domingo, 6 de dezembro de 2020

Don't cry for me, Argentina

https://www.youtube.com/watch?v=XehuNQXdGCU 

Composição de lugar

Não caibo nesta tarde que me desfolhas
sobre o coração. Renovam-se-me sob os passos
todos os caminhos e o dia é uma página que lida
e soletrada descubro inatingível como o vento a rua e a vida
As mesmas mãos que antes desfraldavam
domésticas insígnias abaixo dos beirais
emprestam novos pássaros às árvores
Pétala a pétala chego à corola desta minha hora
Roubo o meu ser a qualquer outro tempo
não há em mim memória de alguma morte
em nenhum outro lugar me edifiquei
Arredondas à minha volta os lábios para me dizer
Recuo de repente àquele princípio que em tua boca tive
Eu sei que só tu sabes o meu nome
tentar sabê-lo foi afinal o único
esforço importante da minha vida
Sinto-me olhado e não tenho mais ser
que ser visto ti. Há no meu ombro lugar
para o teu cansaço e a minha altura é para ser medida
palmo a palmo pela tua mão ferida

Ruy Belo


segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Enganam-se

Enganam-se os que pensam que só nascemos uma vez. Para quem quiser ver, a vida está cheia de nascimentos. Nascemos muitas vezes ao longo da infância, quando os olhos se abrem em espanto e alegria. Nascemos nas viagens sem mapa que a juventude arrisca. Nascemos na sementeira da vida adulta, entre invernos e primaveras maturando a misteriosa transformação que coloca na haste a flor e dentro da flor o perfume do fruto. Nascemos muitas vezes naquela idade avançada onde os trabalhos não cessam, mas se reconciliam com laços interiores e caminhos adiados. Nascemos quando nos descobrimos amados e capazes de amar. Nascemos no entusiasmo do riso e na noite de certas lágrimas. Nascemos na prece e no dom. Nascemos no perdão e no confronto. Nascemos em silêncio ou iluminados por uma palavra. Nascemos na tarefa e na partilha. Nascemos nos gestos ou para lá dos gestos. Nascemos dentro de nós e no coração de Deus. '

José Tolentino de Mendonça


Nada sabemos

Nunca saberemos se os enganados
são os sentidos ou os sentimentos,
se viaja o comboio ou a nossa ânsia,
se as cidades mudam de lugar
ou se todas as casas são a mesma.
Nunca saberemos se quem nos espera
é quem deve esperar-nos, nem sequer
quem temos de esperar no meio de uma
plataforma fria. Nada sabemos.
Avançamos às cegas, perguntando
se isto que se parece com a alegria
é apenas o sinal inequívoco
de que nos enganamos novamente.

Amalia Bautista
(Trad. de Inês Dias)


 


Outono

O outono vem vindo, chegam melancolias,
cavam fundo no corpo,
instalam-se nas fendas; às vezes
por aí ficam com a chuva
apodrecendo;
ou então deixam marcas; as putas,
difíceis de apagar, de tão negras,
duras.

Eugénio de Andrade

domingo, 29 de novembro de 2020

Já me esqueci da água agora só vigio

Já me esqueci da água agora só vigio

os aviões que chegam ou levantam
na pista paralela ao horizonte,
pilotos sonolentos, embrulhados no frio,
a voz no microfone destrocada
por transparentes rotas rente às nuvens.

o vidro embaciado não me deixa
bem decifrar o rosto, os gestos lentos,
a boca, que beijaram os segredos.
vou ver se nesta tarde me despenho,
onde é mais fácil enganar o tempo,
onde a rocha da água se separa.

talvez regresse a mim. talvez me aguarde
o vago comité a que pertence
a sábia ciência de contar os vivos,
talvez passe a manhã ouvindo a rádio
em vastas ambições e pensamentos;
vou ver se nesta tarde me desenho.

António Franco Alexandre


sexta-feira, 27 de novembro de 2020


 

My funny Valentine

https://www.youtube.com/watch?v=Bbz9i4Vd-Ac 


Chet Baker, 1988

Prometeu que tocaria My
funny valentine como nunca
o fizera. E foi, também na voz,
verdade (a verdade é sempre
uma coisa muito triste;
faltavam-lhe duas semanas para morrer).

Comprei o disco quase vinte anos
depois, e só por difícil acaso
o fiz naquela cidade, com a
mesma ou nenhuma vontade de morrer,
agora que volta a dizer stay
little valentine e a chuva torna
as bicicletas uma metáfora evitável,
contrária à ferrugem do que sinto.
 
Sim, é isso: ninguém nos espera
- e nem todos sabemos voar, sofrer,
cantar assim o desconforto.
Nada deveria ser tão triste,
até porque nada deveria ser.

Mas não me roubem, por favor, esta canção.

Manuel de Freitas


domingo, 22 de novembro de 2020

Mal necessário

https://www.youtube.com/watch?v=fEUtKWBE7Eo 


Penso que neste momento



Penso que neste momento
ninguém acaso no mundo pensa em mim,
que só eu me penso
e se agora morresse
ninguém, nem eu, me pensaria.


E aqui começa o abismo,
como quando adormeço.
Sou o meu próprio apoio e tiro-mo.
Contribuo para forrar tudo de ausência.


Será talvez por isto
que pensar num homem
é assim como salvá-lo.


(Trad. A.M.)

Roberto Juarroz


sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Amanhecer

 




Ele pode comparar-te


Ele pode comparar-te

com o amanhecer, mas eu

fiquei a pé toda a noite para o ver.


Billy Collins



Senhor da Pedra, Vila Nova de Gaia

 









Convida-me só para jantar

Convida-me só para jantar

E não queiras depois fazer amor.
Convida-me só para jantar
num restaurante sossegado
numa mesa de canto
e fala devagar
e fala devagar
eu quero comer uma sopa quente
não quero comer mariscos
os mariscos atravancam-me o prato
e estou cansada para os afastar
fala assim devagar
devagar
não é preciso dizeres que sou bonita
mas não me fales de economia e de política
fala assim devagar
devagar
deita-me o vinho devagar
quando o meu copo estiver vazio.
Estou convalescente
sou convalescente
não é preciso que o percebas
mas por favor não faças força em mim.
Fala, estás-me a dar de jantar
estás-me a pôr recostada à almofada
estás-me a fazer sorrir ao longe
fala assim devagar
devagar
devagar.

Ana Goês


sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Adoro o som da tua voz

 

Adoro o som da tua voz

como um pequeno saxofone

que me diz o que eu nunca poderia saber

a não ser que cavasse um buraco bem fundo

até ao centro de mim mesmo.


Billy Collins



sábado, 24 de outubro de 2020

Milord


https://www.youtube.com/watch?v=Yo9-M22-C2E 



Dissesse eu, de outra maneira

Dissesse eu, de outra maneira,
que as cerejeiras tardam mil luas a florir,
haveria palavras doces que o dissessem?

Toda a tarde te esperei e não vieste.
A semana, o mês, o inverno, o meu aniversário,
as últimas chuvas antes do verão,
e não vieste.

Conto os teus passos ausentes no pensamento
para entreter a espera.
Há uma pedra solta no passeio.
Um vento súbito atravessa as copas do arvoredo.

Saberás que te espero fielmente,
um chá quente sobre a mesa posta
e uma lâmina gasta no lugar do coração?

Como os anónimos do vício permaneço
vigilante:
só hoje, esperei por ti e não vieste.

Violeta Runa


quarta-feira, 14 de outubro de 2020

A recusa do amor


Não temos uma arma apontada à cabeça,dizias-me. 
Mas era impossível que não visses,
impossível. Eu ao teu lado com aquela dor
no pescoço, imóvel, cuidadosa, o cano frio
na minha testa, a vida a estoirar-me
a qualquer momento. Era impossível que não visses
o revólver que levava sempre comigo. Por isso dormia
virada para o outro lado, não era por me dar mais jeito
aquele lado, era por me dar mais jeito
não morrer quando nos víamos,
era para dormir contigo só mais esta vez,
sempre só mais esta vez,
sempre com o meu amor a virar-se de costas,
sempre com o teu amor apontado à cabeça.

Filipa Leal

domingo, 11 de outubro de 2020

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Eu não sei o que se passa contigo...

(eu não sei o que se passa contigo que fecha
e abre; só alguma coisa dentro de mim compreende
a voz dos teus olhos é mais profunda do que todas as rosas)

E. E. Cummings

quinta-feira, 8 de outubro de 2020

O poder de Circe


Nunca transformei ninguém em porco.
Algumas pessoas são porcos; faço-os
parecerem-se a porcos.

Estou farta do vosso mundo
que permite que o exterior disfarce o interior.

Os teus homens não eram maus;
uma vida indisciplinada
fez-lhes isso. Como porcos,
sob o meu cuidado
e das minhas ajudantes,
tornaram-se mais dóceis.

Depois reverti o encanto,
mostrando-te a minha boa vontade
e o meu poder. Eu vi

que poderíamos ser aqui felizes,
como o são os homens e as mulheres
de exigências simples. Ao mesmo tempo,

previ a tua partida,
os teus homens, com a minha ajuda, sujeitando
o mar ruidoso e sobressaltado. Pensas

que algumas lágrimas me perturbam? Meu amigo,
toda a feiticeira tem
um coração pragmático; ninguém

vê o essencial que não possa
enfrentar os limites. Se apenas te quisesse ter
podia ter-te aprisionado.

Louise Glück

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Mar

I
De todos os cantos do mundo
Amo com um amor mais forte e mais profundo
Aquela praia extasiada e nua,
Onde me uni ao mar, ao vento e à lua.

II
Cheiro a terra as árvores e o vento
Que a Primavera enche de perfumes
Mas neles só quero e só procuro
A selvagem exalação das ondas
Subindo para os astros como um grito puro.

Sophia de Mello Breyner Andresen

sábado, 3 de outubro de 2020

Um anjo diz que sim, o outro diz que não.

Um anjo diz que sim, o outro diz que não.
O poeta diz talvez. E tu que dizes? Tu que vives
a vida de fora para dentro, comandado
por estímulos que entram maquilhados no teu sono e no teu sonho
e que acordam contigo sem alguma vez terem despertado.
Sofres porque habitas um palácio imaginário.
Sofres porque sabes como te chamas mas ignoras quem és.
Sofres porque fechas as janelas da tua casa e as janelas do teu espírito
mas a vida não pára de preparar surpresas
para quando abrires a porta na manhã seguinte
Sofres porque cada orgasmo é uma festa maravilhosa que te estremece apenas o corpo.
Sofres porque cada satisfação tua foi atingida com um imenso rol de profundas insatisfações.
Sofres porque quase sempre o que tu desejas não é o que tu queres.
Sofres porque não vais além do coração e porque o coração não vai além de ti. E porque ambos se atrapalham.
Sofres porque tens medo e porque tens medo de ter medo.
Sofres porque tens dificuldade em olhar para a frente, partir de ti para um outro tu,
e porque olhar fixamente para trás te pode transformar numa estátua de sal.
Sofres porque a tua honestidade é desonesta e a tua consciência é um juiz
que tu mesmo te encarregas de corromper. Sofres
porque a tua infâmia pode preencher a primeira página
e porque a primeira página nunca fala de ti nem que seja para mostrar a tua infâmia.
Sofres porque é grande a sensação de ameaça
e porque enorme é o tédio e porque é fundo o desespero.
Sofres porque as razões porque és feliz são as mesmas razões da tua infelicidade.
Sofres porque é amarga a vida e doce a ilusão e insonsa a esperança.
Sofres porque sabes tudo isto e desconheces tudo isto
e porque o conhecimento das coisas e o desconhecimento das coisas
são sempre a primeira e a última das razões
para invocares o teu inútil sofrimento.

Joaquim Pessoa

quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Desafinado

https://www.youtube.com/watch?v=UYoMKVOslhg 

Elementário

O verdadeiro sentido das palavras
é que o poema consiste
em falar do que não pode ser dito a quem
se quer dizer

ou o verdadeiro sentido das palavras
é que o poema consiste
em não falar do que pode ser dito a quem
se quer dizer

ou o verdadeiro sentido das palavras
é que o poema consiste
em não falar do que não pode ser dito a quem
se quer dizer

ou o verdadeiro sentido das palavras
é que o poema consiste
em falar do que pode ser dito a quem
se não quer dizer

isto, claro, partindo do princípio
de que há um sentido das palavras,
verdadeiro, um poema e um
a quem se queira dizer.

Daniel Jonas

domingo, 27 de setembro de 2020

Houvesse um sinal a conduzir-nos

Houvesse um sinal a conduzir-nos. 

E unicamente ao movimento de crescer nos guiasse. Termos das árvores
A incomparável paciência de procurar o alto
A verde bondade de permanecer
E orientar os pássaros.

Daniel Faria

segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Neredva, o verde impossível do rio

 








Elogio da mulher invisível

uma mulher pensa veste-se mal
parece uma empregada doméstica
perdeu toda a dignidade no dia-a-dia
não podia ter escolhido roupas mais feias, desirmanadas, repulsivas
vem defender a tese como se estivesse em roupão
o corpo disforme esquecido
talvez não muito limpo
mas talvez isto seja só uma ideia
por não se depilar e deixar o cabelo crescer
sem nunca lhe dar forma
esta mulher estuda pensa
acolhe os nossos filhos
acarinha-os quando não estamos
ensina-lhes o que nós sabemos
mas não somos capazes de ensinar
chamam-lhe primária
continuam a chamar-lhe primária
mas ela sabe os segredos
truques que nos escapam
nós pais e mães
nós os das profissões mais ou menos liberais
que nos libertaram da escravatura e nos voltaram
a lançar nela de formas mais perversas
nós aparentemente sensatos, requintados
cada vez mais desorbitados
ignoramos o que ela faz todos os dias
como abraça trinta crianças de uma vez só
no nevoeiro mais matinal e no coração da canícula
estrada fora pelos dias dentro
entra na cabeça e no peito dos nossos filhos
e deixa a eterna semente da confiança
como o animal prenhe
do futuro indefinido mais que perfeito descomposto

Rosa Oliveira

quinta-feira, 30 de julho de 2020

Primeiro encontro

Nunca percebi
o silêncio obstinado das
praias da marginal
pelas noites de inverno,
a indiferença das coisas
em que um dia fomos grandes.
Não exijo agora que te molhes,
- a água está tão fria - ou que me
dês uma das tuas mãos. Gostava,
por uma vez, que este mar
sossegasse connosco dentro.
Rema, temos tempo.
Ainda que seja sempre tarde
para irmos mais longe,
podemos seguir
o balanço que nos separa. 

Frederico Pedreira

sábado, 25 de julho de 2020

Both sides, now

https://www.youtube.com/watch?v=7cBf0olE9Yc

Ao fim

Ao fim são muito poucas as palavras
que nos doem a sério e muito poucas
as que conseguem alegrar a alma.
São também muito poucas as pessoas
que tocam nosso coração e menos
ainda as que o tocam muito tempo.
E ao fim são pouquíssimas as coisas
que em nossa vida a sério nos importam:
poder amar alguém, sermos amados
e não morrer depois dos nossos filhos.

Amalia Bautista
(Trad.: Joaquim Manuel Magalhães)


terça-feira, 23 de junho de 2020

quinta-feira, 11 de junho de 2020

Uma vez quiseram-me louca, a arder




Uma vez quiseram-me louca, a arder

e eu ardi com a discrição de
um fogo posto
porque a cura vai na mesma direcção
que a nossa febre

Ateei-me como um relâmpago inesperado
à luz do dia
Eu parecia uma basílica em chamas
de altar por estrear, a arder sozinha

Sempre me recusei a arder como os outros

Ardam-se mais à esquerda ou mais à direita
mais a vento de sul ou de norte,
mas labaredem-se, sejam fogos que ardem!

Porque pior que a desdita loucura
é toda a gente andar em brasa
mas ninguém chegar a incêndio

E no fim são todos cinza


Cláudia R. Sampaio


terça-feira, 2 de junho de 2020

Pensei

Pensei
que a liberdade vinha com a idade
depois pensei
que a liberdade vinha com o tempo
depois pensei
que a liberdade vinha com o dinheiro
depois pensei
que a liberdade vinha com o poder
depois percebi
que a liberdade não vem
não é coisa que lhe aconteça
terei sempre de ir eu.

Sónia Balacó

sexta-feira, 29 de maio de 2020

Setúbal, José Oliveira


Strip-tease

Quanto mais me dispo

menos nu
me sinto

Jorge Sousa Braga


Z

As formas, as sombras, a luz que descobre a noite
e um pequeno pássaro

e depois longo tempo eu te perdi de vista
meus braços são dois espaços enormes
os meus olhos são duas garrafas de vento

e depois eu te conheço de novo numa rua isolada
minhas pernas são duas árvores floridas
os meus dedos uma plantação de sargaços
a tua figura era ao que me lembro
da cor do jardim.

António Maria Lisboa


quarta-feira, 27 de maio de 2020

Trilho de luz

Sempre que conseguia
eu acendia o meu brilho
dizia do sol o fio
seguindo da luz o trilho
*
Lembrava o abandonono
recriava a rebeldia
abria com o estilete
de Pandora a caixa fria
*
Confessava o meu
mistério
de solidão reclusa
*
Dava a ver a estrela-norte
mas também a dor infusa
contida no seu desnorte

Maria Teresa Horta


quarta-feira, 13 de maio de 2020

Rigor

De ti sei a raiz do sentimento
o lugar do rigor
rasgando a alma
*
Entre aquilo que és e não o sendo
no turvado olhar
jamais se acalma
*
Percorro solitária o meu invento
e se à razão sempre cedo
e tudo arrisco
*
Ao destino retiro o ferro da paixão
mas da fogueira do corpo
não desisto

Maria Teresa Horta


sábado, 2 de maio de 2020

Friedensreich Hundertwasser

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Elementário


O verdadeiro sentido das palavras
é que o poema consiste
em falar do que não pode ser dito a quem
se quer dizer

ou o verdadeiro sentido das palavras
é que o poema consiste
em não falar do que pode ser dito a quem
se quer dizer

ou o verdadeiro sentido das palavras
é que o poema consiste
em não falar do que não pode ser dito a quem
se quer dizer

ou o verdadeiro sentido das palavras
é que o poema consiste
em falar do que pode ser dito a quem
se não quer dizer

isto, claro, partindo do princípio
de que há um sentido das palavras,
verdadeiro, um poema e um
a quem se queira dizer.

Daniel Jonas

versão errática:

That happy hand, wich hardly did touch

Thy tender body to my deep delight


ANON, 1560


versão errática:

mão tão feliz de ter tocado

teu corpo atento ao meu desejo


Herberto Helder


Soneto oblíquo em rima, mas, de facto,

Havia um tempo em que esperar por ti
era consulta a meteorologia:
preparar coração, achar ali,
na coluna do lado, em geografia

de página, ou écran: coisa parecida
o sol bem desenhado, os raios com
a palavra por baixo, indicativa
de que amanhã o tempo ia ser bom.

Mas não era a palavra, era o ruído,
eu sem saber o que fazer comigo,
e o sol, caracol longo a demorar-

-se - assim era ele oblíquo de rimar;
porque eu sabia que o que ali rimava
estava em saber que vinhas. E ficavas.

Ana Luísa Amaral


Sombra de um gato

à memória de Eugénio de Andrade

Como se nota a velhice de um gato? No caso do Barnabé, a resposta, é simples: deixou praticamente de me atacar (era o seu desporto preferido, entre as seis da tarde e as duas da manhã), o pêlo foi perdendo espessura e está bastante mais magro. Os gestos, como em qualquer velhice, tornaram-se lentos e espaçados. Embaciaram ainda, numa tristeza muda, os olhos que há quinze anos me acompanham.

*

Espero, amigo gato, que não seja este o último Verão que passamos juntos. Também eu sou agora um torvelinho de cãs e de rugas breves, espalhadas sobre um rosto débil. Talvez já me pertença, de pleno direito, a hora desta terrível pergunta: «Por quanto tempo poderemos amá-los, a esses jovens, sem os ofender?». Gostava de te falar de outro assunto, de encontrar um tema diferente para a poesia de que já não sou capaz. A minha mão pousa sobre o teu dorso cansado, enquanto a noite nos cerca. Que se foda e refoda a literatura.

Manuel de Freitas

domingo, 26 de abril de 2020

Onde quer que o encontres

Onde quer que o encontres -
escrito, rasgado ou desenhado:
na areia, no papel, na casca de
uma árvore, na pele de um muro,
no ar que atravessar de repente
a tua voz, na terra apodrecida
sobre o meu corpo - é teu,

para sempre, o meu nome.

Maria do Rosário Pedreira


sábado, 25 de abril de 2020

O poema ensina a cair

O poema ensina a cair
sobre os vários solos
desde perder o chão repentino sob os pés
como se perde os sentidos numa
queda de amor, ao encontro
do cabo onde a terra abate e
a fecunda ausência excede

até à queda vinda
da lenta volúpia de cair,
quando a face atinge o solo
numa curva delgada subtil
uma vénia a ninguém de especial
ou especialmente a nós uma homenagem
póstuma.

Luiza Neto Jorge


quinta-feira, 23 de abril de 2020

Para um amigo tenho sempre um relógio

Para um amigo tenho sempre um relógio
esquecido em qualquer fundo de algibeira.
Mas esse relógio não marca o tempo inútil.
São restos de tabaco e de ternura rápida.
É um arco-íris de sombra, quente e trémulo.
É um copo de vinho com o meu sangue e o sol.

António Ramos Rosa


Assalto

Quando decidimos tomar o mundo de assalto
não sabíamos nada um do outro
e as ramagens das árvores
quase tocavam a tua janela.

Quando desistimos de tomar o mundo de assalto
não falámos disso
e ouvimos discos de 33 rotações.

Nunca começámos do chão
e agora é tarde.
A erva cresce depressa
e em breve
é muito alta.

Pedro Mexia

Aos 50 anos sou um ser perplexo

Aos cinquenta anos sou um ser perplexo,
não como aos vinte, aos trinta, ou aos quarenta,
mas radicalmente perplexo. Não sei
se amo a vida ou a detesto. Se desejo
ou não desejo continuar vivendo.
Se amo ou não amo aqueles que amo,
se odeio ou não odeio os que detesto.
Se me quero patriarca, pai de família, como acabei sendo,
ou se me quero livre pelas ruas nocturnas
como quando não acabei de descobri-las
em décadas de andá-las, perseguindo
sequer o amor mas corpos, corpos, corpos.
Sou de Europa ou de América? De Portugal
ou Brasil? Desejo que toda a humanidade
seja feliz como queira, ou quero que ela morra
do cogumelo atómico prometido e possível?
Não sei. Definitivamente, não sei.
Julgas que estou deitado num leito de rosas?
— perguntava ao companheiro de tortura Cuauhtemoc.
Mas, mesmo destituído, preso e torturado,
ele era o Imperador, descendente dos deuses.
Eu não descendo dos deuses. O corpo dói-me,
que envelhece. O espírito dói-me de um cansaço físico.
As belezas de alma, seja de quem forem, deixaram de interessar-me.
Resta a poesia que me enoja nos outros
a não ser antigos, limpos agora do esterco
de terem vivido. E eu vivi tanto
que me parece tão pouco. E hei-de morrer
desesperado por não ter vivido. Aos 50 anos
nem sequer a raiva dos outros ainda me sustenta
o gosto e a paciência de estar vivo.
Outros que tentem e descubram:
que digam ou não digam é-me indiferente.

Jorge de Sena


domingo, 19 de abril de 2020

José Oliveira


Viola partida

Conheces a angústia, amigo, o modo como vagarosamente se infiltra até doer nos ossos como se o frio pela janela aberta do coração vazio. Conheces essa viagem que desemboca em portos de países longínquos, cidades de pedra sob céus sem fim, ruas de solidão e morte que o sol nunca visita. E mesmo ao lado, os tubos recurvos da loucura, o labirinto transparente por onde te moves sem peso, longe, muito longe, dos pés. Quando dói demais endoidece-se, é uma forma de desviar a dor para olhos que não nos pertencem. Como se num filme em que fossemos o lado de fora e por dentro a dor a cansar. Não sei se sabes do que falo (receio mesmo tê-lo complicado). Tão pouco sei se existes (o mais que recebi de ti foi um silêncio em que acreditei que me ouvisses). Escrevo dirigindo-me a ti. Escrevo depondo nas tuas mãos o último grão de vida que resta nesta terra triste.

Jorge Roque


Bolor


Os versos
que te digam
a pobreza que somos,
o bolor nas paredes
deste quarto deserto,
o orvalho da amargura
na flor
de cada sonho
e o leito desmanchado
o peito aberto
a que chamaste
amor.

Carlos de Oliveira

Se eu pudesse

Se eu pudesse
ter-te em vez dos versos,
ou ter um verso
em vez de ti,
ou ter os olhos
como os de um gato
para perscrutar a noite
onde isso se decide.

Pedro Mexia

sexta-feira, 17 de abril de 2020

Lentas, Creta




Paixão

De súbito entendemos
como somos vulneráveis
diante da paixão
*
tentamos então recuar
ainda
um tudo nada

A olharmos a nossa
própria imagem
tentando adiar sem pressa
*
o coração

Maria Teresa Horta


Sabes que um papel pode...?

Sabes que um papel pode cortar mais do que uma navalha?

Simples papel em branco,
carta não escrita

que hoje me faz sangrar.

Ángel González

sábado, 11 de abril de 2020

Não te chamo para te conhecer

Não te chamo para te conhecer
Eu quero abrir os braços e sentir-te
Como a vela de um barco sente o vento

Não te chamo para te conhecer
Conheço tudo à força de não ser

Peço-te que venhas e me dês
Um pouco de ti mesmo onde eu habite

Sophia de Mello Breyner Andresen

Homens que são como lugares mal situados

Homens que são como lugares mal situados
Homens que são como casas saqueadas
Que são como sítios fora dos mapas
Como pedras fora do chão
Como crianças órfãs
Homens sem fuso horário
Homens agitados sem bússola onde repousem

Homens que são como fronteiras invadidas
Que são como caminhos barricados
Homens que querem passar pelos atalhos sufocados
Homens sulfatados por todos os destinos
Desempregados das suas vidas

Homens que são como a negação das estratégias
Que são como os esconderijos dos contrabandistas
Homens encarcerados abrindo-se com facas
Homens que são como danos irreparáveis
Homens que são sobreviventes vivos
Homens que são como sítios desviados
Do lugar

Daniel Faria

segunda-feira, 6 de abril de 2020

Monsanto, Lisboa, 2019


Posso estar aqui

Posso estar aqui
eu posso estar aqui perfeitamente pobre
um círio me acendi espora aguda
o vento ritmo negro assassinou-o
posso estar aqui
– o musgo é lento como a sombra –
e sei de cor a voz cega das canções
(viola de silêncio acorda-me)
que eu posso estar aqui perfeitamente pedra
insone
e um longo segredo impessoal
bordando a minha solidão

Luiza Neto Jorge


Obrigado

Escuta
enquanto a noite cai dizemos obrigado
parados nas pontes curvados sobre as grades de proteção
nos terraços de vidro
com a boca cheia de comida a olhar para o céu
dizemos obrigado
de pé junto à água agradecemos
de pé à janela olhando lá para fora
na nossa direção

de regresso de uma série de hospitais de regresso de um assalto
depois dos funerais dizemos obrigado
depois das notícias dos mortos
quer os conhecêssemos ou não dizemos obrigado

pelo telefone dizemos obrigado
nos vãos das portas e nos bancos de trás dos automóveis e nos elevadores
com a memória das guerras e a polícia à porta
e as pancadas nas escadas dizemos obrigado
nos bancos dizemos obrigado
nos rostos dos funcionários e dos ricos
e de todos aqueles que nunca mudarão
continuamos a dizer obrigado obrigado

enquanto os animais morrem à nossa volta
os sentimentos perdidos dizemos obrigado
enquanto as florestas desaparecem com mais rapidez que os minutos
dizemos obrigado
enquanto as palavras caem como células do cérebro
enquanto as cidades crescem sobre nós
cada vez mais rápido dizemos obrigado
embora ninguém escute dizemos obrigado
dizemos obrigado e acenamos
no escuro

W. S. Merwin 

segunda-feira, 30 de março de 2020

Alfarrabista

Hoje comprei um livro de Raul de Carvalho
por um euro, o que considero um escândalo!
Os poetas, regra geral, sempre foram pobres,
mas a sua poesia vale muito mais do que
o peso de mil resmas de rouxinol em oiro.
Isto, evidentemente, pouca gente sabe.
Se muita gente soubesse
os poetas seriam todos ricos.

António Barahona


O objeto

Há que dizer-se das coisas
o somenos que elas são.
Se for um copo é um copo
se for um cão é um cão.
Mas quando o copo se parte
e quando o cão faz ão ão?
Então o copo é um caco
e um cão não passa dum cão.

Quatro cacos são um copo
quatro latidos um cão.
Mas se forem de vidraça
e logo foram janela?
Mas se forem de pirraça
e logo forem cadela?
E se o copo for rachado?
E se o cão não tiver dono?
Não é um copo é um gato
não é um cão é um chato
que nos interrompe o sono.

E se o chato não for chato
e apenas cão sem coleira?
E se o copo for de sopa?
Não é um copo é um prato
não é um cão é literato
que anda sem eira nem beira
e não ganha para a roupa.

E se o prato for de merda
e o literato de esquerda?
Parte-se o prato que é caco
mata-se o vate que é cão
e escreveremos então
parte prato sape gato
vai-te vate foge cão

Assim se chamam as coisas
pelos nomes que elas são.

Ary dos Santos

XXVIII

Ligar o mundo por um istmo,
um canal de sangue e virtude. Ligar o mundo pela fronteira incendiada,
destruída até ao raso chão. Escutar. Rente ao chão depositar o rosto,
depois seguir caminho, como quem do chãopede um segredo, uma verdade
num corpo e numa alma, como nos disse o vidente.

Assim deposito o rosto nesse chão
e escuto atentamente a anónima violência,

o metálico som da cidade.

Luís Quintais

terça-feira, 24 de março de 2020

Ausência

Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces
Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto.
No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida
E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz.
Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado
Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados
Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada
Que ficou sobre a minha carne como uma nódoa do passado.
Eu deixarei... tu irás e encostarás a tua face em outra face
Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noite
Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa
Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço
E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado.
Eu ficarei só como os veleiros nos portos silenciosos
Mas eu te possuirei mais que ninguém porque poderei partir
E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas
Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.

Vinícios de Moraes


O corpo não espera

O corpo não espera. Não. Por nós
ou pelo amor. Este pousar de mãos,
tão reticente e que interroga a sós
a tépida secura acetinada,
a que palpita por adivinhada
em solitários movimentos vãos;
este pousar em que não estamos nós,
mas uma sêde, uma memória, tudo
o que sabemos de tocar desnudo
o corpo que não espera; este pousar
que não conhece, nada vê, nem nada
ousa temer no seu temor agudo...

Tem tanta pressa o corpo! E já passou,
quando um de nós ou quando o amor chegou.

Jorge de Sena


Preso político

Quiseram pôr-me inteiro numa ficha.
O dia e a noite são iguais por dentro.
Não há papel que conte a minha vida
mais que estes versos de punhal à cinta.
A barba cresce, e cresce a voz armada
descendo pelos muros tão tranquila;
tão tranquila que já nem desespera
de ser apenas voz, não uma guerra.

Quiseram pôr-me inteiro numa ficha.
Não há papel que conte a minha vida.
Mais que estes versos, esta mão estendida
por sobre os muros só de medo e pedra.

2
Quando saíres, amigo, não me esqueças.
Fico à espera da tua novidade.
Olha bem que farás da liberdade:
quando saíres, amigo, não me esqueças.

Quero mais fazimento que promessas.
São de prata os enganos da cidade
com que outros sujeitam a vontade.
Não me esqueças, amigo, não me esqueças.

Fernando Assis Pacheco

domingo, 22 de março de 2020

À espera dos bárbaros


– Que esperamos reunidos na ágora?
É que hoje os bárbaros chegam.
– Por que tanta abulia no Senado?
Por que assentam os Senadores? Por que não ditam normas?
Porque os bárbaros chegam hoje.
Que normas vão editar os Senadores?
Quando chegarem, os bárbaros ditarão as normas.
– Por que o Autocrátor se levantou tão cedo
e está sentado frente à Porta Nobre da cidade
posto em seu trono, portanto insígnias e coroa?
Porque os bárbaros chegam hoje.
E o Autocrátor espera receber
o seu chefe. Mais do que isto, predispôs
para ele o dom de um pergaminho. Ali
fez inscrever profusos títulos e nomes sonoros.
– Por que nossos dois cônsules e os pretores saíram
esta manhã com togas rubras, com finos bordados de agulha?
Por que essas braçadeiras que portam, pesadas de ametistas,
e os anéis dactílicos lampejando reflexos de esmeralda?
Por que ostentam hoje os cetros preciosos,
esplêndido lavor de cinzel, amálgama de ouro e prata?
Porque os bárbaros chegam hoje,
e toda essa parafernália deslumbra os bárbaros.
– Por que nossos bravos tributos não acodem
como sempre, a blasonar seu verbo, a perorar os seus temas?
Porque os bárbaros chegam hoje,
e eles desprezam a oratória e a logorreia.
– Por que de repente essa angústia,
esse atropelo? (Todos os rostos de súbito sérios!)
Por que rápidas se esvaziam ruas e praças
e os antes reunidos retornam atónitos às casas?
Porque a noite chegou e os bárbaros não vieram.
E pessoas recém-vindas da zona fronteiriça
murmuram que não há mais bárbaros.
E nós, como vamos passar sem os bárbaros?
Essa gente não rimava conosco, mas já era uma solução.
Konstantínos Kaváfis

Seria o amor português

Muitas vezes te esperei, perdi a conta,
longas manhãs te esperei tremendo
no patamar dos olhos. Que me importa
que batam à porta, façam chegar
jornais, ou cartas, de amizade um pouco
— tanto pó sobre os móveis tua ausência.

Se não és tu, que me pode importar?
Alguém bate, insiste através da madeira,
que me importa que batam à porta,
a solidão é uma espinha
insidiosamente alojada na garganta.
Um pássaro morto no jardim com neve.

Nada me importa; mas tu enfim me importas.
Importa, por exemplo, no sedoso
cabelo poisar estes lábios aflitos.
Por exemplo: destruir o silêncio.
Abrir certas eclusas, chover em certos campos.
Importa saber da importância
que há na simplicidade final do amor.
Comunicar esse amor. Fertilizá-lo.
«Que me importa que batam à porta...»
Sair de trás da própria porta, buscar
no amor a reconciliação com o mundo.

Longas manhãs te esperei, perdi a conta.
Ainda bem que esperei longas manhãs
e lhes perdi a conta, pois é como se
no dia em que eu abrir a porta
do teu amor tudo seja novo,
um homem uma mulher juntos pelas formosas
inexplicáveis circunstâncias da vida.

Que me importa, agora que me importas,
que batam, se não és tu, à porta?

Fernando Assis Pacheco

sábado, 21 de março de 2020

Bate-me à porta, em mim

Bate-me à porta, em mim, primeiro devagar.
Sempre devagar, desde o começo, mas ressoando depois,
ressoando violentamente pelos corredores
e paredes e pátios desta própria casa
que eu sou. Que eu serei até não sei quando.
É uma doce pancada à porta, alguma coisa
que desfaz e refaz um homem. Uma pancada
breve, breve -
e eu estremeço como um archote. Eu diria
que cantam, depois de baterem, que a noite
se move um pouco para a frente, para a eternidade.
Eu diria que sangra um ponto secreto
do meu corpo, e a noite estala imperceptivelmente
ou se queima como uma face. Escuta:
que a noite vagarosamente se queima
como a minha face.
(...)

Herberto Helder


terça-feira, 17 de março de 2020

Maria Helena Vieira da Silva

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Vens da pobreza das casas do sul


Vens da pobreza das casas do Sul,
das regiões duras do frio e terremotos
que, mesmo quando os seus deuses rolaram para a morte,
nos deram a lição da vida na argila.

Tu és um cavalinho de argila preta, um beijo
de barro escuro, amor, papoila de argila,
pomba do crepúsculo que voou nos caminhos,
mealheiro de lágrimas da nossa pobre infância.

Moça, tu conservaste o coração de pobre,
os pés de pobre acostumados às pedras,
a boca que nem sempre teve pão ou delícia.

Tu és do Sul pobre, donde minha alma vem:
no seu céu a tua mãe continua a lavar roupa
com a minha. Por isso te escolhi, companheira.

Pablo Neruda


sábado, 14 de março de 2020

Segue o teu destino

Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.
A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-próprios.
Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.
Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.
Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.

Ricardo Reis

quinta-feira, 12 de março de 2020

Se eu pudesse dar-te aquilo que não tenho

Se eu pudesse dar-te aquilo que não tenho
e que fora de mim jamais se encontra
Se eu pudesse dar-te aquilo com que sonhas
e o que só por mim poderá ter sonhado
Se eu pudesse dar-te o sopro que me foge
e que fora de mim jamais se encontra
Se eu pudesse dar-te aquilo que descubro
e descobrir-te o que de mim se esconde
Então serias aquele que existe
e o que só por mim poderá ter sonhado

Ana Hatherly


sábado, 29 de fevereiro de 2020

Suomenlinna, Dezembro 2019


Preciso de escrever-te do avesso para te amar em excesso

Há pessoas que conseguem virar uma ideia do avesso, tirar dela o melhor, revirar as golas ao texto, fazer-lhe bainhas, retirar os excessos, ajustar ao corpo, e pode ser um corte preciso, umas pinças, e, depois, dão-lhe um jeito para que fique graciosa a composição, um viés, uns godés, uns machos, umas aplicações singelas mas oportunas, um ar da sua graça, uma leveza.

Fica assim o palavreado com alma - uma música, uma luz, qualquer coisa muito próxima da origem, da raiz, da seiva, do sangue, da respiração.

São os poetas. Artistas, artífices, profetas, sibilas.

Abençoados poetas. Abençoadas pessoas.

Ana Luísa Amaral


A bela do bairro


Ela era muito bonita e benza-a Deus
muito puta que era sempre à espera
dos pagantes à janela do rés-do-chão
mas eu teso e pior que isso néscio desses amores
tenho o quê? Quinze anos
tenho o quê uns olhos com que a vejo
que se debruçava mostrando os peitos
que a amei como se ama unicamente
uma vez um colo branco e até as jóias
que ela punha eram luzentes semelhando estrelas
eu bato o passeio à hora certa e amo-a
de cabelo solto e tudo não parece
senão o céu afinal um pechisbeque

ainda agora as minhas narinas fremem
turva-se o coração desmantelado
amando-a amei-a tanto e sem vergonha
oh pecar assim de jaquetão sport e um cigarro
nos queixos a admiração que eu fazia
entre a malta não é para esquecer nem lá ao fundo
como então puxo as abas da farpela
lentamente caminho para ela
a chuva cai miúda
e benza-a Deus que bonita e que puta
e que desvelos a gente
gastava em frente do amor

Fernando Assis Pacheco

Não sei que horas são no teu relógio

Não sei que horas são no teu relógio.
No meu é cedo/tarde - está parado
vai fazer uns vinte anos. Não importa,
pois as coisas vão e vêm, e de novo

se levanta o mês de Março nesta era
da ironia, com seus truques estafados
e promessas desfolhantes. Juntamente,
tudo passa e tudo volta, mas diverso.

Só por isso, justamente, tem piada
estar aqui, abrir os olhos, conferir
ainda e sempre, na vitrina da manhã,
a produção da Primavera.

José Miguel Silva

sábado, 22 de fevereiro de 2020

O que mais amo

Não sou capaz de estranhas paixões
e amo, como muitos, o vento forte
que agita a roupa estendida nas cordas,
as bicicletas ferrugentas
de pneus furados
esquecidas em garagens e arrecadações,
a água fresca que mata a sede
ao mais miserável dos homens.
Mas se, como outros, amo os dias de intensa luz
e o descuido dos pássaros no ar,
ninguém ama como eu
as estrias do teu ventre,
a primeira casa de dois filhos.
de todas as coisas prodigiosas que conheço
são elas o que mais se parece
com os rasgos abertos por um arado
na terra crua deste mundo.

Luís Filipe Parrado

Green grass by Tom Waits

https://www.youtube.com/watch?v=z05JY52OD_A


domingo, 16 de fevereiro de 2020

He got nothing from her



He got nothing from her.
She got nothing from him,
nothing but cold air from
either of them.

Theirs was not the best
start in the harsh
light of the morning.
As reality crept around
The cracks in her curtains,

strangers arising,
false memories
pre-dawning, quickly
vertical and yawning

He picked up his adultery
from her hard
bedroom floor
the morning after the
night before

while She
kicked into the corner
behind the door the
little respect she found
left with her drawers


her chin to her chest
exagerating his flaws
feel under her thighs
squeezing tight her
black eyes, while
he tried desperately to
find the right words
with his shirt


She sat rigid in their
dirt. They were both
late for work

On the wall, literary grafiti, unknown

sábado, 15 de fevereiro de 2020

Ah, falemos da brisa

Eu dizia:«Nenhuma brisa é triste»,
e procurava água, lábios,
um corpo
onde a solidão fosse impossível.

Mas quem sabe dessa música
cativa nos meus dedos?
E depois, como guardar um beijo,
mar doirado ou sombra
desolada?

Recordava um rio,
álamos,
o sabor nupcial da chuva,
tropeçava em lágrimas e soluços
e lágrimas, e procurava.

Como quem se despe
para amar a madrugada nas areias,
eu dizia: «Nenhuma brisa é triste,
triste», e procurava.

E procurava.

Eugénio de Andrade

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

The times they are a'changin' by Odetta

https://www.youtube.com/watch?v=n53v-YNAHsk

Traduzir-se

Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
 
Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
 
Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.
 
Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.
 
Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.
 
Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.
 
Traduzir-se uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?
 
Ferreira Gullar

terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

Tudo pode tentar-me

Tudo pode tentar-me a que me afaste deste ofício do verso:
Outrora foi o rosto de uma mulher, ou pior -
As aparentes exigências do meu país regido por tolos;
Agora nada melhor vem à minha mão
Do que este trabalho habitual. Quando jovem,
Não daria um centavo por uma canção
Que o poeta não cantasse de tal maneira
Que parecesse ter uma espada nos seus aposentos;
Mas hoje seria, cumprido fosse o meu desejo,
Mais frio e mudo que um peixe.

W. B. Yeats

sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Sai de casa


Rasga este poema depois de o leres.
E depois espalha os bocados
Pelo vasto mundo
Ou então na tua rua, vai à aldeia, à praia,
Atira-o ao mar, deita-o ao lixo,
Para que venha o vento, o sol, a chuva, os homens do lixo,
Acabar com ele de vez.
Passado um dia,
Sai de casa e procura
Encontrá-lo de novo.

Manuel Resende

quarta-feira, 29 de janeiro de 2020


A noite dos alquimistas by Fausto


https://www.youtube.com/watch?v=EqUH6BcEtx0

João Miguel Fernandes Jorge


A zona de pausa

Tens de a ter, caso contrário, as paredes
cercar-te-ão.
tens de desistir de tudo, deitar
fora, deitar tudo fora.
tens de olhar para o que estás a olhar
ou pensar no que estás a pensar
ou fazer o que estás a fazer
ou
a não fazer
sem considerar proveito
pessoal
sem aceitar orientação.

as pessoas estão consumidas com
o esforço,
escondem-se em hábitos
comuns.
as suas preocupações são preocupações de
manada.
poucos têm capacidade de olhar
para um sapato velho durante
dez minutos
ou de pensar em coisas estranhas
como: quem é que inventou
a maçaneta?
tornam-se desvivas
por serem incapazes de fazer
uma pausa
de se desarmarem
de se desdobrarem
de desverem
de desaprenderem
de se exporem.
escuta o seu riso
falso, depois
vai-te
embora.

Charles Bukowski
(trad. de Rosalina Marshall)

terça-feira, 28 de janeiro de 2020

Não haver palavras és tu a desaparecer

A quem senão a ti direi
como estou triste? Mas se a tristeza vem
de tu não estares, como ta direi, como hei-
de juntar o que me está doendo ao ven-
to que não bate mais à tua porta? Eu sei
que a tristeza é só isto, é só isto,
o descoincidir consigo mesmo, eu sei,
descoincidir com os outros, estava previsto
porque dentro de si o mundo não coincide e
não há senão tristeza. Em cada um está Cristo
sempre abandonado, cada um abandonado
a si mesmo, sem princípio e sem fim,
pois no princípio o amor era dado
promessa de te ter sempre junto a mim
não ausência, nem dor, nem habitado
ser por todo este absurdo. Morrer
um pouco, disse, sem saber o que dizia
pois eram só palavras, como se a prometer
tudo aquilo que havia e não havia.
Não haver palavras és tu a desaparecer.

Bernardo Pinto de Almeida


sábado, 25 de janeiro de 2020

Não entres como turista no coração de uma mulher


Não entres como turista no coração de uma mulher -
a tirar fotos,
a deixar latas de cerveja,
procurando apenas catedrais imensas
e estátuas transparentes,
com a mochila cheia de mapas
e fazendo refeições rápidas;
há um país
sete cidades
uma cordilheira e um inverno
no coração de uma mulher.
não bebas lá apenas um copo de Mar.
não entres de avião:
apanha o comboio da meia lua;
não reveles lá as tuas fotos numa hora;
se não fizer demasiado frio
entra nu,
não leves guarda-chuva
e sobretudo não cortes árvores
no coração de uma mulher
não costumam voltar a crescer.

José María Zonta

Aqui, onde agora habito

Aqui, onde agora habito
o vazio não para de se queixar.
Não arranja nada para fazer
e não tem casa.

Adonis (trad.: Nuno Júdice)

quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

Estrela


Legenda
para aquela estrela
azul
e fria
que me apontaste
já de madrugada:
amar
é entristecer
sem corrompermos
nada.


Carlos de Oliveira

(Prefiro o Inácio)



Prefiro o Inácio,
a quase todos os poetas que conheço.
Não sei se morreu ou se já não vive
- pois foi proibido de beber
e de fumar, e o Inácio era
essencialmente isso: um grande bêbado
e um fumador diligente, que ensinara
o cão a ir junto da taberneira buscar-lhe
novo maço de tabaco. Quem viu, acredita.
Quem não viu, falhou o milagre.


Manuel de Freitas

As armas



Muitos armam-se para a guerra.
É necessário.
Outros armam-se para o mundo.
É preciso.
Alguns armam-se para a morte.
É natural.
Tu armas-te para o amor
e estás tão indefeso
para a guerra,
para o mundo,
para a morte.

Luz Helena Cordero

quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

Quem vive para o amor está lixado

Quem vive para o amor está lixado
não tarda, que o amor é um amplo espaço
vazio sem cor nem forma e um silêncio
tumular por dentro. Mau, muito mau
para se levar alguém. Mas tu vieste
e de imediato tudo fôra já decidido
como quando alguém nasce e olha em torno
– pouco importa se estranha ou não a paisagem.
Tínhamos o nosso espaço e tínhamo-nos
a nós, um ao outro por natural companhia
era o amor, tudo indicava. Podia-se morrer
disso. E tínhamos o tempo todo para ver.

Rui Caeiro


domingo, 12 de janeiro de 2020

Reduzir a dependência das coisas

Tudo consiste em reduzir a dependência das coisas.
Partes amanhã. Não mais nos veremos. Um pouco o
desertor a cada passagem da nossa alma ou
quem espera para morrer.

A aquisição de todos estes bens
as espécies de tristeza são o que
acompanha quem espera — quais as pretendidas
vantagens? a juventude ou o mar?

Que te importa o que posso ou não fazer? Se
estamos tão perto quando nas ruas cruzamos e dizemos
o herói de toda a circunstância — a tua vida
precede a minha a tua morte ao abrigo das paixões
mas nada disto é dito
animal que repousa sob o erro.

Pela última vez
põe os teus sapatos novos
tão contrários à fonte dos actos e à moral
e vem, mesmo que tenhas andado para lá do som,
lavadinho, para que eu possa passar a minha mão
pelo pêlo
pelo pêlo lugar também do saber e de toda a possessão.

João Miguel Fernandes Jorge

Falhar melhor


Falhar outra vez. Falhar melhor. 
(Samuel Beckett)


Falhar melhor,
não sei mas falhar
sempre

exige muita pontaria.


Marta Magalhães




quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

Ano Novo

Meia-noite. Fim
de um ano, início
de outro. Olho o céu:
nenhum indício.
Olho o céu:
o abismo vence o
olhar. O mesmo
espantoso silêncio
da Via-Láctea feito
um ectoplasma
sobre a minha cabeça
nada ali indica
que um ano novo começa.
E não começa
nem no céu nem no chão
do planeta:
começa no coração.
Começa como a esperança
de vida melhor
que entre os astros
não se escuta
nem se vê
nem pode haver:
que isso é coisa de homem
esse bicho
estelar
que sonha
(e luta).

Ferreira Gullar

Ano Novo

Ficção de que começa alguma coisa!
Nada começa: tudo continua.
Na fluida e incerta essência misteriosa
Da vida, flui em sombra a água nua.

Curvas do rio escondem só o movimento.
O mesmo rio flui onde se vê.
Começar só começa em pensamento.

Fernando Pessoa

Remedia Amoris

Foi uma péssima ideia a de voltarmos a ver-nos. Não fizemos mais do que trocar insultos e culpar-nos de velhas e sórdidas histórias. Depois ...