quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

Amor, meu grande amor

https://www.youtube.com/watch?v=5zjo7OENWUc

Amor, meu grande amor
Não chegue na hora marcada
Assim como as canções
Como as paixões e as palavras

Me veja nos seus olhos
Na minha cara lavada
Me venha sem saber
Se sou fogo ou se sou água

Amor, meu grande amor
Me chegue assim bem de repente
Sem nome ou sobrenome
Sem sentir o que não sente

Que tudo o que ofereço
É meu calor, meu endereço
A vida do teu filho
Desde o fim até o começo

Amor, meu grande amor
Só dure o tempo que mereça
E quando me quiser
Que seja de qualquer maneira

Enquanto me tiver
Que eu seja a última e a primeira
E quando eu te encontrar
Meu grande amor, me reconheça

Angela Ro-Ro/Barão Vermelho


(...)

Como aprender a conhecer o amado?
Jamais o encontrarás no bosque
se não conheces a árvore
Jamais o encontrarás
se o procuras em abstrações

Kabir (séc. XV)


Que mais podemos fazer?

Que mais podemos fazer?
Este amor é um país cansado

que não nos deixa mudar.
O medo cerca as fronteiras

e a capital é Nenhures,
cidade de perdulários

e pequenas ruas tortas
onde vem morrer a noite –

aqui estamos ambos sós,
desunidos, extraviados,

não há táxis na praceta
nem cinzeiros nos cafés

e perdemos os amigos
entre as curvas de um enredo

que deixámos de seguir.
Mas não era nada disto

o que tinha na cabeça
ao começar a escrever:

os versos chamam o escuro,
abrem os portões ao frio

e eu quero estar nas colinas
do outro lado do rio.

Rui Pires Cabral


Sei que a ternura

Sei que a ternura
Não é coisa que se peça,
E dar-se não significa
Que alguém a queira ou mereça.
Estas verdades,
Que são do senso comum,
Não me dão conformação
Nem sentimento nenhum
De haver força e dignidade
Na minha sabedoria...
Eu preferia
— Sinceramente, preferia! —
Que, contra as leis recolhidas
No que ficou dos destroços
De outras vidas,
Tu me desses a ternura que te peço;
Ou que, por fim, reparasses
Que a mereço.

Reinaldo Ferreira


quinta-feira, 24 de novembro de 2022

Fera oculta

(...)

Que não te enganem
os que compram as horas por atacado
para do teu suor extraírem
a bandeira de um país que nunca será o da atenção
que nunca será o da morada
mas sempre e sempre
o território homeopático da extinção
em que os troféus são
joelhos vergados à condição de cera
para os soalhos do progresso
cujo verdadeiro nome é
despovoamento

Vender-te-ão o conforto
a perseverança o brio
como se tivéssemos por fito
a acumulação do tempo
sem o fruirmos boca a boca
desesperadamente
garantir o futuro dir-te-ão
sem repararem na estupidez do repto
pois que poder temos nós
sobre as válvulas biológicas
do nosso prazo
para nos arrogarmos a garantir
o que quer que seja
quanto mais o sumo fruto da inexistência
esse futuro-cano-enfiado-na-boca
para ser disparado sem falta
de manhã e ao deitar

Em volta sucedem-se clarões
e abismos inóspitos
os elementos torcem-se na pesca à linha
dos lugares fundamentais
há uma convulsão de panoramas
para o brevíssimo turismo
dos olhos
mas o importante é a matemática mesquinha
do sangue que furtamos uns aos outros
a medalha de carne pútrida
com que esperamos aparecer
na fotografia da época

Que se foda a época
digo-te já
que se foda a sépia dos futuros
eu quero aparecer no dia
do teu nascimento
desarmado como uma árvore
sem outra missão que não
amparar-te o susto
e dizer-te baixinho
bem-vindo ao continente dos frágeis
podes parar de nadar

Vasco Gato

sábado, 19 de novembro de 2022

Disjunções

O espaço abre-se
quando os olhos se fecham.
As águas extinguem-se
no fogo que as habita.
No arco da ponte
desviam-se os rios
convergentes.

Fernando Namora

Romance de um dia na estrada

https://www.youtube.com/watch?v=lKm-0-HoWRQ 

Andava há já vinte dias
Ao frio, ao vento e à fome
Às escondidas da sorte
Um dia fraco, outro forte
Que o dia em que se não come
É um dia a menos para a morte
Um dia fraco, outro forte

Quando um barulho de cama
A voltar-se de impaciente
Me fez parar de repente
Era noite e o casarão
Não tinha lados nem frente
Dentro havia luz e pão
Me fez parar de repente

Ó da casa, abram-me a porta
Fiz as luzes se apagarem
Cheguei-me mais à janela
Vi acender-se uma vela
Passos de mulher andarem
E uma mulher muito bela
Chegou-se mais à janela

Não tenhas medo, eu não trago
Nem ódio nem espingardas
Trago paz numa viola
Quase que não fui à escola
Mas aprendi nas estradas
O amor que te consola
Trago paz numa viola

Meu marido foi pra longe
Tomar conta das herdades
Ela disse "Companheiro"
Eu disse "Vem", ela "Tu primeiro"
"Tu que me falas de estradas"
"E eu só conheço um carreiro"
Ela disse "Companheiro"

A contas com a nossa noite
Afundados num colchão
Entre arcas e um reposteiro
Descobrimos um vulcão
Era o mês de Fevereiro
E o Inverno se fez Verão
Descobrimos um vulcão

E eu que falava de estradas
E só conhecia atalhos
E ela a mostrar-me caminhos
Entre chaminés e orvalhos
Pela manhã, sem agasalhos
Voltei a rumos sozinhos
E ela a mostrar-me caminhos

Andarei mais vinte dias
ao frio, ao vento e à fome
Às escondidas da sorte
Um dia fraco, outro forte
Que o dia em que se não come
É um dia a menos para a morte
Um dia fraco, outro forte
Um dia fraco, outro forte

Sérgio Godinho


My last Gal

Quando o aluno está pronto, o mestre aparece, pelo que só dei por esta oração sublime há poucos anos. Cruzamento entre a pura luz e a pura densidade. E a mão da doçura, hem...?

Oração a Mãe Menininha

https://www.youtube.com/watch?v=_x9mNq-eB6w


Deserto de Agafay, novembro de 2022


A uma passante pós-baudelairiana

(...)

Algum moçárabe ou andaluz decerto
te dedicaria um concerto
para guitarras mouriscas e
cimitarras suicidas

Mas eu te dedico quando passas
me fazendo fremir

(entre tantos circunstantes, raptores fugidios)

este tiroteio de silêncios
esta salva de arrepios.

Carlito Azevedo


quinta-feira, 17 de novembro de 2022

Falam de pão

Falam de pão
mas comem pão
falam de suor mas tomam banho
falam de amor mas traem amigos
falam de injustiça
falam de justiça
mas roubam
falam de tudo
mas falam de tudo

falam mas não desistem
não pensam nem se recusam
ninguém se demite
daquilo que é

entretanto as coisas acontecem
embora poucos olhem para elas

Fernando Lemos


No centenário de José Saramago

Ora, a solidão, ainda vai ter de aprender muito para saber o que isso é, Sempre vivi só, Também eu, mas a solidão não é viver só, a solidão é não sermos capazes de fazer companhia a alguém ou a alguma coisa que está dentro de nós, a solidão não é uma árvore no meio duma planície onde só ela esteja, é a distância entre a seiva profunda e a casca, entre a folha e a raiz, Você está a tresvariar, tudo quanto menciona está ligado entre si, aí não há nenhuma solidão, Deixemos a árvore, olhe para dentro de si e veja a solidão, Como disse o outro, solitário andar por entre a gente, Pior do que isso, solitário estar onde nem nós próprios estamos.

José Saramago
(O Ano da Morte de Ricardo Reis)

terça-feira, 15 de novembro de 2022

Meteora, agosto de 2022

 


Os amarelos de novembro

Não tem palavras a minha canção preferida. Tem antes
os amarelos queimados de novembro. Gosto de gente antiga e
obscura, gente culpada, jovem ou envelhecida para
quem a vida não passa de um contínuo de sombra
por isso sei abraçar por isso partem sem regresso.
Sombras que surpreendo — não quebres não
estragues o amarelo de novembro.

E aquele que está sentado à nossa frente é entre
todas as coisas
a ideia mais perfeita, a mais real, a mais sólida.
No instante seguinte nada sabemos.
É assim o nosso modo de ser e a própria
condição do amor. Destruir,
riscar até desaparecerem os amarelos de novembro.

João Miguel Fernandes Jorge


...

A poesia tende ao impossível, mas faz-nos possíveis.

Roberto Juarroz


quinta-feira, 10 de novembro de 2022

Marraquexe, Bairro Judeu, novembro de 2022



Nada é eterno.

Nada é eterno.
A eternidade passa depressa,
meu amor, 
como a ciência.

Artur do Cruzeiro Seixas

My first Gal

Era um LP avermelhado, e estes versos bateram em cheio na minha adolescência inquieta. A casa já não existe, e o vinil possivelmente também não, mas ainda o vejo pousado na prateleira do meio, do lado direito. Pouco depois, de um amor feito de poesia e pouco mais, recordo apenas os fungos no frigorífico, um chão imundo e o reencontro com o LP vermelho, faiscante. Aprendi a dançar sobre esse chão sujo, com Força Estranha em looping. Os meus filhos, pequenos, adormeceram algumas vezes no aconchego destes versos. Souberam logo cedo que a coisa mais certa de todas as coisas não vale um caminho sob o sol. 

Força Estranha

https://www.youtube.com/watch?v=jBnedtBKUso


terça-feira, 1 de novembro de 2022

Trem-bala

https://www.youtube.com/watch?v=TLrtpzwzqzI 

Não é sobre ter todas as pessoas do mundo pra si
É sobre saber que em algum lugar alguém zela por ti
É sobre cantar e poder escutar mais do que a própria voz
É sobre dançar na chuva de vida que cai sobre nós
É saber se sentir infinito num universo tão vasto e bonito
É saber sonhar
E então fazer valer a pena
Cada verso daquele poema sobre acreditar

Não é sobre chegar no topo do mundo, saber que venceu
É sobre escalar e sentir que o caminho te fortaleceu
É sobre ser abrigo e também ter morada em outros corações
E assim ter amigos contigo em todas as situações
A gente não pode ter tudo
Qual seria a graça do mundo se fosse assim?
Por isso, eu prefiro os sorrisos
E os presentes que a vida trouxe pra perto de mim

Não é sobre tudo que o seu dinheiro é capaz de comprar
E sim sobre cada momento, sorriso a se compartilhar
Também não é sobre correr contra o tempo pra ter sempre mais
Porque quando menos se espera a vida já ficou pra trás
Segura teu filho no colo
Sorria e abrace seus pais enquanto estão aqui
Que a vida é trem-bala, parceiro
E a gente é só passageiro prestes a partir

Ana Vilela


segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Tratado geral das grandezas do ínfimo

A poesia está guardada nas palavras — é tudo que eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado.
Sou fraco para elogios.

Manuel de Barros


Cansaço

Todos nós, todos temos uma hora cobarde,
uma hora de tédio ao morrer da tarde.

Quando parte o amigo que nos dá calor,
o amigo de ouro, o Mago Criador.

Quando se juntam as más impressões
e a alma é um tecido de finíssimas asas.

Quando pode dizer-se: o que foi já não será,
o que hoje não fiz nunca mais o farei.

É então, cobarde, que me acossa o desejo
de não ser e nem penso, nem trabalho, nem creio.

É uma completa nulidade de mim mesma
que me assusta e me fere, me subjuga e me espanta.

É então que eu gostaria de ser assim,
coisa nímia, fútil, banal.

Um brinquedo que se guarda no bolso,
uma jóia qualquer, um anel, um relógio...

Ser uma coisa morta que se leva às costas,
que não sabe nada, que não pensa em nada.

Todos nós, todos temos uma hora cobarde,
uma hora de tédio ao morrer da tarde.

Alfonsina Storni
(trad. de A. M.)


...

que horas são, meu amor?
a que horas chega a hora certa?

Emanuel Jorge Botelho


domingo, 30 de outubro de 2022

Poema

Alguma coisa onde tu parada
fosses depois das lágrimas uma ilha,
e eu chegasse para dizer-te adeus
de repente na curva duma estrada

alguma coisa onde a tua mão
escrevesse cartas para chover
e eu partisse a fumar
e o fumo fosse para se ler

alguma coisa onde tu ao norte
beijasses nos olhos os navios
e eu rasgasse o teu retrato
para vê-lo passar na direcção dos rios

alguma coisa onde tu corresses
numa rua com portas para o mar
e eu morresse
para ouvir-te sonhar

António José Forte

Há mensagens cujo destino é perder-se

Há mensagens cujo destino é perder-se,
palavras anteriores ou posteriores ao destinatário,
imagens que saltam do outro lado da visão,
signos que apontam para cima
ou para baixo do alvo,
sinais sem código,
- mensagens embrulhadas em outras mensagens,
gestos que chocam com a parede,
um perfume que retrocede
sem achar a sua origem,
uma música que se derrama sobre si mesma
como um caracol definitivamente abandonado.

Mas toda a perda é o pretexto de um achado.
As mensagens perdidas
inventam sempre quem deve encontrá-las.

Roberto Juarroz


sábado, 29 de outubro de 2022

Podres poderes (Vai, Brasil!)

 https://www.youtube.com/watch?v=MyCmneajBZo

Enquanto os homens exercem
Seus podres poderes
Motos e fuscas avançam
Os sinais vermelhos
E perdem os verdes
Somos uns boçais...
Queria querer gritar
Setecentas mil vezes
Como são lindos
Como são lindos os burgueses
E os japoneses
Mas tudo é muito mais...

Será que nunca faremos
Senão confirmar
A incompetência
Da América católica
Que sempre precisará
De ridículos tiranos?

Será, será, que será?
Que será, que será?
Será que esta
Minha estúpida retórica
Terá que soar
Terá que se ouvir
Por mais zil anos...

Enquanto os homens exercem
Seus podres poderes
Índios e padres e bichas
Negros e mulheres
E adolescentes
Fazem o carnaval...
Queria querer cantar
Afinado com eles
Silenciar em respeito
Ao seu transe num êxtase
Ser indecente
Mas tudo é muito mau...

Ou então cada paisano
E cada capataz
Com sua burrice fará
Jorrar sangue demais
Nos pantanais, nas cidades
Caatingas e nos gerais
Será que apenas
Os hermetismos pascoais
E os tons, os mil tons
Seus sons e seus dons geniais
Nos salvam, nos salvarão
Dessas trevas e nada mais...

Enquanto os homens exercem
Seus podres poderes
Morrer e matar de fome
De raiva e de sede
São tantas vezes
Gestos naturais...
Eu quero aproximar
O meu cantar vagabundo
Daqueles que velam
Pela alegria do mundo
Indo e mais fundo
Tins e bens e tais...

Caetano Veloso


Lisboa, junto ao Tejo


 

terça-feira, 25 de outubro de 2022

Subindo o Monte Olimpo, agosto de 2022


 

Retalhos

https://www.youtube.com/watch?v=hpMVGWej7Ew

Serras, veredas, atalhos,
Estradas e fragas de vento,
Onde se encontram retalhos
De vidas em sofrimento

Retalhos fundos nos rostos,
Mãos duras e retalhadas
Pelo suor do desgosto,
Retalha as caras fechadas

O caminho que seguiste,
Entre gente pobre e rude,
Muitas vezes tu abriste
Uma rosa de saúde

Cada história é um retalho
Cortado no coração
De um homem que no trabalho
Reparte a vida e o pão

As vidas que defendeste,
E o pão que repartiste,
São água que tu bebeste
Dos olhos de um povo triste

E depois de tanto mundo,
Retalhado de verdade,
Também tu chegaste ao fundo
Da doença da cidade

Da que não vem na sebenta,
Daquela que não se ensina,
Da pobreza que afugenta
Os barões da medicina

Tu sabes quanto fizeste,
A miséria não segura,
Nem mesmo quando lhe deste
A receita da ternura

José Carlos Ary dos Santos


domingo, 23 de outubro de 2022

The laughing heart

Your life is your life
Don’t let it be clubbed into dank submission.
Be on the watch.
There are ways out.
There is a light somewhere.
It may not be much light but
It beats the darkness.
Be on the watch.
The gods will offer you chances.
Know them.
Take them.
You can’t beat death but
You can beat death in life, sometimes.
And the more often you learn to do it,
The more light there will be.
Your life is your life.
Know it while you have it.
You are marvelous
The gods wait to delight
In you.

Charles Bukowski


sábado, 22 de outubro de 2022

Regresso devagar ao teu sorriso

Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa. Faço de conta que
não é nada comigo. Distraído percorro
o caminho familiar da saudade,
pequeninas coisas me prendem,
uma tarde num café, um livro. Devagar
te amo e às vezes depressa,
meu amor, e às vezes faço coisas que não devo,
regresso devagar a tua casa,
compro um livro, entro no
amor como em casa.

Manuel António Pina

Novo tempo

https://www.youtube.com/watch?v=jHEfuVacAeU 

No novo tempo
Apesar dos castigos
Estamos crescidos
Estamos atentos
Estamos mais vivos
Pra nos socorrer
Pra nos socorrer
Pra nos socorrer

No novo tempo
Apesar dos perigos
Da força mais bruta
Da noite que assusta
Estamos na luta
Pra sobreviver
Pra sobreviver
Pra sobreviver

Pra que a nossa esperança
Seja mais que a vingança
Seja sempre um caminho
Que se deixa de herança

No novo tempo
Apesar dos castigos
De toda a fadiga
De toda a injustiça
Estamos na briga
Pra nos socorrer
Pra nos socorrer
Pra nos socorrer

No novo tempo
Apesar dos perigos
De todos os pecados
De todos os enganos
Estamos marcados
Pra sobreviver
Pra sobreviver
Pra sobreviver

Pra que a nossa esperança
Seja mais que a vingança
Seja sempre um caminho
Que se deixa de herança...

No novo tempo
Apesar dos castigos
Estamos em cena
Estamos nas ruas
Quebrando as algemas
Pra nos socorrer
Pra nos socorrer
Pra nos socorrer

No novo tempo
Apesar dos perigos
A gente se encontra
Cantando na praça
Fazendo pirraça
Pra sobreviver
Pra sobreviver
Pra sobreviver

Pra que nossa esperança
Seja mais que a vingança
Seja sempre um caminho
Que se deixa de herança...

Ivan Lins


É apenas um pouco tarde

Ainda não é o fim
nem o princípio do mundo
calma
é apenas um pouco tarde

Manuel António Pina


Proclamação

A natureza não desce
a contratos. Nem a vida
se mede pela razão.

A vida é toda mistério.

Quem largamente se deu
não ofendeu a justiça
mas viveu do coração.

Ruy Cinatti

quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Under Galata Bridge (last dinner), agosto de 2022


 

Presente

Como não tive filhos
a coisa mais decisiva
que me aconteceu na vida
diz Rosa Montero
foram meus mortos
Só em nascimentos e mortes
é que saímos do tempo

Quando alguém morre
ou quando nasce
uma criança diz ela
o presente se parte ao meio
e uma fresta se abre

Rumi e Cohen
também falam
de uma rachadura
por onde a luz passa

Leonardo Gandolfi


sábado, 24 de setembro de 2022

Epígrafe para a nossa solidão

Cruzámos nossos olhares em alguma esquina
demos civicamente os bons dias:
chamar-nos-ão vais ver contemporâneos.

Ruy Belo

sexta-feira, 23 de setembro de 2022

Ah a frescura na face de não cumprir um dever!

Ah a frescura na face de não cumprir um dever!
Faltar é positivamente estar no campo!
Que refúgio o não se poder ter confiança em nós!
Respiro melhor agora que passaram as horas dos encontros.
Faltei a todos, com uma deliberação do desleixo,
Fiquei esperando a vontade de ir para lá, que eu saberia que não vinha.
Sou livre, contra a sociedade organizada e vestida.
Estou nu, e mergulho na água da minha imaginação.
É tarde para eu estar em qualquer dos dois pontos onde estaria à mesma hora,
Deliberadamente à mesma hora...
Está bem, ficarei aqui sonhando versos e sorrindo em itálico.
É tão engraçada esta parte assistente da vida!
Até não consigo acender o cigarro seguinte... Se é um gesto,
Fique com os outros, que me esperam, no desencontro que é a vida.

Álvaro de Campos


segunda-feira, 19 de setembro de 2022

[A toda a hora e em toda a parte]

A toda a hora e em toda a parte, há íntegros que nos atropelam com a sua integridade, há justos que nos humilham com a sua justiça, há castos que nos ofendem com a sua pureza. Raríssima uma bondade sem impudor.

Nelson Rodrigues


segunda-feira, 12 de setembro de 2022

Halkidiki, agosto de 2022

 


O vaso

Vi como retiraste do vaso a terra,
e da terra as raízes da planta desconhecida.
Depois, com a tesoura de ferro,
cortaste o caule no ponto
certo. Em seguida, renovaste
a terra no vaso,
enterraste nela de novo a planta
que ressurgiu, surdamente,
na manhã de primavera
que sempre finda.
Agora, desvia um pouco o olhar,
repara em mim agora: vês as raízes,
o caule dobrado, a flor, o nome?
Por que não me cortas os braços, as mãos,
os pés, o tronco, e espalhas tudo
aos bocados pela terra?
Só preciso de um pouco de água:
em todos os lugares crescerei para ti.

Luís Filipe Parrado


sábado, 3 de setembro de 2022

Mãe, eu quero ir-me embora

Mãe, eu quero ir-me embora — a vida não é nada
daquilo que disseste quando os meus seios começaram
a crescer. O amor foi tão parco, a solidão tão grande,
murcharam tão depressa as rosas que me deram —
se é que me deram flores, já não tenho a certeza, mas tu
deves lembrar-te porque disseste que isso ia acontecer.

Mãe, eu quero ir-me embora — os meus sonhos estão
cheios de pedras e de terra; e, quando fecho os olhos,
só vejo uns olhos parados no meu rosto e nada mais
que a escuridão por cima. Ainda por cima, matei todos
os sonhos que tiveste para mim — tenho a casa vazia,
deitei-me com mais homens do que aqueles que amei
e o que amei de verdade nunca acordou comigo.

Mãe, eu quero ir-me embora — nenhum sorriso abre
caminho no meu rosto e os beijos azedam na minha boca.
Tu sabes que não gosto de deixar-te sozinha, mas desta vez
não chames pelo meu nome, não me peças que fique —
as lágrimas impedem-me de caminhar e eu tenho de ir-me
embora, tu sabes, a tinta com que escrevo é o sangue
de uma ferida que se foi encostando ao meu peito como
uma cama se afeiçoa a um corpo que vai vendo crescer.

Mãe, eu vou-me embora — esperei a vida inteira por quem
nunca me amou e perdi tudo, até o medo de morrer. A esta
hora as ruas estão desertas e as janelas convidam à viagem.
Para ficar, bastava-me uma voz que me chamasse, mas
essa voz, tu sabes, não é a tua — a última canção sobre
o meu corpo já foi há muito tempo e desde então os dias
foram sempre tão compridos, e o amor tão parco, e a solidão
tão grande, e as rosas que disseste que um dia chegariam
virão já amanhã, mas desta vez, tu sabes, não as verei murchar.

Maria do Rosário Pedreira


quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Carta à minha filha

Lembras-te de dizer que a vida era uma fila?
Eras pequena e o cabelo mais claro,
mas os olhos iguais. Na metáfora dada
pela infância, perguntavas do espanto
da morte e do nascer, e de quem se seguia
e porque se seguia, ou da total ausência
de razão nessa cadeia em sonho de novelo.
Hoje, nesta noite tão quente rompendo-se
de junho, o teu cabelo claro mais escuro,
queria contar-te que a vida é também isso:
uma fila no espaço, uma fila no tempo
e que o teu tempo ao meu se seguirá.
Num estilo que gostava, esse de um homem
que um dia lembrou Goya numa carta a seus
filhos, queria dizer-te que a vida é também
isto: uma espingarda às vezes carregada
(como dizia uma mulher sozinha, mas grande
de jardim). Mostrar-te leite-creme, deixar-te
testamentos, falar-te de tigelas - é sempre
olhar-te amor. Mas é também desordenar-te à
vida, entrincheirar-te, e a mim, em fila descontínua
de mentiras, em carinho de verso.
E o que queria dizer-te é dos nexos da vida,
de quem a habita para além do ar.
E que o respeito inteiro e infinito
não precisa de vir depois do amor.
Nem antes. Que as filas só são úteis
como formas de olhar, maneiras de ordenar
o nosso espanto, mas que é possível pontos
paralelos, espelhos e não janelas.
E que tudo está bem e é bom: fila ou
novelo, duas cabeças tais num corpo só,
ou um dragão sem fogo, ou unicórnio
ameaçando chamas muito vivas.
Como o cabelo claro que tinhas nessa altura
se transformou castanho, ainda claro,
e a metáfora feita pela infância
se revelou tão boa no poema. Se revela
tão útil para falar da vida, essa que,
sem tigelas, intactas ou partidas, continua
a ser boa, mesmo que em dissonância de novelo.
Não sei que te dirão num futuro mais perto,
se quem assim habita os espaços das vidas
tem olhos de gigante ou chifres monstruosos.
Porque te amo, queria-te um antídoto
igual a elixir, que te fizesse grande
de repente, voando, como fada, sobre a fila.
Mas por te amar, não posso fazer isso,
e nesta noite quente a rasgar junho,
quero dizer-te da fila e do novelo
e das formas de amar todas diversas,
mas feitas de pequenos sons de espanto,
se o justo e o humano aí se abraçam.
A vida, minha filha, pode ser
de metáfora outra: uma língua de fogo;
uma camisa branca da cor do pesadelo.
Mas também esse bolbo que me deste,
e que agora floriu, passado um ano.
Porque houve terra, alguma água leve,
e uma varanda a libertar-lhe os passos.

Ana Luísa Amaral

Istambul, agosto de 2022


 

Poemas canhotos

https://www.youtube.com/watch?v=di6R65UFBtw&list=RDdi6R65UFBtw&start_radio=1 

Estes poemas que chegam
Do meio da escuridão
De que ficamos incertos
Se têm autor ou não
Poemas às vezes perto
Da nossa própria razão
Que nos podem fazer ver
O dentro da nossa morte

As forças fora de nós
E a matéria da voz
Fabricada no mais fundo
De outro silêncio do mundo
Que serão eles senão
Uma imensidão de voz
Que vem da terra calada
Do lado da solidão

Estes poemas que avançam
No meio da escuridão
Até não serem mais nada
Que lápis, papel e mão
E esta tremenda atenção, este nada

Uma cegueira que apago
A luz por trás de outra mão
Tudo o que acende e me apaga
Alumiação de mais nada
Que a mão parada

Alumiação então
De que esta mão me conduz
Por descaminhos de luz
Ao centro da escuridão
Que é fácil a rima em 'ão'
   Difícil é ver-se a luz
   Rima ou não rima com a mão

Herberto Helder


sexta-feira, 26 de agosto de 2022

[um tipo de oitentas está fodido]

um tipo de oitentas está fodido,
morto ou vivo,
e os truques: não batam mais no velhinho,
olhem que eu chamo a polícia, etc. — já não faíscam nas abóbadas
do mundo:
vou comprar uma pistola,
ou mato-os a eles ou mato-me a mim mesmo,
para resgatar uns poemas que tenho ali na gaveta,
nunca pensei viver tanto, e sempre e tanto
no meio de medos e pesadelos e poemas inacabados,
e sem ter lido todos os livros que, de intuição, teria lido e relido, e
treslido num alumbramento,
e é pior que bofetadas, vivo ou morto,
pior que o mundo,
e o pior de tudo é mesmo não ter escrito o poema soberbo acerca do
fim da inocência,
da aguda urgência do mal:
em todos os sítios de todos os dias pela idade fora como uma ferida,
arvoar para o nada de nada se faz favor, e muito, e o mais depressa
impossível,
e com menos anos, mais nu, mais lavado de biografia e de estudos
da puta que os pariu

Herberto Helder


Sitónia, Monte Atos ao fundo, agosto de 2022

 


TUDO O QUE O MEU PAI ME DISSE QUANDO, AOS 15 ANOS, DECLAREI EM FAMÍLIA QUE IRIA COMEÇAR A ESCREVER POESIA

"Antes
de te sentares
à mesa
lava bem
essas mãos."

Luís Filipe Parrado


quinta-feira, 25 de agosto de 2022

Incenso fosse música

   isso de querer
ser exatamente aquilo
   que a gente é
ainda vai
   nos levar além

Paulo Leminski


terça-feira, 23 de agosto de 2022

Poema melancólico a não sei que mulher

Dei-te os dias, as horas e os minutos
Destes anos de vida que passaram;
Nos meus versos ficaram
Imagens que são máscaras anónimas
Do teu rosto proibido;
A fome insatisfeita que senti
Era de ti,
Fome do instinto que não foi ouvido.

Agora retrocedo, leio os versos,
Conto as desilusões no rol do coração,
Recordo o pesadelo dos desejos,
Olho o deserto humano desolado,
E pergunto porquê, por que razão
Nas dunas do teu peito o vento passa
Sem tropeçar na graça
Do mais leve sinal da minha mão...

Miguel Torga


Sitónia, Grécia, agosto de 2022

 


sexta-feira, 19 de agosto de 2022

O que a comove?

- O que a comove?

- A bondade. Alguma poesia. Ou pensar que somos feitos da mesma matéria de que são feitas as estrelas.


Ana Luísa Amaral, 1956-2022
(In Expresso, 2019)


Fine

Os sentimentos são paisagens áridas, imprecisas, tremeluzentes, desconfortáveis.
Dito isto, poderia fechar a porta, correr as grades, trancar o cadeado, dar a loja por encerrada, sem previsões de reabertura.
Fechados lá dentro, os sentimentos, bem, seria como se não existissem.
Talvez morressem, se desidratassem, se pulverizassem, talvez deles restasse apenas uma mancha de gordura no chão.
Em qualquer caso, emudeceriam. Ou não seriam escutados, o que vem a dar ao mesmo.
Nunca contemplei esta hipótese por mais de cinco minutos – certamente, nem tanto.
Não consigo. Não sei. Julgo que, no fundo, é o que menos quero. E que essa é a raiz da minha resistência. Crónica e aguda.
Os sentimentos são onde sei viver, onde me sinto menos morto.
Os sentimentos sou eu.
Os melhores.
Os piores.
O beijo.
A bala.
(Ou vice-versa).
Todos os nomes da intranquilidade.

Miguel Martins


terça-feira, 16 de agosto de 2022

Summertime

https://www.youtube.com/watch?v=LkJiiJsZplc 

Summertime, and the livin' is easy
Fish are jumpin' and the cotton is high
Oh, your daddy's rich and your ma is good lookin'
So hush, little baby, don't you cry
One of these mornings you're gonna rise up singing
Yes you'll spread your wings and you'll take to the sky
But 'til that morning, there's nothin' can harm you
With daddy and mammy standin' by
Summertime, and the livin' is easy
Fish are jumpin' and the cotton is high
Oh, your daddy's rich and your ma is good lookin'
So hush, little baby, baby don't you cry
Don't you cry


terça-feira, 26 de julho de 2022

Café da manhã

Pôs café
na chávena
Pôs leite
na chávena com café
Pôs açúcar
no café com leite
Com a colherzinha
mexeu
Bebeu o café com leite
E pôs a chávena no pires
Sem me falar
acendeu
um cigarro
Fez círculos
com a fumaça
Pôs as cinzas
no cinzeiro
Sem me falar
Sem me olhar
Levantou-se
Pôs
o chapéu na cabeça
Vestiu
a capa de chuva
porque chovia
E saiu
debaixo de chuva
Sem uma palavra
Sem me olhar
Quanto a mim pus
a cabeça entre as mãos
E chorei.

Jacques Prévert


Conto sobre as mulheres velhas

Gosto das mulheres velhas
as mulheres feias
as más mulheres

são o sal da terra

não sentem aversão
pelo lixo humano

conhecem a outra face
de uma medalha
do amor
e da fé

vêm e vão
os ditadores endoidecem
têm as mãos manchadas
com sangue de seres humanos

as mulheres velhas levantam-se pela madrugada
compram carne fruta pão
limpam cozinham
permanecem na rua com os braços
cruzados calam

as mulheres velhas
são imortais

Hamlet agita-se na rede
Fausto faz um papel vil e ridículo
Raskólnikov golpeia com um machado

as mulheres velhas são
indestrutíveis
sorriem com indulgência

deus morre
as mulheres velhas levantam-se cada dia
pela madrugada compram pão vinho peixe
morre a civilização
as mulheres velhas levantam-se pela madrugada
abrem as janelas
retiram a sujidade
morre um homem
as mulheres velhas
levam os restos
enterram os mortos
plantam flores
nas tumbas

gosto de mulheres velhas
de mulheres feias
de más mulheres

crêem na vida eterna
são o sal da terra
o córtex de uma árvore
são os olhos submissos dos animais

veem na sua justa medida
a cobardia e o heroísmo
a grandeza e a insignificância
como as exigências
de um dia quotidiano
seus filhos descobrem a América
caem nas Termópilas
morrem nas cruzes
conquistam o cosmos

as mulheres velhas saem de madrugada
para a cidade compram leite pão
carne condimentam a sopa
abrem as janelas
só os idiotas se riem
das mulheres velhas
das mulheres feias
das más mulheres

porque são mulheres belas
mulheres boas
mulheres velhas
são um ovo
são um segredo
sem segredos
são uma bola que roda

as mulheres velhas
são múmias
dos gatos sagrados
são pequenos
murchos
secos
frutos mananciais
ou gordurosos
budas ovais

quando morrem
brota do olho
uma lágrima
que se une na boca
com o sorriso
de uma mulher jovem

Tadeuz Rózewicz


sábado, 23 de julho de 2022

Os paraísos artificiais

Na minha terra, não há terra, há ruas;
mesmo as colinas são de prédios altos
com renda muito mais alta.

Na minha terra, não há árvores nem flores.
As flores, tão escassas, dos jardins mudam ao mês,
e a Câmara tem máquinas especialíssimas para desenraizar as árvores.

O cântico das aves – não há cânticos,
mas só canários de 3º andar e papagaios de 5º.
E a música do vento é frio nos pardieiros.

Na minha terra, porém, não há pardieiros,
que são todos na Pérsia ou na China,
ou em países inefáveis.

A minha terra não é inefável.
A vida da minha terra é que é inefável.
Inefável é o que não pode ser dito.

Jorge de Sena (1947)


quinta-feira, 21 de julho de 2022

Love poem

Ultimately, we will lose each other
to something. I would hope for grand
circumstance — death or disaster:
But it might not be that way at all.
It might be that you walk out
one morning after making love
to buy cigarettes, and never return,
or I fall in love with another man.
It might be a slow drift into indifference.
Either way, we’ll have to learn
to bear the weight of the eventuality
that we will lose each other to something.
So why not begin now, while your head
rests like a perfect moon in my lap,
and the dogs on the beach are howling?
Why not reach for the seam in this South Indian
night and tear it, just a little, so the falling
can begin? Because later, when we cross
each other on the streets, and are forced
to look away, when we’ve thrown
the disregarded pieces of our togetherness
into bedroom drawers and the smell
of our bodies is disappearing like the sweet
decay of lilies — what will we call it,

when it’s no longer love?

Tishani Doshi


The rose

https://www.youtube.com/watch?v=f28sS_J9H5c

Some say love, it is a river
That drowns the tender reed
Some say love, it is a razor
That leaves your soul to bleed
Some say love, it is a hunger
An endless aching need
I say love, it is a flower
And you, its only seed

It's the heart, afraid of breaking
That never learns to dance
It's the dream, afraid of waking
That never takes the chance
It's the one who won't be taken
Who cannot seem to give
And the soul, afraid of dying
That never learns to live
When the night has been too lonely
And the road has been too long
And you think that love is only
For the lucky and the strong

Just remember in the winter
Far beneath the bitter snows
Lies the seed that with the sun's love
In the spring becomes the rose

Mc Broom Amanda


terça-feira, 19 de julho de 2022

[Quantas vezes te esperei à porta]

Quantas vezes te esperei à porta como se fosse entrar em casa. E como me senti em casa. Até depois de sair, quando passo a passo crescia algo de escuro e absurdamente insuportável, e crescia a cada segundo e a cada passo. Como se no dia seguinte acabasse o mundo, porque tudo o que foi iniciado ficou por acabar. Porque sair era como não ficar, podia ser para sempre.


segunda-feira, 18 de julho de 2022

O retrato fiel

Não creias nos meus retratos,
nenhum deles me revela,
ai, não me julgues assim!

Minha cara verdadeira
fugiu às penas do corpo,
ficou isenta da vida.

Toda minha faceirice
e minha vaidade toda
estão na sonora face;
naquela que não foi vista
e que paira, levitando,
em meio a um mundo de cegos.

Os meus retratos são vários
e neles não terás nunca
o meu rosto de poesia.

Não olhes os meus retratos,
nem me suponhas em mim.

Gilka Machado


domingo, 17 de julho de 2022

O silêncio

Pego num pedaço de silêncio. Parto-o ao meio,
e vejo saírem de dentro dele as palavras que
ficaram por dizer. Umas, meto-as num frasco
com o álcool da memória, para que se
transformem num licor de remorso; outras,
guardo-as na cabeça para as dizer, um dia,
a quem me perguntar o que significam.
Mas o silêncio de onde as palavras saíram
volta a espalhar-se sobre elas. Bebo o licor
do remorso; e tiro da cabeça as outras palavras
que lá ficaram, até o ruído desaparecer, e só
o silêncio ficar, inteiro, sem nada por dentro.

Nuno Júdice 

sábado, 16 de julho de 2022

Amor à primeira vista

Ambos estão convencidos
que os uniu uma paixão súbita.
É bela esta certeza,
mas a incerteza mais bela ainda.
Julgam que por não se terem encontrado antes,
nada entre eles nunca ainda se passara.
E que diriam as ruas, as escadas, os corredores
onde se podem há muito ter cruzado. 
Gostaria de lhes perguntar
se não se lembram -
talvez nas portas giratórias,
um dia, face a face?
algum “desculpe” num grande aperto de gente?
uma voz de que “é engano” ao telefone?
- mas sei o que respondem.
Não, não se lembram.
Muito os admiraria
saber que desde há muito
se divertia com eles o acaso.
Ainda não completamente preparado
para se transformar em destino para eles,
aproximou-os e afastou-os,
barrou-lhes o caminho
e, abafando as gargalhadas,
lá seguiu saltando ao lado deles.
Houve marcas, sinais,
que importa se legíveis.
Haverá talvez três anos
ou terça-feira passada,
certa folhinha esvoaçante
de um braço a outro braço.
Algo que se perdeu e encontrou?
Quem sabe se já uma bola
nos silvados da infância?
Punhos de porta e campainhas
onde a seu tempo o toque
de uma mão tocou o outro toque.
As malas lado a lado no depósito.
Talvez acaso até mesmo um sonho
que logo o acordar desvaneceu.
Porque cada início
é só continuação,
e o livro das ocorrências
está sempre aberto ao meio.
 
Wislawa Szymborska


terça-feira, 12 de julho de 2022

Children of the 80's


We're the children of the 80's, haven't we grown
We're tender as a lotus and we're tougher than stone
And the age of our innocence is somewhere in the garden


We like the music of the 60's
We think that era must have been nifty
Flower children, Woodstock and the War
Dirty scandals, cover-ups and more
Oh, but it's getting harder to deceive us
We don't care if Dylan's gone to Jesus
Jimi Hendrix is playing o
We know Janis Joplin was the rose
And we also know that that's the way it goes
With all the stuff that she put in her arm
Don't be alarmed

We are the children of the 80's, haven't we grown
We're tender as a lotus and we're tougher than stone
And the age of our innocence is somewhere in the garden

Some of us are the sisters and the brothers
Who prefer the nighttime for our cover
A leather jacket and a single golden earring
Hang out at discos, rock shows, lose our hearing
Put tattoos all up and down our thighs
Do anything our parents would despise
Take uppers, downers, blues and reds and yellows
Our brains are turning to Jello
We think that life is overrated
Loneliness was underestimated
We are looking forward to the days
When we live inside of a purple haze
Where the salvation of the soul is rock and roll

We are the children of the 80's, haven't we grown
We're tender as a lotus and we're tougher than stone
And the age of our innocence is somewhere in the garden

Some of us may offer a surprise
Recently have you looked in our eyes
Maybe we're your conscience in disguise
We're well informed and we are wise
Please stop telling us lies
We know Afghanistan's invaded
We know Bolivia's dictated
We know America's inflated
And although we do not move in masses
We have lit our candles from your ashes
We are the warriors of the sun
The golden boys and the golden girls
For a better world

We are the children of the 80's, haven't we grown
We're tender as a lotus and we're tougher than stone
And the age of our innocence is somewhere, somewhere in the garden

Joan Baez


Como conversámos aquela noite

Era o quarto de azulejo. O cheiro do tabaco.
O cão
os olhos para que visse o de fora.
Cego
conhecendo a terra sem se conhecer.
Em nós
fizemos sair a lua o sol.
Em todos
o visível o invisível.

Éramos nós e estávamos no fim do mundo.

Como conversámos aquela noite. Era o quarto de azulejo
a mesa de braseira o cheiro do tabaco.
Andara sem destino durante meses
e, aquela noite surgia com o simples virar a
página de um livro,
quando uma palavra torna claro o enredo de longos capítulos.
Assim duas vidas se revelam.

Éramos nós. Estávamos no fim do mundo, quero dizer,
encontrei-me de súbito na minha vida,
na sua vida.

João Miguel Fernandes Jorge

sexta-feira, 8 de julho de 2022

[Gravata e barba crescida, inclinação e tara perdida]

Gravata e barba crescida, inclinação e tara perdida,
outra vez achada no último terço da vida. Nem em sonhos
ou lá dentro, muito dentro da cabeça, onde um órgão
ecoa em nós como numa catedral. E fica-te bem, gola
aberta e cara rapada, boca de sino e justa camisola.

Vamos à bola ou pelo menos aos matraquilhos, sem filhos,
sem coisa nenhuma, só nós dois, piadas e anedotas.
Quando acordas todos os dias a pensar no mesmo e perguntas
se há comprimidos para apagar a memória, parece
pelos meus olhos que a resposta vai ser sim. Mas não.

Tu tens olheiras de não fazer nada, como cansa retirar
ervas do chão, como cansa lançar a confusão no meu corpo
invisível onde não me conhecem. Be my toaster!
E assim, saudando-me, quem sabe se um dia eu serei capaz
de não me enganar na transmissão de um pensamento.

Eu quero que os teus pensamentos vão passear,
fala-me dos teus desejos, das tuas ambições, faz de conta
que eu sou um terapeuta breve a fingir que ouve histórias
emocionantes. Daquelas de fazer chorar as pedras da calçada.
Em guarda! E davas um salto como um espadachim. E um abraço.

Helder Moura Pereira


quinta-feira, 7 de julho de 2022

Lola

https://www.youtube.com/watch?v=TYPrKX-atTg

Sabia
Gosto de você chegar assim
Arrancando páginas dentro de mim 
Desde o primeiro dia
Sabia
Me apagando filmes geniais 
Rebobinando o século 
Meus velhos carnavais 
Minha melancolia 
Sabia 
Que você ia trazer seus instrumentos 
E invadir minha cabeça 
Onde um dia tocava uma orquestra 
Pra companhia dançar 
Sabia
Que ia acontecer você, um dia 
E claro que já não me valeria nada 
Tudo o que eu sabia 
Um dia

Chico Buarque


De tanto perder aprendí a ganar

De tanto perder aprendí a ganar; de tanto llorar se me dibujó la sonrisa que tengo. Conozco tanto el piso que sólo miro el cielo. Toqué tantas veces fondo que, cada vez que bajo, ya sé que mañana subiré. Me asombro tanto como es el ser humano, que aprendí a ser yo mismo. Tuve que sentir la soledad para aprender a estar conmigo mismo y saber que soy buena compañía. Intenté ayudar tantas veces a los demás, que aprendí a que me pidieran ayuda. Trate siempre que todo fuese perfecto y comprendí que realmente todo es tan imperfecto como debe ser (incluyéndome).
Hago solo lo que debo, de la mejor forma que puedo y los demás que hagan lo que quieran. Vi tantos perros correr sin sentido, que aprendí a ser tortuga y apreciar el recorrido. Aprendí que en esta vida nada es seguro, solo la muerte… por eso disfruto el momento y lo que tengo. Aprendí que nadie me pertenece, y aprendí que estarán conmigo el tiempo que quieran y deban estar, y quien realmente está interesado en mi me lo hará saber a cada momento y contra lo que sea. Que la verdadera amistad si existe, pero no es fácil encontrarla. Que quien te ama te lo demostrará siempre sin necesidad de que se lo pidas. Que ser fiel no es una obligación sino un verdadero placer cuando el amor es el dueño de ti. Eso es vivir…La vida es bella con su ir y venir, con sus sabores y sin sabores… aprendí a vivir y disfrutar cada detalle, aprendí de los errores pero no vivo pensando en ellos, pues siempre suelen ser un recuerdo amargo que te impide seguir adelante, pues, hay errores irremediables. Las heridas fuertes nunca se borran de tu corazón pero siempre hay alguien realmente a dispuesto a sanarlas. Disfruta de la mano de Dios, todo mejora siempre. Y no te esfuerces demasiado que las mejores cosas de la vida suceden cuando menos te las esperas. No las busques, ellas te buscan. Lo mejor está por venir.

Jorge Luis Borges


quarta-feira, 6 de julho de 2022

Eu chegava primeiro

Eu chegava primeiro e tinha de esperar-te
e antes de chegares, já lá estavas
naquele preciso sítio combinado
onde chegavas sempre tarde
ainda que antes mesmo de chegares lá estivesses
se ausente mais presente pela expectativa
por isso mais te via do que ao ter-te à minha frente.
Mas sabia e sei que um dia não virás
que até duvidarei se tu estiveste onde estiveste
ou até se exististe ou se eu mesmo existi
pois na dúvida tenho a única certeza
Terá mesmo existido o sítio onde estivemos?

Ruy Belo


sexta-feira, 24 de junho de 2022

[12 anos sem José Saramago]

Agora se há outros sentimentos, como esse de devoção ou gratidão... Talvez. Tenho muitas razões para pensar, por exemplo, que o grande acontecimento da minha vida foi exactamente esse. Foi tê-la conhecido. A ela. (…) Imagine que eu não a tinha conhecido. Você poderia dizer: ‘Ah, mas teria conhecido outras mulheres’. Com certeza. Mas enfim, mas não é disso que se trata. Não é uma questão quantitativa. É simplesmente o facto de a ter conhecido a ela. Nada mais. E assumo que isso mudou a minha vida completamente.


Vinte e quatro de junho

 












Direi então:

Um amigo

é o lugar da terra

onde as maçãs brancas

são mais doces.


Eugénio de Andrade

segunda-feira, 23 de maio de 2022

Há os barcos que levam a distâncias


Há os barcos que levam a distâncias
curtas, e que dão jeito.

E há barcos que levam longe, e que
as pessoas deixam no cais.


Daniel Maia-Pinto Rodrigues


sexta-feira, 13 de maio de 2022

Silenciosamente aproximo-me do poema

silenciosamente aproximo-me do poema

circundo-o duma palavra faço nela
uma incisão deliberada

e exponho a ferida ao ar sem protegê-la
para que infecte e frutifique
de resina ainda com gosto a papel húmido

o poema cresce ramifica-se
comovidamente do cerne para a casca
inteiro liso adstringente sinuoso
mas

todo o poema é perfeitamente impuro.

Vasco Graça Moura


 


terça-feira, 10 de maio de 2022

Diamonds and rust

https://www.youtube.com/watch?v=1ST9TZBb9v8 

Well, I'll be damned
Here comes your ghost again
But that's not unusual
It's just that the moon is full
And you happened to call
And here I sit
Hand on the telephone
Hearing a voice I'd known
A couple of light years ago
Heading straight for a fall

As I remember your eyes
Were bluer than robin's eggs
My poetry was lousy you said
Where are you calling from?
A booth in the midwest
Ten years ago
I bought you some cufflinks
You brought me something
We both know what memories can bring
They bring diamonds and rust

Well, you burst on the scene
Already a legend
The unwashed phenomenon
The original vagabond
You strayed into my arms
And there you stayed
Temporarily lost at sea
The Madonna was yours for free
Yes, the girl on the half-shell
Could keep you unharmed

Now I see you standing
With brown leaves falling all around
And snow in your hair
Now you're smiling out the window
Of that crummy hotel
Over Washington Square
Our breath comes out white clouds
Mingles and hangs in the air
Speaking strictly for me
We both could have died then and there

Now you're telling me
You're not nostalgic
Then give me another word for it
You who are so good with words
And at keeping things vague
'Cause I need some of that vagueness now
It's all come back too clearly
Yes, I loved you dearly
And if you're offering me diamonds and rust
I've already paid

Joan Baez


sexta-feira, 6 de maio de 2022

Understand me

Understand me. I’m not like an ordinary world. I have my madness, I live in another dimension and I do not have time for things that have no soul.

Charles Bukowski


quarta-feira, 4 de maio de 2022

Anda cá

Anda cá
deixa-te estar neste gerúndio
já reparaste
na omnipresença dos grilos
uma frequência audível só
por certos ouvidos apurados
para o tédio
mesmo à sombra
a lentidão espessa estende-te
o sovaco por detrás dos cabelos
e agora
és tu quem chove
és tu todas as coisas

Inês Morão Dias

terça-feira, 3 de maio de 2022

Estimados compatriotas

Acerca do filho-da-puta, como acerca de muitas outras coisas, correm neste país as mais variadas lendas. Há até quem seja de opinião de que o filho-da-puta a bem-dizer nunca existiu, dado que ele é apenas um modo de mal-dizer. Nada, porém, mais falso. É certo que o filho-da-puta às vezes não passa de um modo de dizer, mas não bastará a simples existência, particular e pública, de tão variados retratos seus, para arrumar com as dúvidas acerca da sua existência real? Pois quem teria imaginação suficiente para inventar tantas e tais variedades de filho-da-puta, caso ele não existisse? Não! O filho-da-puta existe. Em todos os lugares, excepto no dicionário. No dicionário existem variados filhos, entre eles o filho-família, o filhastro e o filhote, mas não existe o filho-da-puta. Em compensação, o filho-da-puta existe em todos os outros lugares. Claro que há lugares que ele de preferência ocupa e onde por conseguinte é mais frequente encontrá-lo; no entanto, exceptuando, como ficou dito, o dicionário, não há lugar onde, procurando bem, não se encontre pelo menos um filho-da-puta.

Alberto Pimenta

Carta de amor

https://www.youtube.com/watch?v=Zi2cb9cK4M8

(...)
Eu posso engolir você
Só pra cuspir depois
A minha fome é matéria que você não alcança
Desde o leite do peito de minha mãe
Até o sem fim dos versos, versos, versos
Que brotam no poeta em toda poesia
Sob a luz da lua que deita na palma da inspiração de Caymmi
Se choro, quando choro, e minha lágrima cai
É pra regar o capim que alimenta a vida
Chorando eu refaço as nascentes que você secou
Se desejo
O meu desejo faz subir marés de sal e sortilégio
Eu ando de cara para o vento, na chuva
E quero me molhar
O terço de Fátima e o cordão de Gandhi cruzam o meu peito

Sou como a haste fina
Que qualquer brisa verga
Mas nenhuma espada corta

Não mexe comigo
Que eu não ando só
Que eu não ando só
Eu não ando só

Maria Bethânia

domingo, 1 de maio de 2022

Dia de Maio

 






Os vampiros

 https://www.youtube.com/watch?v=8ur7ne3SWwc

No céu cinzento
Sob o astro mudo
Batendo as asas
Pela noite calada
Vêm em bandos
Com pés de veludo
Chupar o sangue
Fresco da manada

Se alguém se engana
Com seu ar sisudo
E lhes franqueia
As portas à chegada

Eles comem tudo
Eles comem tudo
Eles comem tudo
E não deixam nada (2x)

A toda a parte
Chegam os vampiros
Poisam nos prédios
Poisam nas calçadas
Trazem no ventre
Despojos antigos
Mas nada os prende
Às vidas acabadas

São os mordomos
Do universo todo
Senhores à força
Mandadores sem lei
Enchem as tulhas
Bebem vinho novo
Dançam a ronda
No pinhal do rei

Eles comem tudo
Eles comem tudo
Eles comem tudo
E não deixam nada (2x)

No chão do medo
Tombam os vencidos
Ouvem-se os gritos
Na noite abafada
Jazem nos fossos
Vítimas dum credo
E não se esgota
O sangue da manada

Se alguém se engana
Com seu ar sisudo
E lhes franqueia
As portas à chegada

Eles comem tudo
Eles comem tudo
Eles comem tudo
E não deixam nada

José Afonso


Abres portas

abres portas

fechas janelas

acendes cigarros

apagas velas

chamas

por ti


Madalena Ávila


Poeta no supermercado

I
Indignar-me é o meu signo diário.
Abrir janelas. Caminhar sobre espadas.
Parar a meio de uma página,
erguer-me da cadeira, indignar-me
é o meu signo diário.
Há países em que se espera
que o homem deixe crescer as patas
da frente, e coma erva, e leve
uma canga minhota como os bois.
E há os poetas que perdoam. Desliza
o mundo, sempre estão bem com ele.
Ou não se apercebem: tanta coisa
para olhar em tão pouco tempo,
a vida tão fugaz, e tanta morte...
Mas a comida esbarra contra os dentes,
digo-vos que um dia acabareis tremendo,
teimar, correr, suar, quebrar os vidros
(indignar-me) é o meu signo diário.

II
Um homem tem que viver.
e tu vê lá não te fiques
- um homem tem que viver
com um pé na Primavera.
Tem que viver
cheio de luz. Saber
um dia com uma saudade burra
dizer adeus a tudo isto.
Um homem (um barco) até ao fim da noite
cantará coisas, irá nadando
por dentro da sua alegria.
Cheio de luz - como um sol.
Beberá na boca da amada.
Fará um filho.
Versos.
Será assaltado pelo mundo.
Caminhará no meio dos desastres,
no meio de mistérios e imprecisões.
Engolirá fogo.
Palavra,
um homem tem que ser prodigioso.
Porque é arriscado ser-se um homem.
É tão difícil, é
(com a precariedade de todos os nomes)
o começo apenas

Fernando Assis Pacheco

segunda-feira, 25 de abril de 2022

 


Explicação do país de Abril

('premonição' publicada em 1965)

País de Abril é o sítio do poema.
Não fica nos terraços da saudade
não fica nas longas terras. Fica exactamente aqui
tão perto que parece longe.

Tem pinheiros e mar tem rios
tem muita gente e muita solidão
dias de festa que são dias tristes às avessas
é rua e sonho é dolorosa intimidade.
País de Abril fica na mágoa de o sabermos perto
e todavia rodeado de fronteiras
País de Abril tem verdes vinhas todavia
estão cercados de muros os caminhos da vindima

Não procurem nos livros que não vem nos livros
País de Abril fica no ventre das manhãs
fica na mágoa de o sabermos tão presente
que nos torna doentes sua ausência decretada.

País de Abril é muito mais que pura geografia
é muito mais que estradas pontes monumentos
viaja-se por dentro e tem caminhos como veias
- os carris infinitos dos comboios da vida.

País de Abril é uma saudade de vindima
é terra e sonho e melodia de ser terra e sonho
território de fruta no pomar das veias
onde operários erguem as cidades do poema.

Não procurem na História que não vem na História.
País de Abril fica no sol interior das uvas
fica à distância de um só gesto os ventos dizem
que basta apenas estender a mão.

País de Abril tem gente que não sabe ler
os avisos secretos do poema.
Por isso é que o poema aprende a voz dos ventos
para falar aos homens do País de Abril.
Os amantes não podem de mãos dadas
encher as ruas de maçãs e barcos
amar não podem os amantes que o amor
tem estranhas sentinelas no País de Abril.

País de Abril tem estranhas sentinelas.
Todavia seus ventos ensinam aos homens
que não se pode proibir os homens de viver.
País de Abril tem ventos ilegais.
Mais ensinam que o mundo é do tamanho
que os homens queiram que o mundo tenha:
o tamanho que os ventos dão aos homens
quando sopram à noite no País de Abril.

Manuel Alegre


quarta-feira, 20 de abril de 2022

A noite passada


A noite passada acordei com o teu beijo
Descias o Douro e eu fui esperar-te ao Tejo
Vinhas numa barca que não vi passar
Corri pela margem até à beira do mar

Até que te vi num castelo de areia
Cantavas: Sou gaivota e fui sereia
Ri-me de ti: Então porque não voas?
E então tu olhaste
Depois sorriste
Abriste a janela e voaste

A noite passada fui passear no mar
A viola irmã cuidou de me arrastar
Chegado ao mar alto abriu-se em dois o mundo
Olhei para baixo dormias lá no fundo

Faltou-me o pé senti que me afundava
Por entre as algas teu cabelo boiava
A lua cheia escureceu nas águas
E então falámos
E então dissemos
Aqui vivemos muitos anos

A noite passada um paredão ruiu
Pela fresta aberta o meu peito fugiu
Estavas do outro lado a tricotar janelas
Vias-me em segredo ao debruçar-te nelas

Cheguei-me a ti, disse baixinho: Olá!
Toquei-te no ombro e a marca ficou lá
O sol inteiro caiu entre os montes
E então olhaste
Depois sorriste
Disseste: Ainda bem que voltaste.

Sérgio Godinho


quarta-feira, 13 de abril de 2022

Tu que tinhas fama de doçura

Tu que tinhas fama de doçura, eu amava a tua ferocidade de loba. O teu coração era terno como um lilás a encetar conversa com um pedaço de céu azul - mas a bondade em ti não era rendição. Sabias, quando era necessário, distribuir as tuas tempestades e morder com dentes claros. O ardor do teu riso restituía a frescura às bochechas dos que escondiam a sua pequenez sob uma sabedoria cinzenta. Se nunca ninguém soube arrancar-te uma única maldição contra esta vida, morreste irreconciliável com o que os tolos chamam de "ordem das coisas". É assim, dizias tu: sou feliz e infeliz, impaciente e paciente, minuciosa e distraída, afogo-me e canto - fora de questão mudar pelos olhos bonitos de alguém. A vida era tua irmã de leite. Pediste-lhe emprestados os seus vestidos e fizeste-te como ela, imprevisível: até a tua morte era inesperada e, só nisso, se assemelha a ti. Quanto ao resto, é surda, avarenta, enfadonha: em tudo, o contrário de ti.

Escrever, ou seja, amar de volta.

Christian Bobin

domingo, 10 de abril de 2022

Frases

A política é uma forma de distribuir dinheiro.

Ler não é agir.

A inteligente gente é zombeteira.

Nunca me arrependi de ter desistido.

Não se mandam cartas de amor registadas.


Adília Lopes

O guarda-rios

É tão difícil guardar um rio
quando ele corre
dentro de nós

Jorge Sousa Braga


Do mundo que malmolha ou desolha

do mundo que malmolha ou desolha não me defendo,
nem de mim mesmo, à força
de morrer de mim na minha própria língua,
porque eu, o mundo e a língua
somos um só
desentendimento

Herberto Helder


quinta-feira, 7 de abril de 2022

Finalle: allegro

Seja como for, é triste que a juventude tenha passado.
Tchekov


Eu ia para o amor e deste-me sexo, grande porra
a minha vida...
Isto ia ser o começo de mais um poema
sobre a idade das trevas.
Mas agora vou deitar no contentor do lixo
estes óculos escuros e falar de coisas
mais felizes como, por exemplo, a dor nas costas
que hoje me atormenta, pois dessa
conheço bem o significado.
(Foi ontem, ao empurrar uma estante;
a minha vida parece resumir-se a isto:
deslocar dúvidas de um quarto para outro.)
Mas não - sejamos justos - nem tudo são aspas,
nem tudo são vespas, nem tudo são mordaças.
Antes quero, na verdade, prestar homenagem
à minha senhora, ao junco de sal
onde temos morado. É ela quem sossega
o nervosismo dos meus versos e me oferece
biscoitos, chá preto, o beijo mais longo
debaixo do sol. Se vocês a conhecessem,
não afirmariam outra coisa senão a glória
(mesmo imerecida) de ser amado por quem sabe
que, na vida, apenas o amor nos poderia salvar
e o resto, já sabem - mentira.

José Miguel Silva

sábado, 2 de abril de 2022

Hallelujah

https://www.youtube.com/watch?v=LRP8d7hhpoQ

I've heard there was a secret chord
That David played and it pleased the Lord
But you don't really care for music, do ya?
Well it goes like this: the fourth, the fifth
The minor fall, the major lift
The baffled king composing Hallelujah
Hallelujah, Hallelujah
Hallelujah, Hallelujah

Well, your faith was strong, but you needed proof
You saw her bathing on the roof
Her beauty in the moonlight overthrew ya
She tied you to the kitchen chair
She broke your throne and she cut your hair
And from your lips she drew the Hallelujah
Hallelujah, Hallelujah
Hallelujah, Hallelujah

Well baby, I've been here before
I've seen this room and I've walked this floor
I used to live alone before I knew ya
And I've seen your flag on the marble arch
And love is not a victory march
It's a cold and it's a broken Hallelujah
Hallelujah, Hallelujah
Hallelujah, Hallelujah

Well, maybe there's a God above
But all I've ever learned from love
Was how to shoot somebody who outdrew ya
And it's not a cry that you hear at night
It's not somebody who has seen the Light
It's a cold and it's a broken Hallelujah
Hallelujah, Hallelujah
Hallelujah, Hallelujah
Hallelujah, Hallelujah
Hallelujah, Hallelujah
Hallelujah, Hallelujah
Hallelujah, Hallelujah

Leonard Cohen


Numa estação de metro

A minha juventude passou e eu não estava lá.
Pensava em outra coisa, olhava noutra direcção.
Os melhores anos da minha vida perdidos por distracção!

Rosalinda, a das róseas coxas, onde está?
Belinda, Brunilda, Cremilda, quem serão?
Provavelmente professoras de Alemão
em colégios fora do tempo e do espa-

ço! Hoje, antigamente, ele tê-las-ia
amado de um amor imprudente e impudente,
como num sujo sonho adolescente
de que alguém, no outro dia, acordaria.

Pois tudo era memória, acontecia
há muitos anos, e quem se lembrava
era também memória que passava,
um rosto que entre os outros rostos se perdia.

Agora, vista daqui, da recordação,
a minha vida é uma multidão
onde, não sei quem, em vão procuro
o meu rosto, pétala dum ramo húmido, escuro.

Manuel António Pina


quinta-feira, 24 de março de 2022

Resposta

O cretino, em ti,
Não exclui o ruim.

O ruim, no teu trino,
Não exclui o cretino.

Pois és assim, enfim,
Tão cretino como ruim.

Luis Cernuda


terça-feira, 22 de março de 2022

Canto de las estrellas


No me alcanza la razón
Ni el amor, ni la palabra,
Mis manos que ahora labran
En este instrumento un son.
Si no alcanza mi visión
Y nunca me ha de alcanzar
Pa' poder interpretar
El pensar de víctor jara,
Quien dijera en su plegaria
Yo no canto por cantar.

Cómo se escuchan tus sones
Con tonos de consecuencia,
De verdad y de paciencia
De pensar sin más presiones,
No canto por ilusiones
Dijo delante de dios,
Ni canto porque entre dos
Sea el camino menos largo,
No canto ni por encargo
Ni por tener buena voz.

Cantó porque el sentimiento,
Cantó porque la amistad,
Cantó por la realidad,
Cantó por el sufrimiento,
Cantó porque su talento
En la música desgarra
Cantó porque las amarras
Se soltarán de la gente,
Se le oyó decir ausente
Cantó porque la guitarra.

Tu vida encaminada
Por un ideal diferente,
Por estar entre la gente,
A la muerte llevada.
Y no puedo ser librada
De la fuerza y la opresión,
Que apretado el corazón,
Tu canto hoy día se aferra
Porqué cantarle a la tierra
Tiene sentido y razón.

Yo no canto por cantar
Ni por tener buena voz,
Canto porque la guitarra
Tiene sentido y razón.

Inti Illimani

domingo, 20 de março de 2022

Gastão Cruz, na primeira noite da sua morte

Há dias em que em ti talvez não pense
a morte mata um pouco a memória dos vivos
é todavia claro e fotográfico o teu rosto
caído não na terra mas no fogo
e se houver dia em que não pense em ti
estarei contigo dentro do vazio

...

Barco

Vou hoje começar a recordar-te
embora a luz entrando sob o arco
escasso da realidade possa dar-te
a ilusão ainda de que o barco

simplesmente balouça mas não parte
Já partiu afinal do porto parco
onde vieste perceber a arte
de nada ser; no mesmo barco marco

lugar como num ventre: igual escala
é a perda da vida que ganhá-la

Gastão Cruz


quarta-feira, 16 de março de 2022

Ágata

Foi amor à primeira vista.
Ela tinha nome de pedra preciosa
e, na literalidade dos meus cinco anos,
cabelo em forma de pássaro – negro
asa de corvo.

Era o tempo em que ainda
aprendia com o corpo todo:
uma fractura exposta para entender
o significado de maioria, uma pneumonia
para descobrir a solidão.
Quando ela me cravou um lápis
sob o olho esquerdo, pressenti que a escrita,
grafite fria à flor do sangue,
deixaria marcas para sempre.

Nunca mais nos separámos.
Eu e as palavras,
a Ágata mudou de escola.

Inês Dias


terça-feira, 15 de março de 2022

Amanheci em cólera

Amanheci em cólera. Não, não, o mundo não me agrada. A maioria das pessoas está morta e não sabe, ou está viva com charlatanismo. E o amor, em vez de dar, exige. E quem gosta de nós quer que sejamos alguma coisa de que eles precisam.

Clarice Lispector


Pausa

em algum corredor
no labirinto da existência
de repente a gente
para e olha nos olhos da gente
para ver os anos
o amor
a essência
e os lindos enganos.

Calí Boreaz


segunda-feira, 14 de março de 2022

I had a farm in Africa

I had a farm in Africa, she said,
já sabendo que foi antes África que a teve
consumida como uma vela de cera,
e que nunca se tem o que nos possui.

Também tive, no meu tempo, 
um pequeno território
secreto
no sopé das montanhas Ngong
ou noutra geografia imprecisa, tanto faz.

Meu amor, he said,
acendendo a noite inteira,
e depois veio a longa estação das chuvas
rolaram pela encosta
calhaus, paus, sementes, palavras, fósforos.

Tudo ficou por fim coberto de silêncio
como numa fotografia antiga –
o cheiro da terra molhada abafou
os gritos que sobraram.

Violeta Runa


sábado, 12 de março de 2022

Trieste

Nesse verão nenhum de nós buscava terra firme
parecia-nos caminhar há séculos sobre as águas
Donde viemos nós? Como chegámos a esta luz
austríaca sobre as colinas
ao fumo lento no anfiteatro do golfo
à ordem aleatória do tempo?

Talvez nos caiba viver por cidades estranhas
em casas que esconderão sempre o seu medo
e a sua glória
sós diante dos céus
sem a certeza culminante

Vemos a tarde perder-se na direcção do molhe
o mundo é aquilo que nos separa do mundo


José Tolentino de Mendonça


E se o poema fosse apenas isto

E se o poema fosse apenas isto,
quero dizer: silêncio,
tu e o teu silêncio,
tu e o teu corpo e os teus sentimentos,
tu e os meus sentimentos.

Raquel Serejo Martins


Kiev, 2022

 


XLIII

Quem é belo é belo de ver, e basta;
mas quem é bom subitamente será belo.

Safo


terça-feira, 8 de março de 2022

 

Just like a woman


I take just like a woman
Yes I do 
And I make love just like a woman
And I ache just like a woman
And I break
Like a little girl

Nobody here feels any pain
Tonight as I stand inside the rain
Everybody knows
That I got some new clothes
Lately you see my ribbons and my bows
And the problems
From my curls...

Yes I take just like a woman
Yes I do 
Oh, and I make love just like a woman
And I ache just like a woman
And I break
Just like a little girl

It was raining there at the first
And I was dying of thirst
So I came here
That's why I came here
Long time's curse
And what's worse
Is this pain in here
I can't stay in here
Ain't it clear
Ain't it clear

Oh
I must admit
I believe it's time for me to quit
And until we meet again
Bein' introduced as friends
Please don't let on
That you knew me when
I was hungry
And it was your world
I take
Just like a woman

And I make love just like a woman
And I ache just like a woman
But I break...
I used to break
I don't break anymore
They can't do anything else bad to me anymore
Anything worst that I've done before
So I don't break
I'm not a little girl

Bob Dylan/Nina Simone


quinta-feira, 3 de março de 2022

IIII

Não sei falar. Nunca soube. Fico exausta quando
falo. Todos vocês devem ficar a saber disto.
Nunca chego a dizer exactamente aquilo que
pretendo - fica sempre do outro lado do vidro.
Daí a poluição que me envolve. Um pranto.

Derivo das várias posições no mundo. Da
ignorância, de todos os poemas que comi, de
todos os livros, todos os ídolos (geralmente
esquisitos), todos os palcos e cinemas, balcões,
da família, de todos os amigos. Raros no mundo.
Valiosíssimos. Eu sou eles todos e as viagens que
nunca fiz. Sou tudo isso. Não há mais ou menos
importância em nada, especificamente - tudo isto
é o meu sangue no papel.

Tenho várias salivas. Vários géneros. Acumulei
rostos e corpos. E o teu, o teu, o teu, o teu e
ainda o teu, continuam guardados, para sempre,
em todos os meus lugares. Eu sou tudo o que
vocês fizeram de mim. E tu, meu amor, tu dormes
ainda na minha cama. Planetas nos olhos.
Tecendo melodias. Trazendo gengibre na boca.
Para a minha boca. O teu tear.

Importante é dizer-vos que trago fruta para
todos. Flores. Paciência. Coração. Mesa. Uma
lareira. Delícias. Espaço. Muito espaço.
Jacarandás para ti, Mário! Jacarandás para
sempre. Também para ti, todo o Rossio em
Junho. Abraços com força e ombro. Manta.
A minha intenção é dar-vos uma coisa impossível
à partida. Uma invenção.
E estou longe. Estou muito longe para mim.

Passa por aqui, várias vezes por dia, um único
pardal. E nem ele, mais solitário que eu, me
cumprimenta.

Patrícia Baltazar


quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

Um tempo que passou

https://www.youtube.com/results?search_query=um+tempo+que+passo

Vou
Uma vez mais
Correr atrás
De todo o meu tempo perdido
Quem sabe, está guardado
Num relógio escondido por quem
Nem avalia o tempo que tem
Ou alguém o achou
Examinou
Julgou um tempo sem sentido
Quem sabe, foi usado
E está arrependido o ladrão
Que andou vivendo com o meu quinhão
Ou dorme num arquivo
Um pedaço de vida
A vida, a vida que eu não gozei
Eu não respirei
Eu não existia
Mas eu estava vivo
Vivo, vivo
O tempo escorreu
O tempo era meu
E apenas queria
Haver de volta
Cada minuto que passou sem mim
Sim
Encontro enfim
Iguais a mim
Outras pessoas aturdidas
Descubro que são muitas
As horas dessas vidas que estão
Talvez postas em grande leilão
São mais de um milhão
Uma legião
Um carrilhão de horas vivas
Quem sabe, dobram juntas
As dores coletivas, quiçá
No canto mais pungente que há
Ou dançam numa torre
As nossas sobrevidas
Vidas, vidas
A se encantar
A se combinar
Em vidas futuras
Enquanto o vinho corre, corre, corre
Morrem de rir
Mas morrem de rir
Naquelas alturas
Pois sabem que não volta jamais
Um tempo que passou

Sérgio Godinho/Chico Buarque


terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Reflexão n.º 1

Ninguém sonha duas vezes o mesmo sonho
Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio
Nem ama duas vezes a mesma mulher.

Deus, de onde tudo deriva,
É a circulação e o movimento infinito.

Ainda não estamos acostumados com o mundo
Nascer é muito comprido.

Murilo Mendes


sábado, 19 de fevereiro de 2022

Fado Escorpião

 https://www.youtube.com/watch?v=EpXPaE5VM2E

Escorpião relacional
Sou de matar e morrer
Meu movimento letal
É só porque tem de ser

Já tentei fazer diferente
Já tentei não me afogar
Mas a força da corrente
Nunca me deixou mudar

Atracção pelos excessos
Ou simples curiosidade
Não são todos os começos
Princípio de eternidade?


O que eu faço não se faz
Já tanta gente mo disse
Mas eu nunca fui capaz
Nem vou ser porque alguém disse

Escorpião relacional
Sou de matar e morrer
Por condição afinal
Sou assim, tenho que ser

Duarte



Só necessito que tu existas

Afogo no teu ombro
tudo o que não te digo
o pânico do sonho
o resplendor do risco

É de ti que me escondo
Em ti é que me firmo
Antes de já ser ontem
sentir que estamos vivos

Nada garante que tu existas
Não acredito que tu existas

Só necessito que tu existas


David Mourão-Ferreira


quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

Extención y fama del oficio de puta


No te quejes, ¡oh, Nise!, de tu estado

aunque te llamen puta a boca llena,

que puta ha sido mucha gente buena

y millones de putas han reinado.


Dido fue puta de un audaz soldado

y Cleopatra a ser puta se condena

y el nombre de Lucrecia, que resuena,

no es tan honesto como se ha pensado;


esa de Rusia emperatriz famosa

que fue de los virotes centinela,

entre más de dos mil murió orgullosa;


y, pues todas lo dan tan sin cautela,

haz tú lo mismo, Nise vergonzosa;

que aquesto de honra y virgo es bagatela.


Tomás de Iriarte


domingo, 13 de fevereiro de 2022

 


Os justos

Um homem que cultiva o seu jardim, como queria Voltaire.
O que agradece que na terra haja música.
O que descobre com prazer uma etimologia.
Dois empregados que num café do Sul jogam um xadrez silencioso.
O ceramista que premedita uma cor e uma forma.
O tipógrafo que compõe bem esta página, que talvez não lhe agrade.
Uma mulher e um homem que leem os tercetos finais de certo canto.
O que acarinha um animal adormecido.
O que justifica ou quer justificar um mal que lhe fizeram.
O que agradece que na terra haja Stevenson.
O que prefere que os outros tenham razão.
Essas pessoas, que se ignoram, estão a salvar o mundo.

Jorge Luis Borges


quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

(Escre)ver-me

nunca escrevi

sou
apenas um tradutor de silêncios

a vida
tatuou-me nos olhos
janelas
em que me transcrevo e apago

sou
um soldado
que se apaixona
pelo inimigo que vai matar

Mia Couto


Remedia Amoris

Foi uma péssima ideia a de voltarmos a ver-nos. Não fizemos mais do que trocar insultos e culpar-nos de velhas e sórdidas histórias. Depois ...