domingo, 26 de dezembro de 2021

O lugar onde temos razão

Do lugar onde temos razão
jamais crescerão
flores na primavera.

O lugar onde temos razão
está pisoteado e duro
como um pátio.

Mas dúvidas e amores
escavam o mundo
como uma toupeira, como a lavradura.
E um sussurro será ouvido no lugar
onde houve uma casa
que foi destruída.

Yehuda Amichai


Poema inacabável

Many loved before us, I know
that we're not new...
- podia começar assim,
com uma dessas canções
profanas e furibundas
a que se regressa sempre
nos partidos tempos da vida.
 
Mas não creio que o alento possa voltar
a ser o daquelas manhãs de Junho
em que uma despedida precoce ditou leis
que eu cumpri demasiado bem.
Que tem isso a ver contigo, dirás,
e a resposta cala-se no meu peito,
 
asfixia lentamente nas sílabas
do teu nome em forma de punhal,
enquanto eu, o próprio, ando por aí
a ver passar os navios que já não passam
e a preparar tabernas disponíveis
para a velhice que virá.
Já não sou, acredita, esse príncipe
 
de um reino que quis imundo e breve.
E sei agora que as algemas do amor
doem mais quando os pulsos mal abertos
calafetaram a memória numa travessa
sem espera. De pouco serve importunar-te:
 
és apenas o álibi dilacerante
de um poema que eventualmente terá
alguma coisa a ver comigo, nada
que mereça a pena que aliás nada merece.
 
E hás-de ter uma vida, uma família, um cão,
como toda a gente tem mesmo que não tenha,
inventando paliativos cheios de calor,
do sossego, que nunca curaram ninguém
da peste real do amor: esta vontade
de beber por mãos alheias o sangue derramado,
suspenso num sorriso em chamas
sobre o qual já tudo foi dito e ainda nada.

Que te protejam, na noite serrada,
as mais frias certezas e a boca da catástrofe
que não beijou nem quis o poema inacabável.

Manuel de Freitas


sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

Solo le pido a Dios


(...)
Solo le pido a Dios
Que la guerra no me sea indiferente
Es un monstruo grande y pisa fuerte
Toda la pobre inocencia de la gente

Solo le pido a Dios
Que el engaño no me sea indiferente
Si un traidor puede más que unos cuantos
Que esos cuantos no lo olviden fácilmente
(...)

León Gieco
Mercedes Sosa


quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Fado Penélope

 https://www.youtube.com/watch?v=6VT6H7doXUU

(...)
E enquanto o meu amor anda em viagem
Fazendo a guerra santa ao desespero
Eu encho o meu vazio de coragem
Fazendo e desfazendo o que não quero
Fazendo e desfazendo o que não quero

A fome de estar vivo é tão intensa
Paixão que se alimenta do perigo
De o chão em que se inscreve a minha crença
Só ter por garantia ser antigo
Só ter por garantia ser antigo

José Mário Branco


Sólo el silencio salva

Sólo el silencio salva, compañero.
Sólo el silencia salva. Si has tenido
una noche gloriosa en que Afrodita
te ha sonreído y Baco te ha llenado
la copa sin cesar, piensa que luego,
cuando la oscuridad se desvanezca,
tus amigos se marchen a sus casas
y empiece a amanecer, sólo el silencio
va a salvarte, muchacho. Tenlo en cuenta.

Luis Alberto de Cuenca


Quero dizer-te: não morras.

quero dizer-te: não morras.
Nem me digas quem és, quem foste, como sabes
a língua que se fala sobre a terra.
Ao lume lanço
toda a vontade de viver, ser vivo,
a cautela do ar, ardendo em torno.
Passarei, terás passado em mim, só quero
dizer-te: não morras nunca, agora, nunca mais.

António Franco Alexandre


segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

As palavras que faltaram

https://www.publico.pt/2021/12/20/impar/cronica/palavras-faltaram-1989249

(...)
Fui muitas vezes magoada por pessoas incapazes de dizer em palavras, o comodismo de me preterir, e no silêncio encontraram a melhor forma de aparentemente saírem ilesos disso: e isso, parece-me, era uma grande responsabilidade.

Às vezes precisamos de crescer para saber usar as palavras em vez do silêncio. As palavras tornam-se difíceis quando temos de as escolher adequadamente, enquanto o silêncio é uma forma preguiçosa de dispensar os outros.

A dor que os outros nos infligem quando nos dispensam mudos dificilmente será esquecida.

Até as palavras mais cruas vencem à angústia de uma página em branco.
(...)

Inês Meneses


domingo, 19 de dezembro de 2021

Eu quero a paz de pertencer

eu quero a paz de pertencer a um só lugar,
eu quero a tranquilidade de não dividir memórias.
ser todo de uma vida.
e assim ter a certeza que morro de uma só única vez.
_________ custa-me ir cumprindo tantas pequenas mortes, 
essas que apenas nós notamos, 
na íntima obscuridade de nós.

Mia Couto


quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Haikus

I

Passou a meia-noite –
A Via Láctea
Inclina-se sobre um bambu


II
A morte chega –
Alguém ri às gargalhadas
Nas ameixoeiras

Masaoka Shikiki


terça-feira, 14 de dezembro de 2021

Coincidir

https://www.youtube.com/watch?v=b3GyAtcoogc

Hay historias de amor que nunca terminan
Que se esconden tras la vuelta de tu esquina
Que bailan sobre un solo pie
Que reman con un remo, que beben sin sed
Hay espacio, hay dolor, hay deseo
Corazones en el aire llenos de agujeros
(...)


Chuva incessante e eu bebendo só

A vida depressa caminha para o nada,
sempre assim foi e será
e se neste nosso mundo viveram imortais
como o Pinheiro Vermelho e Wang Chiao,
onde estão eles agora?
um ancião ofereceu-me vinho, garantindo-me a imortalidade
sendo assim bebo um pouco, não tenho nada a perder
aos primeiros golos deixei de sentir
ao fim de uns quantos copos até do céu me esqueci
mantém-te mas é fiel ao momento que passa
e às suas próprias coisas
pássaros de asas mágicas, viajam através das nuvens,
em oito direcções preparam a viagem de volta
eu por mim consagro-me a viver em solidão
já faz quarenta anos que a isso me dedico
com devoção e de acordo com a sábia natureza
o meu corpo envelheceu há muito tempo
mas os meus sentimentos continuam intactos,
por isso nada tenho a lamentar.

Tao Yuanming (365-427)

sábado, 11 de dezembro de 2021

Rio Verdugo

 


(*) What's in a name

Pergunto: o que há num nome?
 
De que espessura é feito se atendido,
que guerras o amparam,
paralelas?

Linhagens, chãos servis,
raças domadas por algumas sílabas,
alicerces da história nas leis que se forjaram
a fogo e labareda?

Extirpado o nome,
ficará o amor, ficarás tu e eu – mesmo na morte,
mesmo que em mito só

E mesmo o mito (escuta!),
a nossa história breve
que alguns lerão como matéria inerte,
ficará para o sempre do humano

E outros
o hão de sempre recolher,
quando o seu século dele carecer

E, meu amor, força maior de mim,
seremos para eles como a rosa –
Não, como o seu perfume:
ingovernado                  livre

Ana Luísa Amaral


quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Não pude amar mais nada

não pude amar mais nada
não pude amar mais ninguém
e mesmo que te minta
é o contrário disso

e mesmo que te minta
é a verdade seca
posta ali às avessas;
não pude amar mais claro

Fernando Assis Pacheco


sexta-feira, 26 de novembro de 2021

Cavalo à solta

https://www.youtube.com/watch?v=SjKne-2SaHU&list=RDSjKne-2SaHU&start_radio=1

Minha laranja amarga e doce
Meu poema
Feito de gomos de saudade
Minha pena 
Pesada e leve
Secreta e pura
Minha passagem para o breve
Breve instante da loucura

Minha ousadia, meu galope, minha rédea,
Meu potro doido, minha chama, minha réstia
De luz intensa, de voz aberta
Minha denúncia do que pensa
Do que sente a gente certa
(...)

Ary dos Santos


quarta-feira, 24 de novembro de 2021

 




Presságio

O amor, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar p'ra ela,
Mas não lhe sabe falar.

Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há de dizer.
Fala: parece que mente...
Cala: parece esquecer...

Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
P'ra saber que a estão a amar!

Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!

Mas se isto puder contar-lhe
O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar...

Fernando Pessoa


terça-feira, 23 de novembro de 2021

domingo, 21 de novembro de 2021

Com que voz?

Essa voz que deixei perder
já não me procura;
e nada será jamais
tão simples e singular
como aquela voz modulada
e firme na sua insegurança,
tão indefesa como estar vivo.
Porque falo nisto agora?
Desista de me ler
quem busca um fio coerente,
uma afirmação rotunda
e concisa. Não tenho loja
com essa mercadoria.

Nem com mais nenhuma.
Procuro apenas o som nítido de uma voz,
entre todas as coisas que deixei perder.
Procuro.

Luís Filipe Castro Mendes

sábado, 20 de novembro de 2021

Súmula

Minha cabeça estremece com todo o esquecimento.
Eu procuro dizer como tudo é outra coisa.
Falo, penso.
Sonho sobre os tremendos ossos dos pés.
É sempre outra coisa, uma
só coisa coberta de nomes.
E a morte passa de boca em boca
com a leve saliva,
com o terror que há sempre
no fundo informulado de uma vida.

Sei que os campos imaginam as suas
próprias rosas.
As pessoas imaginam os seus próprios campos
de rosas. E às vezes estou na frente dos campos
como se morresse;
outras, como se agora somente
eu pudesse acordar.

Por vezes tudo se ilumina.
Por vezes canta e sangra.
Eu digo que ninguém se perdoa no tempo.
Que a loucura tem espinhos como uma garganta.
Eu digo: roda ao longe o outono,
e o que é o outono?
As pálpebras batem contra o grande dia masculino
do pensamento.

Deito coisas vivas e mortas no espírito da obra.
Minha vida extasia-se como uma câmara de tochas.

- Era uma casa - como direi? - absoluta.
(...)

Herberto Helder


sexta-feira, 19 de novembro de 2021

Numa estação de metro

A minha juventude passou e eu não estava lá.
Pensava em outra coisa, olhava noutra direcção.
Os melhores anos da minha vida perdidos por distracção!

Rosalinda, a das róseas coxas, onde está?
Belinda, Brunilda, Cremilda, quem serão?
Provavelmente professoras de Alemão
em colégios fora do tempo e do espaço!

Hoje, antigamente, ele tê-las-ia
amado de um amor imprudente e impudente,
como num sujo sonho adolescente
de que alguém, no outro dia, acordaria.

Pois tudo era memória, acontecia
há muitos anos, e quem se lembrava
era também memória que passava,
um rosto que entre outros rostos se perdia.

Agora, vista daqui, da recordação,
a minha vida é uma multidão
onde, não sei quem, em vão procuro
o meu rosto, pétala dum ramo húmido, escuro.

Manuel António Pina


quinta-feira, 18 de novembro de 2021

All I really want

(...)
Do I wear you out?
You must wonder why I'm relentless and all strung out
I'm consumed by the chill of solitary
I'm like Estella
I like to reel it in and then spit it out
I'm frustrated by your apathy
And I am frightened by the corrupted ways of this land
If only I could meet the maker
And I am fascinated by the spiritual man
I am humbled by his humble nature, yeah
(...)

https://www.youtube.com/watch?v=MPqGOtgvHrk


terça-feira, 16 de novembro de 2021

Finish

We are like roses that have never bothered to bloom 

when we should have bloomed and

it is as if

the sun has become disgusted with

waiting


Charles Bukowsky


Passou por nós este tempo todo


Passou por nós este tempo todo, a coisa
ridícula do estão-a-tocar-a-nossa-canção
desaba sobre nós como um trovão.
Passa-nos uma coisa pela cabeça e
lá vamos nós de cabeça meter-nos
na boca do lobo, atirar ao próprio pé,
meter um golo na própria baliza.

Mesmo ao ler duas linhas muito belas,
com a sombra do candeeiro a dar-lhe em cheio,
a breve palavra dos seus lábios era outra.
A simples música dos seus lábios era outra.
Essas linhas já não tinham, por assim dizer,
lógica nenhuma. E eu, tonto, lá ia.

A coisa é de tal forma que ainda hoje
lá vou, a esse rodeio de mistérios repetidos,
força magnética e fatal, onde foste buscar
tanto sangue para meter nas veias?
Que, grossas, despontam sobre a ira
das mãos assanhadas e assim te atraem.

Uma dança parada de costas duras, fasquia
dobrável com truque de mão, alguma coisa
me prende aqui, quem sabe se nesta casa
não descobri, sem querer, o eixo da terra,
o equador de uma alma relativamente pobre.

Helder Moura Pereira

 


terça-feira, 9 de novembro de 2021

Com licença poética


Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
-- dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.


Adélia Prado


segunda-feira, 8 de novembro de 2021

Pudesse eu não ter laços nem limites

Pudesse eu não ter laços nem limites
Ó vida de mil faces transbordantes
Para poder responder aos teus convites
Suspensos na surpresa dos instantes.

Sophia de Mello Breyner

quinta-feira, 4 de novembro de 2021

O que fazes aqui?

Pensei que te havia dito adeus,
um adeus definitivo, ao deitar-me
quando pude finalmente fechar os meus olhos
e esquecer-me de ti e das tuas artimanhas
de tua insistência, de tua baba ruim,
da tua capacidade de me anular.
Pensei que te havia dito adeus
para todo o sempre, e acordo
e encontro-te novamente junto a mim,
dentro de mim, envolvendo-me, ao meu lado,
invadindo-me, sufocando-me, diante
dos meus olhos, na minha vida
à minha sombra, nas minhas entranhas,
em cada pulso do meu sangue, entrando
pelo meu nariz quando eu respiro, espreitando 
pelas minhas pupilas, ateando fogo
nas palavras que a minha boca diz.
E agora, o que faço? Como poderia
banir-te de mim ou acostumar-me
a viver contigo? Comecemos
por demonstrar maneiras impecáveis.
Bom dia, tristeza.

Amalia Bautista


segunda-feira, 25 de outubro de 2021

A humildade

a humildade
o desenfreio em tipo pequeno
antídoto aos dédalos
assoma
assombra
ensombra

oh que embargo
que aspas
que estacionário capricho

Ana Hatherly


sábado, 23 de outubro de 2021

Milord

Allez, venez, Milord!

Vous asseoir à ma table
Il fait si froid, dehors
Ici c'est confortable
Laissez-vous faire, Milord
Et prenez bien vos aises
Vos peines sur mon cœur
Et vos pieds sur une chaise
Je vous connais, Milord
Vous n'm'avez jamais vue
Je n'suis qu'une fille du port
Qu'une ombre de la rue

https://www.youtube.com/watch?v=Yo9-M22-C2E 


Eu sabia por ela as estações



Eu sabia por ela as estações

os esquilos os corvos as gaivotas.

Chegada a primavera abria os nós

em flores precipitadas e carnudas

de longas redondezas tacteantes

que batiam no vidro da janela.

Não dava fruto a minha castanheira

e na verdade não era sequer minha

ou só seria porque nos olhámos

cada manhã por mais de trinta anos.

Mas dava flores e esquilos e gaivotas

verão outono corvos primavera

sem contabilidades biológicas

doutras fertilidades transmissíveis.

Dava flores como se desse versos

sem precisar por isso de escrevê-los

como os amantes se amam num só corpo

sem ver onde um começa e o outro acaba

aberta toda em lábios vaginais

com uterinos longos falos brancos.

Também este ano floriu no tempo certo.

Mas o inverno chegou em plenas maias.

Disseram que a raiz rachou ao meio

que o centro do seu tronco estava oco

não percebiam como tinha flores.

Cortaram membro a membro a minha árvore

ficou só a raiz e o seu vazio

e sobre o campo em volta a neve quente

das suas flores perplexas

impossíveis.


Helder Macedo



terça-feira, 19 de outubro de 2021

1970 (retrato)


A minha geração, já se calou, já se perdeu, já amuou,
Já se cansou, desapareceu, ou então casou, ou então mudou
Ou então morreu: já se acabou.

A minha geração de hedonistas e de ateus, de anticlubistas,
De anarquistas, deprimidos e de artistas e de autistas
Estatelou-se docemente contra o céu.

A minha geração ironizou o coração, alimentou a confusão
Brincou às mil revoluções amando gestos e protestos e canções,
Pelo seu estilo controverso.

(...)

JP Simões


Escrito de memória

1. Um pequeno depósito de incredulidade no fundo dos teus olhos.

2. Um breve estremecimento no movimento
do coração (do meu coração).

3. A impressão de alguém olhando-te atrás de ti.

4. Uma voz familiar
num sítio cheio de gente.
(que só tu ouves dentro de ti).

5. Um súbito silêncio entre as
sílabas de certas palavras
que fica depois a pairar perto dos lábios.

6. A ignorância de alguma coisa
que ainda não sabes que não sabes.

7. Uma palavra só, aguardando,
uma palavra que basta dizer ou não dizer,
abrindo caminho entre ser e possibilidade.

8. O que não sou capaz de dizer dizendo-me.

9. Eu (um lugar vazio) para sempre; tu para sempre.

10. Outras duas pessoas
de que outras duas pessoas se lembram.

11. Esse país estrangeiro, o tempo.

Manuel António Pina




sexta-feira, 1 de outubro de 2021

Facebook love

Meu amor: sempre que entro no facebook
lembro-me de ti
e no entanto
eu sei
que digo coisas muito incompreensíveis
e não sou deste tempo.
Estou sozinho na frente deste ecrã onde alguém
comentou a tua última fotografia e não consigo
lembrar-me de uma frase normal e simpática
sozinho
apesar de hoje fazer um ano que nos conhecemos.
Não te culpo por não estarmos juntos neste momento
porque sei que a culpa não é tua, que vives noutra cidade
e que nem sequer o dinheiro sobra (apenas as saudades).
Escolhi um caminho errado para a minha vida,
porque todos os caminhos certos me pareceram
ainda mais errados. Assim, fiz tudo o que tinha que fazer,
ou seja, pensei e senti. Não preciso que compreendam as
minhas ideias mas do ser humano ocasional espero ainda
um pedaço de tempo para uma conversa sem pressas,
uma vez por mês, com um café ao alcance da mão.
À janela do estabelecimento, espreitando sempre,
há os pais dos outros e os filhos dos outros
e as casas
e contra ou a favor da história natural eu posso
nada.
Talvez viaje no próximo mês e a distância se
altere. Apetecia-me ir a pé de uma cidade a outra,
como dantes faziam os artistas e outras pessoas normais;
mas nas estradas grandes é proibido andar a pé e os
caminhos pequenos agora servem para amontoar
os habitantes da cidade que não encontraram ninguém
a quem entregar o seu amor. Enquanto decido,
a tua ausência sempre me vai fazendo alguma companhia.
Por favor cuida de ti,
tem cuidado a atravessar as ruas:
Deves saber que nunca tratei bem os mortos.

Rui Costa

segunda-feira, 13 de setembro de 2021

Curriculum vitae reduzido


Mal se conhecem
mas já se fazem
algumas perguntas de ocasião:

que comida preferes
onde vives
que país gostarias de visitar.

Claro que pronunciarão
cem vezes a resposta

Repetem-na
por hábito e perseverança
embora a tenham alterado
no caminho até hoje.

Para compreender a alma dos outros
apenas uma pergunta seria suficiente:
o que te fez chorar.

Marisa Martinez Pérsico


domingo, 5 de setembro de 2021

Poema encontrado no cesto de papéis

Conheço todos os argumentos.
Conheço todos os contra-argumentos.
Conheço a futilidade da vida.
Conheço a fome, a sede, a ânsia.
A alegria.
O amor? Também.
O desamor. A sorte e o azar.
Tropeço todos os dias na mesma pedra.
Tropeço todos os dias na mesma pedra.
Tropeço todos os dias na mesma pedra.
E no fim já nem sabemos
se havia alguma pedra ou se tropeçamos
por hábito, por amor à arte,
porque não sabemos fazer mais nada.
Porque o homem é um animal que tropeça.
Porque não sabemos fazer mais nada.

Roger Wolfe

Para que serve a poesia?

 "Todo o bom poema contém em si um punhal."

https://www.youtube.com/watch?v=ncF7YG-v_S8



quinta-feira, 12 de agosto de 2021

Arriesgaré la piel


Mi corazón es un caballo alado
Me decisión es una espada amarga
Yo volveré a buscar lo más amado
Pese a la incertidumbre que me embarga.



terça-feira, 10 de agosto de 2021

Nesta vida — é um facto — estamos sempre

Nesta vida — é um facto — estamos sempre
a desaprender coisas novas. O mundo
vai guardando a luz nas suas bainhas negras
e temos a melindrosa companhia dos fantasmas
que nos procuraram: eles governam rudemente
os nossos pequenos reinos e há um ceptro novo

para cada coroação. De repente, com a volta
das estações, damos por nós muito mais velhos
nas fotografias. As razões que nos assistiam
empalidecem em paisagens cruelmente coagidas
pela luz. Fomos expulsos dos grandes palácios

da alegria? Onde estão os mapas que nos guiavam
lá dentro, exactos como o instinto? Não sabemos
responder: o caminho turva-se: são as incertezas
da maturidade. As palavras não nos iluminam
e o amor está condenado aos defeitos naturais
do coração, que ainda assim há-de voltar a arder
sem defesa nem socorro uma vez mais.

Rui Pires Cabral

segunda-feira, 9 de agosto de 2021

Se cada dia cai


Se cada dia cai,
dentro de cada noite,
há um poço
onde a claridade está presa.

Há que sentar-se na beira
do poço da sombra
e pescar luz caída
com paciência.

Pablo Neruda


terça-feira, 3 de agosto de 2021

Ela falava só para mim


71. Ela falava só para mim. Anos e anos. Depois, ficou em silêncio. Hoje, comunica com a linguagem das pedras brilhantes. E fala com o futuro. Como se ainda esperasse um filho no ventre despedaçado pela guerra dos cleptocratas.

72. Há abismos invisíveis em caminhos distraídos. Quando damos por nós, estamos numa dimensão paralela. Não sei nada de quântica. Mas sei o que está no outro lado do que me é impossível.

73. Irreversível e desastroso. E agora tudo o que já fez parte de mim pertence ao Grande Livro do Mistério Inacessível.

74. As arrecadações são abismos de memórias. Antiguidades negociáveis e sem qualquer outro valor. Cumulação de dívidas com o passado. E ainda que não fossem, são hoje brinquedos sórdidos.

75. Objectos que criam mitos. E lá estavam escondidos os aerogramas de um soldado numa guerra que me tinham destinado enquanto brincava com espingardas de pau. Inocente como todos os outros inocentes manipulados pelos carcereiros de uma juventude proibida. Adolescente, com olhos raiados de sangue, disse que não queria matar. E na prisão fui preso. E resisti até ao tutano da lucidez.

76. Chamavam-lhe visco. Era um produto para apanhar pássaros. Uma cola assassina. Soltei pássaros. Centenas de pássaros. Condenaram-me. Mudei de bairro. E descobri a metáfora da viagem.

Luís Filipe Sarmento


 


A poesia, em meu entender


A poesia, em meu entender, não é propriamente coisa para ser subserviente desses doutores universitários que esgalham uns versos perfeitinhos, muito bem elaborados, como eles dizem. Cheios de técnica, cheios de secura também. [...]
Freelancers das semióticas... Palermóides, que não sabem nada sobre o cheiro acre da vida! O Senhor lhes perdoe, a todos! Que não sabem o que é uma lâmina circulando no coração! Ámen.

Al Berto


sexta-feira, 30 de julho de 2021

A ilha


Livra-me da fome que me consome, deste frio;
Livra-me do mal desse animal que é este cio;
Livra-me do fado e se puderes abençoado
Leva-me a mim a voar pelo ar!

Como se houvesse um encanto, uma estranha magia,
O sol lentamente flutua nas margens do dia.
Despe o meu corpo corsário, seca-me a veia maruja,
Morde-me o peito aos ais, das brigas, dos punhais,

Da ilha dos ladrões, quem sai?

https://www.youtube.com/watch?v=KF_S7-iWCwo



A minha morte, não ta dou

A minha morte, não ta dou.
De resto, tiveste tudo
- a flor, a sesta, o lusco-fusco,
a inquietação do dia 8,
as órbitas das mães, das mãos,
das curiosas palavras de não dizer nadinha.
Tudo tiveste: estás contente?

Feliz assim por teres tudo o que sou?
Feliz por perderes tudo o que sei?

Só não te dou o que não serei.
Não, a minha morte, não ta dou.

Pedro Tamen

domingo, 25 de julho de 2021

Abril de sim, Abril de não


Eu vi Abril por fora e Abril por dentro
vi o Abril que foi e o Abril de agora
eu vi Abril em festa e Abril lamento
Abril como quem ri como quem chora.

Eu vi chorar Abril e Abril partir
vi o Abril de sim e Abril de não
Abril que já não é Abril por vir
e como tudo o mais contradição.

Vi o Abril que ganha e Abril que perde
Abril que foi Abril e o que não foi
eu vi Abril de ser e de não ser.

Abril de Abril vestido (Abril tão verde)
Abril de Abril despido (Abril que dói)
Abril já feito. E ainda por fazer.

Manuel Alegre


Há sempre alguém que diz não. Pá.


Ora é tão vingativo
Ora é tão paciente
Amanhã é comedor
Hoje abstinente
Mentiroso, alcoviteiro
Doce e verdadeiro

Uma vez conquistador
Outra vez vencido
Amanhã é navegante
Hoje é desvalido
Sensual, aventureiro
Doido e bandoleiro

Somos capitães
Somos Albuquerques
Nós somos leões
Dos lobos dos mares
E na verdade o que vos dói
É que não queremos ser heróis

https://www.youtube.com/watch?v=eU-dvl8pSc8


sexta-feira, 23 de julho de 2021

Don dinero


Nace en las Indias honrado,
donde el mundo le acompaña,
viene a morir a España
y es en Génova enterrado;
y pues quien le trae al lado
es hermoso, aunque sea fiero,
poderoso caballero
es don, don, dodon, din, don es
don dinero.

https://www.youtube.com/watch?v=q7EAK9xSCqs


Não digas nada!

Não digas nada!
Nem mesmo a verdade
Há tanta suavidade em nada se dizer
E tudo se entender —
Tudo metade
De sentir e de ver…
Não digas nada
Deixa esquecer

Talvez que amanhã
Em outra paisagem
Digas que foi vã
Toda essa viagem
Até onde quis
Ser quem me agrada…
Mas ali fui feliz
Não digas nada.

Fernando Pessoa

segunda-feira, 5 de julho de 2021

De que me serviu


De que me serviu ir correr mundo,

arrastar, de cidade em cidade, um amor

que pesava mais do que mil malas; mostrar

a mil homens o teu nome escrito em mil

alfabetos e uma estampa do teu rosto

que eu julgava feliz? De que me serviu


recusar esses mil homens, e os outros mil

que fizeram de tudo para parar-me, mil

vezes me penteando as pregas do vestido

cansado de viagens, ou dizendo o seu nome

tão bonito em mil línguas que eu nunca

entenderia? Porque era apenas atrás de ti


que eu corria o mundo, era com a tua voz

nos meus ouvidos que eu arrastava o fardo

do amor de cidade em cidade, o teu nome

nos meus lábios de cidade em cidade, o teu

rosto nos meus olhos durante toda a viagem,


mas tu partias sempre na véspera de eu chegar.



Maria do Rosário Pedreira



quarta-feira, 30 de junho de 2021

Lisboa, meu amor


Chamar-te a ti, Lisboa, camarada

E depois, eu sei lá, enlouquecer

https://www.youtube.com/watch?v=fjhfuun0S-M



Que nome te dar?


Que nome te dar? Tu és única. Tu és todas. Ou talvez nenhuma. Eu sou tu. Tu és eu. A outra metade de mim. A parte de ti que em mim ficou. A parte de mim que foi contigo. Ninguém me foi tão próximo. Ninguém me escapou tanto. 
Como foi que constantemente nos encontrámos e nos perdemos?
Esta é a história. Uma história sem história. Uma história só isto.


Manuel Alegre



sábado, 19 de junho de 2021

Enigma


Guarda.

Guarda o segredo

Do meu amor.

Que nem por sombras possam suspeitar

Que todos os poemas que escrevi

Os soubeste primeiro.


Que fiz da tua imagem

A imagem do mundo

E que nunca te vi ao natural,

Musa irreal,

Mulher incerta da minha certeza,

Bela como a beleza.


Miguel Torga



sexta-feira, 18 de junho de 2021

Como um rio


Uma frase começa antes da frase

como um rio começa antes dum rio.

Uma frase começa onde tropeço

no amor que antes de ser já era adeus

começa antes do fogo e antes do frio

como princípio inverso ou fim do avesso

como começo antes do começo

ou talvez como Deus antes de Deus.


Manuel Alegre


sexta-feira, 4 de junho de 2021

A estrela

Eu caminhei na noite
Entre silêncio e frio
Só uma estrela secreta me guiava.

Grandes perigos na noite me apareceram
Da minha estrela julguei que eu a julgara
Verdadeira sendo ela só reflexo
De uma cidade a néon enfeitada.

A minha solidão me pareceu coroa
Sinal de perfeição em minha fronte
Mas vi quando no vento me humilhava
Que a coroa que eu levava era de um ferro
Tão pesado que toda me dobrava.

Do frio das montanhas eu pensei
«Minha pureza me cerca e me rodeia»
Porém meu pensamento apodreceu
E a pureza das coisas cintilava
E eu vi que a limpidez não era eu.

E a fraqueza da carne e a miragem do espírito
Em monstruosa voz se transformaram
Disse às pedras do monte que falassem
Mas elas como pedras se calaram
Sozinha me vi delirante e perdida
E uma estrela serena me espantava.

E eu caminhei na noite minha sombra
De desmedidos gestos me cercava
Silêncio e medo
Nos confins desolados caminhavam
Então eu vi chegar ao meu encontro
Aqueles que uma estrela iluminava.

E assim eles disseram: «Vem connosco
Se também vens seguindo aquela estrela»
Então soube que a estrela que eu seguia
Era real e não imaginada.

Grandes noites redondas nos cercaram
Grandes brumas miragens nos mostraram
Grandes silêncios de ecos vagabundos
Em direcções distantes nos chamaram
E a sombra dos três homens sobre a terra
Ao lado dos meus passos caminhava
E eu espantada vi que aquela estrela
Para a cidade dos homens nos guiava.

E a estrela do céu parou em cima
de uma rua sem cor e sem beleza
Onde a luz tinha a cor que tem a cinza
Longe do verde azul da natureza.

Ali não vi as coisas que eu amava
Nem o brilho do sol nem o da água.

Ao lado do hospital e da prisão
Entre o agiota e o templo profanado
Onde a rua é mais triste e mais sozinha
E onde tudo parece abandonado
Um lugar pela estrela foi marcado.

Nesse lugar pensei: «Quanto deserto
Atravessei para encontrar aquilo
Que morava entre os homens e tão perto.

Sophia de Mello Breyner

segunda-feira, 31 de maio de 2021

domingo, 30 de maio de 2021

Não disse nada amor

Não disse nada amor, não disse nada
Foi o rio que falou com a minha voz
A dizer que era noite e é madrugada
A dizer que eras tu e somos nós

A dizer os mil rostos de Lisboa
Ao longo do teu rosto, se te beijo
À luz de um pombo, chamo Madragoa
E Bairro Alto ao mar, se te desejo

Não disse nada amor, juro, calei-me
Foi uma voz que ao longe se perdeu
Cuidei que era Lisboa e enganei-me
Pensei que éramos dois e sou só eu.

António Lobo Antunes


domingo, 16 de maio de 2021

 


As meninas

Arabela

abria a janela.

Carolina

erguia a cortina.

E Maria

olhava e sorria:

"Bom dia!"

Arabela

foi sempre a mais bela.

Carolina

a mais sábia menina.

E Maria

Apenas sorria:

"Bom dia!"

Pensaremos em cada menina

que vivia naquela janela;

uma que se chamava Arabela,

outra que se chamou Carolina.

Mas a nossa profunda saudade

é Maria, Maria, Maria,

que dizia com voz de amizade:

"Bom dia!"


Cecília Meireles


quinta-feira, 13 de maio de 2021

Hah

Há a mulher que me ama e eu não amo.
Há as mulheres que me acamam e eu acamo.
Há a mulher que eu amo e não me ama nem acama.

Ah essa mulher!

Tu eras mais feliz, Apollinaire.
montado num obus, voavas à mulher.
Tu foste mais feliz, meu artilheiro.
tiveste amor e guerra.

Eu andei pra marinheiro,
mas pus óculos e fiquei em terra.

Upa garupa na mulher que me acama,
que a outra é contigo, coração que bem queres
sofrer pelas mulheres...

Alexandre O'Neill

quarta-feira, 5 de maio de 2021

Reza da manhã de Maio

Senhor, dai-me a inocência dos animais
para que eu possa beber nesta manhã
a harmonia e a força das coisas naturais.

Apagai a máscara vazia e vã
de humanidade
apagai a vaidade,
para que eu me perca e me dissolva
na perfeição da manhã
e para que o vento me devolva
a parte de mim que vive
à beira dum jardim que só eu tive

Sophia de Mello Breyner

segunda-feira, 26 de abril de 2021

Auto-retrato

Sou aquela
que transgride
o abismo da paixão
*
ora o corpo
que se entrega
ora a escrita no seu voo
*
Entre o fogo e a razão

*

(inédito)

Maria Teresa Horta


sexta-feira, 16 de abril de 2021

Estado de poesia

https://www.youtube.com/watch?v=iRyDAHDNIR8 


Nalgum lugar onde nunca estive

nalgum lugar em que eu nunca estive, alegremente além
de qualquer experiência, os teus olhos têm o seu silêncio:
no teu gesto mais frágil há coisas que me encerram,
ou que eu não ouso tocar porque estão demasiado perto

o teu mais ligeiro olhar facilmente me descerra
embora eu me tenha fechado como dedos, nalgum lugar
me abres sempre pétala por pétala como a Primavera abre
(tocando subtilmente, misteriosamente) a sua primeira rosa

ou se quiseres ver-me fechado, eu e
a minha vida nos fecharemos belamente, de repente,
assim como o coração desta flor imagina
a neve cuidadosamente descendo em toda a parte;

nada que eu possa perceber neste universo iguala
o poder de tua imensa fragilidade: cuja textura
me compele com a cor dos seus continentes,
restituindo a morte e o sempre cada vez que respira

(não sei dizer o que há em ti que fecha
e abre; só uma parte de mim compreende que a
voz dos teus olhos é mais profunda que todas as rosas)
ninguém, nem mesmo a chuva, tem mãos tão pequenas

E. E. Cummings

Curso de Medicina da Universidade do Porto vai oferecer cadeira de poesia

https://sicnoticias.pt/pais/2021-04-13-Curso-de-Medicina-da-Universidade-do-Porto-vai-oferecer-cadeira-de-poesia-db73dacc?fbclid=IwAR24HkAcfuxGgNgyPrjulMUir3O90Y8rzZgKb1t9WUy7LO-gpsQY68-G4rY 


terça-feira, 13 de abril de 2021

Olhe

Olhe, tenho uma alma muito prolixa e uso poucas palavras.
Sou irritável e firo facilmente.
Também sou muito calmo e perdoo logo.
Não esqueço nunca.
Mas há poucas coisas de que eu me lembre.

Clarice Lispector

terça-feira, 6 de abril de 2021

Pequena cantiga à mulher

Onde uma tem
o cetim
a outra tem
a rudeza
*
Onde uma tem
a cantiga
a outra tem
a firmeza
*
Tomba o cabelo
nos ombros
o suor pela
barriga
*
Onde uma tem
a riqueza
a outra tem
a fadiga
*
Tapa a nudez
com as mãos
procura o pão
na gaveta
*
Onde uma tem
o vestígio
tem a outra
a pele seca
*
Enquanto desliza
o fato
pega a outra na
enxada
*
Enquanto dorme
na cama
a outra arranja-lhe
a casa
*

Maria Teresa Horta


domingo, 4 de abril de 2021



Mar

Mar, metade da minha alma é feita de maresia
Pois é pela mesma inquietação e nostalgia,
Que há no vasto clamor da maré cheia,
Que nunca nenhum bem me satisfez.
E é porque as tuas ondas desfeitas pela areia
Mais fortes se levantam outra vez,
Que após cada queda caminho para a vida,
Por uma nova ilusão entontecida.

E se vou dizendo aos astros o meu mal
É porque também tu revoltado e teatral
Fazes soar a tua dor pelas alturas.
E se antes de tudo odeio e fujo
O que é impuro, profano e sujo,
É só porque as tuas ondas são puras.

Sophia de Mello Breyner Andresen

Hallelujah

https://www.youtube.com/watch?v=AxOsIoejw4E 

(...)

Well baby, I've been here before
I've seen this room and I've walked this floor
I used to live alone before I knew ya
And I've seen your flag on the marble arch
And love is not a victory march
It's a cold and it's a broken Hallelujah
Hallelujah, Hallelujah
Hallelujah, Hallelujah

Well, maybe there's a God above
But all I've ever learned from love
Was how to shoot somebody who outdrew ya
And it's not a cry that you hear at night
It's not somebody who has seen the Light
It's a cold and it's a broken Hallelujah
Hallelujah, Hallelujah
Hallelujah, Hallelujah
(...)


quinta-feira, 1 de abril de 2021

Carta de amor

💓

https://www.youtube.com/watch?v=xVozMozsR9Y 

(...)

Se choro, quando choro, e minha lágrima cai
É pra regar o capim que alimenta a vida
Chorando eu refaço as nascentes que você secou
Se desejo, o meu desejo faz subir marés de sal e sortilégio
Vivo de cara pra o vento na chuva, e quero me molhar
O terço de Fátima e o cordão de Gandhi cruzam o meu peito
Sou como a haste fina, que qualquer brisa verga, mas nenhuma espada corta

Não mexe comigo, que eu não ando só
Que eu não ando só, eu não ando só
Não mexe não!

Maria Bethânia

quarta-feira, 31 de março de 2021

Epitáfio de domingo


Se eu desaparecer hoje

E falo mesmo do meu corpo aqui tão sentado

a escrever desde a ponta da língua

à légua mais distante da minha vida,

diz que compreendi.


Diz que sei que nada está onde é certo estar

Que o amor súbito é a escada para o entendimento

Diz que fui ar azul sobre campos de secura

estrada recta ao infinito,

um acidente ao longe

Que provei toda a sede quando engoli os homens

Que queimei alegremente no ácido das palavras

Que tombei em ricochete para que me vissem

e que, quando me viram, me ergui animal


Diz que me viste nua, sempre

Que corri por hospícios de olhos fechados

e a boca às avessas

Que vivi mais ao alto do que em mundo plano

e fui honesta na minha rente loucura


Diz que nunca esqueci a subida a um plátano

Que ninguém viveu no meu lugar, nem eu, no de ninguém

Que fui o halo frio que preenchi com esta pena

Pela minha ausência

E que tudo o que disse foi com silêncio


Diz que sei, sobretudo, que ardemos juntos como ventosas,

Que o teu corpo me serviu de andar às pernas asmáticas

Que te agradeço ter-te oferecido lírios

Que me reduziste o nojo da espécie

Diz que eu fui eu


Guarda-me este segredo que tenho largo por baixo dos cabelos:

- quanto em mim fui que não vivi

quanto em ti é que fui eu?


Mas não te preocupes, não desapareço hoje

Quando me conheceste já eu não existia

e tu sabes

que essas saudades que vais tendo

são as minhas.


Cláudia R. Sampaio


terça-feira, 30 de março de 2021

Diamonds and rust

https://www.youtube.com/watch?v=uTmO6QNTGk4 


 


Os meus olhos estavam dispostos a conhecer-te

Os meus olhos estavam dispostos a conhecer-te, e o meu coração
A amar-te. Fui teu imediatamente
Por inteiro, para sempre, teu
Honradamente, com pura intenção,
Com excessivo amor e alegre cuidado:
Assim fui, assim sou, assim serei.
Conheci a tua generosidade, a tua verdade, conheci-te
E aos piedosos companheiros: ouvi-te falar
Com adequadas palpitações. Sobre a corrente,
Profunda, rápida e clara, os lírios flutuavam; os peixes
Corriam através das sombras. Aí, tu e eu
Líamos a Bondade nos nossos olhos e assim nos unimos.

Robert Louis Stevenson


segunda-feira, 29 de março de 2021

Gîtâ

https://www.youtube.com/watch?v=PEeXPPqPfaw 


Estou sempre à espera do inesperado

Estou sempre à espera do inesperado. Assim, a dor não dói.

Mesmo quando dou a mão a alguém e esse alguém a morde.
Faço tudo para ser melhor que eu, ter uma vida intensa mesmo a dormir, 
separar o bom do bom e, com a parte que escolho, fazer melhor. 
Tudo é interessante, mesmo o que não
é interessante, e o interessante está nessa descoberta.
Esta coisa de ser mortal, de ser falível, é a minha afirmação e a minha doença. 
O que resta são paliativos e a sua busca.
Não sei mudar-me, não me quero mudar. Entre proscritos e idiotas, um proscrito. 
Odeio a subtileza dos idiotas.
Falo sempre para mim quando falo com os outros. E dos outros não falo.
Faço de conta. Para comermos todos juntos.
Como iguais.

Joaquim Pessoa


sexta-feira, 26 de março de 2021

Las ciudades

https://www.youtube.com/watch?v=6gqb3AEoq3o 

Te vi llegar
Y sentí la presencia de un ser desconocido.
Te vi llegar
Y sentí lo que nunca, jamás había sentido.
Te quisé amar
Y tu amor no era fuego, no era lumbre.
Las distancias apartan las ciudades,
Las ciudades destruyen las costumbres.
Te dije adiós
Y pediste que nunca, que nunca te olvidará.
Te dije adiós
Y sentí, de tu amor otra vez, otra vez la fuerza extraña.
Y mi alma completa se me lleno de frío
Y mi cuerpo entero se me cubrió de hielo
Y estuve a punto de cambiar tu mundo
De cambiar tu mundo...
Por el mundo mío...

(Jose A. Jimenez)


Inventário

Um dente d'ouro a rir dos panfletos
Um marido afinal ignorante
Dois corvos mesmo muito pretos
Um polícia que diz que garante

A costureira muito desgraçada
Uma máquina infernal de fazer fumo
Um professor que não sabe quase nada
Um colossalmente bom aluno

Um revolver já desiludido
Uma criança doida de alegria
Um imenso tempo perdido
Um adepto da simetria

Um conde que cora ao ser condecorado
Um homem que ri de tristeza
Um amante perdido encontrado
Um gafanhoto chamado surpresa

O desertor cantando no coreto
Um malandrão que vem pe-ante-pé
Um senhor vestidíssimo de preto
Um organista que perde a fé

Um sujeito enganando os amorosos
Um cachimbo cantando a marselhesa
Dois detidos de fato perigosos
Um instantinho de beleza

Um octogenário divertido
Um menino coleccionando estampas
Um congressista que diz Eu não prossigo
Uma velha que morre a páginas tantas

Alexandre O'Neill

quinta-feira, 25 de março de 2021

Medos

Medo do amor
quando tudo é fome.
E onde tudo é tão pouco,
medo de a carícia
despertar infinitos infernos.
Medo de sermos
só eu e tu
a humanidade.
E morrermos
de tanta eternidade.

Mia Couto


Pedaço de mim

https://www.youtube.com/watch?v=a-tOyjl6BO4 


Oh, pedaço de mim
Oh, metade afastada de mim
Leva o teu olhar
Que a saudade é o pior tormento
É pior do que o esquecimento
É pior do que se entrevar
Oh, pedaço de mim
Oh, metade exilada de mim
Leva os teus sinais
Que a saudade dói como um barco
Que aos poucos descreve um arco
E evita atracar no cais
Oh, pedaço de mim
Oh, metade arrancada de mim
Leva o vulto teu
Que a saudade é o revés de um parto
A saudade é arrumar o quarto
Do filho que já morreu
Oh, pedaço de mim
Oh, metade amputada de mim
Leva o que há de ti
Que a saudade dói latejada
É assim como uma fisgada
No membro que já perdi
Oh, pedaço de mim
Oh, metade adorada de mim
Lava os olhos meus
Que a saudade é o pior castigo
E eu não quero levar comigo
A mortalha do amor
Adeus

Chico Buarque


domingo, 21 de março de 2021

Dia Mundial da Poesia




Num outro dia

Apetece-te morrer, rapariga,
mas vais varrer o chão.
Arrumas a roupa
que está nesse canto
e sorris a uma criança
porque às crianças
não se rouba o riso.
Apetece-te morrer, rapariga,
e ninguém sabe porquê,
mas tu sabes
(quem te dera não saber).
Apetece-te morrer,
mas escolhes os legumes para a sopa,
com cuidado,
e fazes uma sopa
realmente deliciosa.
Para ti, não tem sabor.
Onde está a velha alegria
de escolher legumes para a sopa?
Apetece-te morrer, rapariga,
mas caminhas à beira-mar
como se tudo te fosse estrangeiro
e tudo mudo e surdo
como se o canto das cores
para sempre tivesse parado
numa batida do teu coração.
Não podes abrir um livro.
Cada palavra
é uma guilhotina da alma.
Não podes ir buscar
as pequenas mortes,
essas mortes antigas
com que em tempos
foste buscar forças para viver.
Já as usaste todas.
Varrer o chão não está mau.
Tudo o que tenha a nulidade
do que é mecânico
não parece mau.
Mas sabes que partir
é a coisa mais suave.
Sabes que és um raio de luz.
Já experimentaste.
Estiveste lá e regressaste
e então porque não ir e não voltar?
Apetece-te morrer, rapariga,
mas vais estender a roupa.
Arranjas o teu cabelo
e pões pérolas nas orelhas.
Que lindas pérolas.
Onde estão as tuas lágrimas?
Esperas que num outro dia
a incandescência das árvores no esplendor
possa vir de novo
pegar fogo à tua alma
e, quem sabe, reduzi-la a cinzas.

Adriana Crespo


sexta-feira, 19 de março de 2021

Cem pontas por onde se pegue


 Enfim, vou cortar o cabelo, 

com a alegria de quem doma a desordem natural da vida. 


Tem os que passam

Tem os que passam
e tudo se passa
com passos já passados

tem os que partem
da pedra ao vidro
deixam tudo partido

e tem, ainda bem,
os que deixam
a vaga impressão
de ter ficado

Alice Ruiz


Encomenda

Desejo uma fotografia
como esta — o senhor vê? — como esta:
em que para sempre me ria
como um vestido de eterna festa.

Como tenho a testa sombria,
derrame luz na minha testa.
Deixe esta ruga, que me empresta
um certo ar de sabedoria.

Não meta fundos de floresta
nem de arbitrária fantasia...
Não... Neste espaço que ainda resta,
ponha uma cadeira vazia.

Cecília Meireles


sexta-feira, 12 de março de 2021

 

Monotonia


Começar, recomeçar, interminamente repetir um
monótono romance, o romance da minha vida.
Com palavras iguais, inalteráveis, semelhantes, in-
sistir sobre o cansaço e a pobreza disto de viver…
Andar como os dementes pêlos cantos e repisar
o que já ninguém quer ouvir.
Levar o meu desprecioso tempo à deriva.
Queixar-me, castigar e lamentar sem qualquer
esperança, por desfastio.
Pôr a nu uma miséria comum e conhecida, chã-
mente, serenamente, indiferente à beleza dos temas
e das conclusões.
Monotonamente, monotonamente.


Monotonia. Arte, vida…
Não serei ainda eu que te erigirei o merecido
altar.
Que te manejarei hábil e serena.
Monotonia! Gume frio, acerado, tenaz, eloquente.
Sino de poucos tons, impressionante.
Mas se te descobri não te vou renegar.
Tu ensinas-me, tu insinuas-me a arte da verdade,
a pobreza e a constância.
Monotonia, torna-me desinteressada.

Irene Lisboa


terça-feira, 9 de março de 2021

For women who are ‘difficult’ to love


You are a horse running alone

and he tries to tame you
compares you to an impossible highway
to a burning house
says you are blinding him
that he could never leave you
forget you
want anything but you
you dizzy him, you are unbearable
every woman before or after you
is doused in your name
you fill his mouth
his teeth ache with memory of taste
his body just a long shadow seeking yours
but you are always too intense
frightening in the way you want him
unashamed and sacrificial
he tells you that no man can live up to the one who
lives in your head
and you tried to change didn’t you?
closed your mouth more
tried to be softer
prettier
less volatile, less awake
but even when sleeping you could feel
him travelling away from you in his dreams
so what did you want to do love
split his head open?
you can’t make homes out of human beings
someone should have already told you that
and if he wants to leave
then let him leave
you are terrifying
and strange and beautiful
something not everyone knows how to love.

Warsan Shire


Quando se perde o sinal


À noite, num pequeno aeroporto,

vês um avião que está a descolar.
Vai-se perdendo o sinal.
Sem nenhuma piedade pelo que foste,
pois a piedade é demasiado efémera e
não há tempo para construir nada sobre ela,
convences-te de que vives,
embora sem esperanças, uma época
que é a mais feliz de tua vida.

Há uma outra poesia, haverá sempre,
como há outra música. A de Beethoven surdo.
Quando se perde o sinal.

Joan Margarit


sexta-feira, 5 de março de 2021

Canção de madrugar

https://www.youtube.com/watch?v=XEWIPaLf2I4 

De linho te vesti
De nardos te enfeitei
Amor que nunca vi
Mas sei...

Sei dos teus olhos acesos na noite
Sinais de bem despertar
Sei dos teus braços abertos a todos
Que morrem devagar
Sei meu amor inventado que um dia
Teu corpo pode acender
Uma fogueira de sol e de fúria
Que nos verá nascer

Irei beber em ti
O vinho que pisei
O fel do que sofri
E dei... dei...

Dei do meu corpo o chicote de força
Razei meus olhos com água
Dei do meu sangue uma espada de raiva
E uma lança de mágua
Dei do meu sonho uma corda de insónias
Cravei meus braços com setas
Descubri rosas alarguei cidades
E construi poetas
E nunca, nunca te encontrei
Na estrada do que fiz
Amor que não lucrei
Mas quis... quis... quis...

Sei meu amor inventado que um dia
Teu corpo há-de acender
Uma fogueira de sol e de fúria
Que nos verá nascer

Então nem choros, nem medos, nem uivos, nem gritos, nem...
Pedras, nem facas, nem fomes, nem secas, nem...
Feras, nem ferros, nem farpas, nem farças, nem...
Forcas, nem gardos, nem dardos, nem guerras, nem...
Choros, nem medos, nem uivos, nem gritos, nem...
Pedras, nem facas, nem fomes, nem secas, nem...
Feras, nem ferros, nem farpas, nem farças, nem mal...


José Carlos Ary dos Santos


domingo, 28 de fevereiro de 2021

Miranda do Douro, 29/02/21


 

Cena bárbara

Os bárbaros brincam com os patos no jardim,
correm atrás deles, querem convencê-los
de que são galinhas, e cobrem as cabeças
com cristas para se disfarçarem de galos. Os bárbaros são
analfabetos mas escrevem cartas às namoradas, e quando elas
respondem fingem que sabem ler e inventam frases
de amor em que só eles acreditam. Os bárbaros não
precisam de fazer a barba nem de usar gravata, mas
às vezes sentam-se como se fossem educados, pedem
uma água mineral e abrem o jornal só para fingir
que sabem ler, e são intransigentes com as moscas
que lhes pousam no nariz e que matam à palmada. Para
trocar as voltas aos bárbaros, nada melhor do que
ameaçá-los com a faca com que se corta o pescoço às galinhas,
e dizer-lhes que a canja está na panela, e se a quiserem
o mundo será canja para eles. Mas depois de comer
a canja os bárbaros vão ao espelho, cortam a barba
com a faca de matar galinhas, põem gravata e dão
vivas como se não fossem bárbaros, soubessem
ler e não vivessem no quintal dos patos que eles,
armados em galos, querem transformar em galinhas
para as comerem, uma a uma, no meio dos pintainhos.

Nuno Júdice

Zé Tolentino

O meu pai estava a explicar ao meu sobrinho Duarte, então uma criança, a importância da inteligência e o Duarte interrompeu-o assim

– Há uma coisa muito mais importante que a inteligência, avô, é a bondade.

O meu pai contou-me isto comovido

– O miúdo tem razão, o miúdo tem razão

e tinha: a bondade é muito mais importante que a inteligência. Este episódio veio-me à cabeça por causa do Zé Tolentino: ele tem as duas coisas em grau altíssimo, o malandro. Uma bondade enorme e a inteligência metida lá dentro. De que serve ela, aliás, fora disso? A bondade

(e, já agora, a modéstia)

rodeiam-no como um halo, 
a inteligência possui uma descrição e uma delicadeza que não sei se encontrei em mais alguém. Para além disto

(ele, de facto, é escandalosamente rico)

carrega uma agudeza e uma cultura de cristal de rocha e um talento poético de excepção. Nós somos, felizmente, um país de poetas, de grandes poetas, e José Tolentino Mendonça é sem dúvida um deles. E isto é verdade porque eu digo. A sua voz é inteiramente pessoal, compreende-se, ao lê-lo, que o seu conhecimento das obras alheias é muito grande, nota-se, como em qualquer artista, o halo 
dos autores que foram importantes para ele, mas a sua voz não deve nada a ninguém a não ser a si mesmo. (Se eu fosse parvo escrevia eu próprio, que é como pôr ketchup em cima de rodelas de tomate.) Não só não deve 
nada a ninguém a não ser a si mesmo como se sente que a qualidade da sua voz vai continuar a crescer. 
E o pouco

(o muito pouco)

que conheço da sua prosa é de altíssima qualidade. Não é um ficcionista nem me interessaria que o fosse, é um magnífico escritor com um perfeito domínio da ondulação e do ritmo, capaz de pensar numa musicalidade de cristal, denso sem nunca ser pesado, fundo sem nunca sair pela outra ponta, de palavras todas dominadas como cavalinhos de circo. O talento deste homem, naturalmente humilde, faz-nos sentir aquela inveja boa da qual o Zé Cardoso Pires me falou tantas vezes:

– Tenho uma inveja boa de ti,

dizia ele todo vaidoso

tenho uma inveja boa de ti

e é óptimo ter uma inveja boa dos camaradas 
de ofício. Infelizmente, Zé, falta-me a tua qualidade humana e nisso invejo-te também. Eu, que me acho 
o melhor do mundo

(não tenho lugar em mim para falsas modéstias)

invejo-te de um modo 
que me faz morder-me todo. Invejo-te a quantidade 
e invejo-te a qualidade, quase que dava o cu

(desculpa lá, não sou padre)

para compor poemas assim. Sendo um homem complexo, por vezes aparentemente contraditório, consegues sempre tocar-me no coração do coração porque a tua inteligência é uma doçura de gume que me penetra sempre até ao centro de mim, onde estou eu e tudo o que amo também. Devo-te o prazer de te ler, devo-te o prazer 
de aprender contigo

(que ensinas sempre aprendendo, malandro, 
outra virtude rara)

devo-te 
o prazer de, ao estarmos juntos, sermos dois sobretudo quando conseguimos ser um. Esta crónica não vai ser comprida porque está cheia de amor, amizade, respeito e ternura e esses sentimentos poupam-se. Só quero dizer quanto te agradeço não por seres meu amigo, só quero dizer quanto te agradeço por eu ser teu amigo. Quem não necessita de um amigo assim nesta vida? Espero que tenha sobrado suficiente papel nesta página para caber lá um abraço. Este:

António Lobo Antunes

(Visão, 3 de maio de 2018)


domingo, 21 de fevereiro de 2021

Rio Mira, Milfontes

 


Anunciação

Não tenho palavras, nem entendo
formas visíveis.
Elas vêm concretas como aragem
a que dou nome.

Tenho-me, eis tudo. Acontece.
Há uma folha que desce,
que sobrenada, que desce,
que submerge no ar e depois desce
longe de mim no ar fundo.

Nós não somos deste mundo.

Fresca e limpa como a chuva,
ouço a tua voz cantada
descer do céu ao silêncio
que vem da terra molhada.

Nós não somos deste mundo.

Ouso dizer-te o meu nome
como quem se atreve a dar-te
a minha imagem.

Nós não somos deste mundo.

O que não vejo, entendo.
Pelos rios do meu sangue,
atrevo-me.

Anoitecendo, a vida recomeça.
Dou-me em palavras
que ressuscitam.
Algures no céu amanhece.

Só, intranquilo, pela vereda, desce
o nómada meu amigo.

Ruy Cinatti

Vieste do fim do mundo


https://www.youtube.com/watch?v=TdL-MHtRzD4

Vieste do fim do mundo
num barco vagabundo 
vieste como quem tinha que vir
para contar 
histórias e verdades
vontades e carinhos
promessas e mentiras
de quem de porto em porto amar se faz 
vieste de repente
de olhar tão meigo e quente
bebeste a celebrar a volta tua
tomaste-me em teus braços
em marinheiros laços
tocaste no meu corpo uma canção
que em vil magia me fez tua 
subiste para o quarto
de andar tão mole e farto
de beijos e de rum
a noite ardeu
cobri-me em tatuagens
dissolvi-me em viagens
com pólvora e perdões
tomaste o meu navio
que agora é teu. 

João Lóio

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Pedra nativa (fragmento)


Como as pedras do Princípio
Como o princípio da Pedra
Como no Princípio pedra contra pedra
Os fastos da noite:
O poema ainda sem rosto
O bosque ainda sem árvores
Os cantos ainda sem nome

Mas a luz irrompe com passos de leopardo
E a palavra levanta-se ondula cai
E é uma extensa ferida e puro silêncio sem mácula

Octavio Paz


terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

Bandoneón


El litúrgico armonio callejero,
el órgano más pobre de Alemania,
fue con los emigrantes que embarcaron
y llegó hasta el burdel en Buenos Aires.
Igual que un cura apóstata,
allí se fue arrastrando por historias
de soledad y de melancolía.
Amé siempre los tangos, que escuchaba
en mi niñez, las tardes de domingo:
mi padre y mi madre los bailaban
recorriendo el pasillo de la casa.
Son la voz de una épica perdida,
con los bandoneones arrastrando
letras que hablan de un amor culpable.
Los que bailaban en aquel pasillo
ahora viven ya dentro de un tango
que, misteriosamente feliz, canta
un viejo que sonríe dando un paso de baile
mientras se acerca a la Desconocida.

Joan Margarit


sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Quién eres tú?

https://www.youtube.com/watch?v=FZCb6-2QvEs 

Quién eres tú?
Que amándome de día
Me arrastras al
Peligro de la noche.
Quién eres tú?
Que con sabiduría
Anulas todo el peso
Del reproche.
Quién eres tú?
Que siempre sosteniendo
Mi voluntad
Me ofrece la segura
Ventana, donde el sol
Está naciendo
Y me llenas de vida
La aventura.
Quiero evadirme
De esas horas graves
Donde las cosas
No son nunca claras
Tal vez allí te espere la respuesta
A la pregunta que me deparares.
Pago tu amor
Con un amor fastuoso
Más puro que la nieve
Y más humano que el agua
Que bebiste en otros pozos
Y todo aquello que tocó tu mano.

Ponte Caldelas, Galiza





Paisagens


São outras as paisagens quando alguém
as vê pelas janelas do seu próprio coração ou quando
com esse coração
a própria estrada está comprometida.

Luís Miguel Nava


Soneto do amigo


Enfim, depois de tanto erro passado
Tantas retaliações, tanto perigo
Eis que ressurge noutro o velho amigo
Nunca perdido, sempre reencontrado.

É bom sentá-lo novamente ao lado
Com olhos que contêm o olhar antigo
Sempre comigo um pouco atribulado
E como sempre singular comigo.

Um bicho igual a mim, simples e humano
Sabendo se mover e comover
E a disfarçar com o meu próprio engano.

O amigo: um ser que a vida não explica
Que só se vai ao ver outro nascer
E o espelho de minha alma multiplica...

Vinícius de Moraes


segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

Em poucas palavras


https://www.youtube.com/watch?v=lhKTlK4kRyU 


De longe em longe regressas

De longe em longe regressas.

Chegas pelo lado mais escuro

dos meus sonhos e sentas-te a meu lado

sem nada dizer.

Olhamos ambos o escuro, comovidos.

Há uma alegria tão funda neste reencontro

que estremece as raízes mais próximas,

breve bálsamo nos caminhos que temos de cumprir

para chegar

onde a vida nos envia.

Depois levantas-te, regressas sem uma palavra

 à noite fechada que te engole.

Levas contigo a chave

e deixas-me a casa, inabitável.


Violeta Runa


sábado, 6 de fevereiro de 2021

Guardar


Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la. Em cofre não
se guarda coisa alguma. Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la, isto
é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por ela, isto é,
velar por ela, isto é, estar acordado por ela, isto é, estar por ela
ou ser por ela.
Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro
Do que pássaros sem vôos.
Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica, por isso se
declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.

Antônio Cícero


Las simples cosas

💗

https://www.youtube.com/watch?v=kSRex8sj_u4 


sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

Congresso Internacional do Medo

Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio porque esse não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,
depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.

Carlos Drummond de Andrade


domingo, 31 de janeiro de 2021

Não te esqueças que morreste em todos os poemas


Não te esqueças que morreste em todos os poemas
e nunca assinaste o teu nome todo.
Metade de ti ficou no tinteiro
a outra metade foi dar a volta ao Mundo.
A parte de ti que regressou nem tu próprio sabes
há cidades onde se fica para sempre
estações onde os comboios não chegam nunca
corpos onde se entra e depois não se sai.
Há ruas misteriosas sem se saber porquê
encontros inesperados que podem mudar a vida
não te esqueças que amor e morte se conjugam
às vezes chegam de mãos dadas
não te esqueças que um dia é cedo
e de repente já é tarde
no amor no poema na dança inacabada.
Não te perguntes as horas. Os anjos já passaram
e ninguém agradece.
O que foi é um passado quase excessivo
tão grande que talvez outro futuro
aí comece.

Manuel Alegre


Carta tardia

 https://www.youtube.com/watch?v=1oeIuaYT0SU&list=RD1oeIuaYT0SU&start_radio=1

Quarteto Tati


quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

#vermelhoembelem


Maldigo la poesía concebida como un lujo
cultural por los neutrales
que, lavándose las manos, se desentienden y evaden.
Maldigo la poesía de quien no toma partido
partido hasta mancharse.

Gabriel Celaya


Da série "Não, não somos todos iguais".

https://www.youtube.com/watch?v=1n03ZydD5ig



No teu rosto começa a madrugada

No teu rosto começa a madrugada.

Luz abrindo,
de rosa em rosa,
transparente e molhada.

Melodia
distante mas segura,
irrompendo da terra,
quente, redonda, madura.
 
Mar imenso,
praia deserta, horizontal e calma.
Sabor agreste.
Rosto da minha alma.

Eugénio de Andrade

sábado, 16 de janeiro de 2021

Vermelho e vivo.

 


Olha à tua volta. O que é que falta aqui?

Olha à tua volta. O que é que falta aqui?

Está uma belíssima noite, pelos padrões do Alasca,
a cidade inteira enrolada a um canto da névoa
e a sala a transformar-se num mecanismo
adicional de solidão: retratos e livros misturados
nas estantes, memórias de que hoje, por inércia,
não consegues tirar qualquer proveito.

Quem foi o tolo que disse que a ausência
faz crescer o afecto? Guarda a tua raiva,
é um recurso precioso. Não te livras do turno
da noite, dos pensamentos neuróticos da tua cabeça,
uma espécie de monólogo das aulas de teatro. Mas
quem sabe o que o passado te reserva para esta insónia.
Pode ser whisky, ou preferes algo mais frutado?

Vítor Nogueira

Sorrio aos mortos e enterro os vivos

Sorrio aos mortos e enterro os vivos
como um objecto escuro
por que rodaram mãos e jeitos de luz?
Vivo como se não estivesse aqui
roupa leve como na vida.
E vou da primeira à última batida
na respiração de um pulmão doido.

Lê assim

podia arder a uma pouca distância de ti
nessa praceta que é um poema teu
e as coisas voltariam a mim, meras,
como o ser transportada pelos dias
mas cairei por aqui.

Meu amor

Porta no trinco e nada nas mãos.
Há muito que é tudo o que resta.

Raquel Nobre Guerra

domingo, 10 de janeiro de 2021

- Amas-me? Perguntou Alice.

— Amas-me? Perguntou Alice.
— Não, não te amo! Respondeu o Coelho Branco.
Alice franziu a testa e juntou as mãos como fazia sempre que se sentia ferida.
—Vês? Retorquiu o Coelho Branco. 
— Agora vais começar a perguntar-te o que te torna tão imperfeita e o que fizeste de mal para que eu não consiga amar-te pelo menos um pouco.
Sabes, é por esta razão que não te posso amar. Nem sempre serás amada, Alice, haverá dias em que os outros estarão cansados e aborrecidos com a vida, terão a cabeça nas nuvens e irão magoar-te.
Porque as pessoas são assim, de algum modo sempre acabam por ferir os sentimentos uns dos outros, seja por descuido, incompreensão ou conflitos consigo mesmos.
Se tu não te amares, ao menos um pouco, se não crias uma couraça de amor próprio e de felicidade ao redor do teu Coração, os débeis dissabores causados pelos outros tornar-se-ão letais e destruir-te-ão.
A primeira vez que te vi fiz um pacto comigo mesmo: "Evitarei amar-te até aprenderes a amar-te a ti mesma!"

C. S. Lewis 
(Alice no País das Maravilhas)


domingo, 3 de janeiro de 2021

Realismo mágico

51 anos, 9 meses e 4 dias
foi quanto durou o amor em tempos de cólera,
enquanto eu, que ainda não apaguei 51 velas,
em tempos de prosperidade e bonança,
não consegui amar e ser amado,
por mais de uma década,
somados, os dedos das minhas mãos,
um amor adolescente,
dois casamentos desfeitos,
quase 100 anos de solidão.

Raquel Serejo Martins


sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Carlos

Algo que vem da luminosidade com que se articulam as sílabas, a cheio e por extenso, os sons raspando o ar, se for preciso. E é preciso compreender bem as sílabas por dentro para as iluminar assim. Ofício de raros. Respiração profunda. Regressar a casa após um dia longo e difícil e abrir as janelas para deixar entrar o vento que passa para não voltar. As palavras enganam mas a voz, jamais - qualquer cego o pode jurar. 

Se uma gaivota viesse. E veio. 


No teu poema

https://www.youtube.com/watch?v=UMz5jh3WGr0

https://www.youtube.com/watch?v=WPsNKKd0c_U

Estrela da tarde

https://www.youtube.com/watch?v=nHNSp-hz9Ok

Uma flor de verde pinho

https://www.youtube.com/watch?v=-Wg1SQYxQqo



Remedia Amoris

Foi uma péssima ideia a de voltarmos a ver-nos. Não fizemos mais do que trocar insultos e culpar-nos de velhas e sórdidas histórias. Depois ...