ao outro por natural companhia
era o amor, tudo indicava. Podia-se morrer
disso. E tínhamos o tempo todo para ver.
terça-feira, 14 de janeiro de 2020
Deve algures existir
Deve algures existir
a porção de verdade
que esteve ao nosso alcance e não vimos.
José Tolentino de Mendonça
domingo, 12 de janeiro de 2020
Reduzir a dependência das coisas
Partes amanhã. Não mais nos veremos. Um pouco o
desertor a cada passagem da nossa alma ou
quem espera para morrer.
A aquisição de todos estes bens
as espécies de tristeza são o que
acompanha quem espera — quais as pretendidas
vantagens? a juventude ou o mar?
Que te importa o que posso ou não fazer? Se
estamos tão perto quando nas ruas cruzamos e dizemos
o herói de toda a circunstância — a tua vida
precede a minha a tua morte ao abrigo das paixões
mas nada disto é dito
animal que repousa sob o erro.
Pela última vez
põe os teus sapatos novos
tão contrários à fonte dos actos e à moral
e vem, mesmo que tenhas andado para lá do som,
lavadinho, para que eu possa passar a minha mão
pelo pêlo
pelo pêlo lugar também do saber e de toda a possessão.
Falhar melhor
Falhar outra vez. Falhar melhor.
(Samuel Beckett)
Falhar melhor,
não sei mas falhar
sempre
exige muita pontaria.
Marta Magalhães
domingo, 5 de janeiro de 2020
sábado, 4 de janeiro de 2020
quinta-feira, 2 de janeiro de 2020
Ano Novo
de um ano, início
de outro. Olho o céu:
nenhum indício.
Olho o céu:
o abismo vence o
olhar. O mesmo
espantoso silêncio
da Via-Láctea feito
um ectoplasma
sobre a minha cabeça
nada ali indica
que um ano novo começa.
E não começa
nem no céu nem no chão
do planeta:
começa no coração.
Começa como a esperança
de vida melhor
que entre os astros
não se escuta
nem se vê
nem pode haver:
que isso é coisa de homem
esse bicho
estelar
que sonha
(e luta).
Ferreira Gullar
Ano Novo
Na fluida e incerta essência misteriosa
Da vida, flui em sombra a água nua.
Curvas do rio escondem só o movimento.
O mesmo rio flui onde se vê.
Começar só começa em pensamento.
a minha avó repete:
a minha avó repete: o tempo cura a ferida mas não cura a cicatriz e nenhum outro poema de nenhum outro poeta me falou tão alto ao ouvido Inê...
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Onde uma tem o cetim a outra tem a rudeza * Onde uma tem a cantiga a outra tem a firmeza * Tomba o cabelo nos ombros o suor pela barriga * O...
-
Quietos fazemos as grandes viagens só a alma convive com as paragens estranhas lembro-me de uma janela na Travessa da Infância onde se...
-
Hoje roubei todas as rosas dos jardins e cheguei ao pé de ti de mãos vazias. Eugénio de Andrade